Luiz saiu rindo de um pequeno povoado, suas risadas ecoando pelas ruas estreitas e poeirentas. Ao seu lado, seis mascarados o acompanhavam em silêncio, suas presenças imponentes, mas tranquilas. Ele deu um tapinha amigável nas costas de um deles, um sorriso satisfeito ainda nos lábios.
— Fizemos um ótimo trabalho! — exclamou, sua voz carregada de um orgulho jovial. Antes, o grupo era composto por dez membros, mas alguns ficaram pelo caminho, terminando os detalhes dos contratos e termos estabelecidos.
Já era o terceiro povoado pelo qual passavam, e as negociações, embora inicialmente tivessem parecido desafiadoras, acabaram sendo mais fáceis do que o esperado. Cada aldeia tinha suas peculiaridades, mas todas compartilhavam algo em comum: a simplicidade.
O primeiro que visitaram era habitado por humanos com braços longos e flexíveis, que se moviam como cipós, permitindo-lhes alcançar grandes alturas com facilidade. Seus olhos eram pequenos e escuros, adaptados para enxergar em ambientes de pouca luz. Eram um povo recluso, vivendo a maior parte do tempo literalmente dentro do topo das árvores, mantendo-se afastados das ameaças exteriores. Sua vila aos poucos entrava em decadência pela falta de uso, então foram os mais fáceis de convencer.
O segundo povoado era habitado por seres de pele fina e quase translúcida, que lhes permitia detectar mudanças sutis na pressão e na temperatura do ar. Eram ágeis e rápidos, capazes de identificar o perigo antes mesmo de ser visível. Haviam rebaixado as casas de seu vilarejo, sendo grande parte delas parcialmente subterrâneas.
Embora intimidadores à primeira vista devido ao interior de seu corpo sendo sutilmente visível abaixo da pele, essas pessoas eram surpreendentemente acolhedoras, interessadas principalmente em aprimorar suas ferramentas agrícolas rudimentares. A desconfiança inicial com Luiz e seu grupo foi rapidamente dissipada quando viram que estavam dispostos a negociar de maneira justa.
O terceiro, de onde acabavam de sair, era um pequeno vilarejo de humanos que possuíam patas em vez de pés, capazes de percorrer longas distâncias sem cansar. Eram caçadores por natureza, mas precisavam de armas mais sofisticadas, já que nem sempre apenas suas novas garras afiadas eram suficientes. Eles viviam em uma comunidade organizada, mas de aparência antiga, como se houvesse retrocedido alguns séculos no tempo.
As negociações foram simples. Os povos não tinham muito uso para o equipamento que sobrara de tempos antigos, já que nem mesmo energia elétrica possuíam no momento, então estavam dispostos a trocar por uma quantidade equivalente de suprimentos ou ferramentas de metal para uso cotidiano. Houve certa relutância quando souberam que a cidade amaldiçoada estava sendo reconstruída, mas como não havia desavença real, acabaram cedendo.
A humildade dos mascarados e a disposição de Luiz em escutar suas necessidades os convenceram. Claro, o mentalista também plantou sementes de ideias em suas mentes, conduzindo-os sutilmente à direção certa do acordo sempre que necessário.
— E agora, qual é a próxima parada da rota? — perguntou o mentalista, com um olhar animado.
Uma mascarada ao seu lado, a qual parecia ter aproximadamente 30 anos e um corpo comum mas com um excepcional charme, consultou um mapa meio gasto.
— As próximas duas são cidades grandes, Myrmeceum e Carapicuíba.
— Provavelmente as negociações vão ser difíceis em ambas — interrompeu outro mascarado, um homem de aparência simples e curtos cabelos negros que escapavam pelos lados do item que cobria seu rosto. — Eles não precisam de recursos básicos como as aldeias. E, por serem maiores, têm justamente os itens que mais precisamos.
Luiz, no entanto, estava confiante. Um sorriso largo se formou em seu rosto.
— Conseguiremos. Olhem como foi fácil até agora! Somos incríveis! — riu sozinho, mais uma vez, agora entre as árvores que cercavam a trilha.
Os mascarados se entreolharam, notando a reação peculiar do líder da expedição, mas decidiram não comentar e apenas seguiram em frente.
Logo chegaram ao penúltimo destino, Myrmeceum. Era muito menor que a cidade de Barueri, ocupando apenas parte da Reserva Biológica Tamboré, mas ainda assim maior que as aldeias por onde haviam passado. Os muros eram de pedra empilhada e cimentada, mas não tão altos, e dois guardas estavam preguiçosamente encostados na torre, observando o horizonte com desinteresse.
Luiz já havia lido no relatório que aquela era uma cidade estranha. Seus habitantes haviam ganhado características de insetos, mas havia uma peculiaridade: não seguiam um padrão específico como os outros humanos corrompidos. Alguns ganharam várias pernas, outros perderam as mãos, substituindo-as por garras, e alguns poucos tinham múltiplos olhos, o que dava à cidade uma aparência surreal e desordenada.
Ao se aproximarem dos portões, o conselheiro fez uma careta involuntária ao imaginar uma barata gigante caminhando pelas ruas, mas manteve a postura confiante.
— Vamos lá, pessoal. Mostrem que os amaldiçoados também sabem como fazer negócios — suas palavras acompanharam um leve ajuste de sua máscara, e logo deu um passo à frente, pronto para iniciar as negociações.
Os guardas na entrada os notaram rapidamente, e um deles, com olhos que brilhavam em um tom amarelo fluorescente, desceu lentamente da torre para os receber. Luiz se surpreendeu ao notar que, diferente do que esperava, os homens pareciam relativamente normais; havia algumas características sutis de insetos que ele percebeu, como um ou outro par de antenas saindo das testas e a pele levemente quitinosa, mas nada que fosse grotesco como ele imaginara.
O guarda que se aproximava possuía os braços tortos como os de um louva-deus, e o outro um par de braços a mais, finos como os de uma formiga, mas no fim o que realmente chamou sua atenção foram os capacetes que usavam, que se assemelhavam ao de um motociclista, mas com um design de uma intrigante tecnologia decadente.
— O que traz amaldiçoados aqui? — perguntou o guarda, sua voz saindo como um sussurro arranhado.
Luiz sorriu debaixo da máscara, a recepção era sempre a mesma, então simplesmente repetiu o mesmo que disse para os demais locais.
— Somos emissários — falou em tom fortemente diplomático. — Nosso reino emergente gostaria de estabelecer rotas comerciais.
Os olhos do guarda brilharam novamente, e Luiz soube que havia captado sua atenção. Suas antenas tremeram por um instante, um detalhe que não passou despercebido para os mascarados, e logo ele se virou novamente para os visitantes.
— Sigam-nos. A rainha irá recebê-los.
Sem muita cerimônia, foram conduzidos pelas ruas da cidade, que, apesar de sua baixa tecnologia, mostravam um nível surpreendente de organização e estrutura. As construções eram feitas de materiais simples como madeira e pedra, mas suas formas imitavam colmeias ou formigueiros, com entradas em arcos baixos e estruturas modulares que poderiam ser expandidas para cima ou para os lados conforme necessário. As ruas eram repletas de rampas e passarelas, permitindo que os habitantes se movessem com agilidade entre diferentes alturas.
Os habitantes, embora apresentassem uma mescla de características de insetos, eram hábeis e eficientes em suas tarefas. Alguns manejavam ferramentas com múltiplos braços com uma destreza impressionante, enquanto outros tinham pernas extras, que lhes permitiam carregar grandes quantidades de peso com facilidade. O som constante de movimento e trabalho reverberava pelas ruas, criando uma atmosfera de atividade incessante.
Uma característica peculiar que Luiz não pôde deixar de notar era o uso generalizado de exoesqueletos complexos pelos habitantes. Essas armaduras tinham um design intrincado, combinando elementos de metal e materiais orgânicos, dando aos usuários uma aparência que vagava entre o militar e o anárquico.
— Equipamentos rúnicos? — perguntou Luiz em voz baixa para um dos mascarados ao seu lado. — Parecem avançados, considerando o resto da cidade.
— É uma adaptação cultural — respondeu o homem. — As partes de insetos conferem novas características ao corpo, mas não são particularmente resistentes. Então, eles integram essas peças para se fortalecerem. Vê aqueles padrões? As runas são simples, quase sempre focadas em proteção.
— E por que não adicionar runas de ataque também? — perguntou Luiz, intrigado.
— Múltiplas runas em um único equipamento podem causar efeitos adversos. É complicado decidir exatamente por onde a mana vai passar, e o resultado pode ser perigoso.
Luiz acenou, compreendendo a situação. Às vezes notava as runas nas armas de seus companheiros, mas nunca ficou particularmente interessado em saber como funcionam, então ficou satisfeito com a pouca informação fornecida por seu companheiro.
Apesar do dinamismo da cidade, era perceptível uma certa falta de naturalidade em cada canto, tudo parecia se mover de maneira mecânica. Haviam murais a cada poucas centenas de metros adornadas com padrões complexos, mas que surpreendentemente eram trocados a cada minuto. Pequenos grupos de moradores se reuniam em torno deles, como se estivessem discutindo algo importante, e então se dispersavam rapidamente, voltando ao trabalho como se obedecessem a um comando invisível.
— Esses padrões são impressionantes — murmurou o mentalista, observando também estes detalhes de forma curiosa.
— São ordens coletivas — explicou o guarda, lançando um olhar impaciente. — Agora chega de papo furado, chegamos. A rainha vai encontrá-los em breve.
O grupo parou diante de uma grande construção, que, à primeira vista, parecia um antigo prédio do governo, mas com várias adaptações, incluindo rústicos detalhes de asas e bandeiras que flutuavam ao vento. As portas foram abertas, revelando um hall espaçoso e escuro, iluminado apenas por uma série de pequenas lanternas que pendiam do teto, criando um ambiente quase místico. O cheiro de terra e folhas frescas impregnava o ar, misturado com um leve odor metálico.
Os emissários foram conduzidos através de estreitos corredores que pareciam descer cada vez mais para o subterrâneo. A atmosfera pesada e o silêncio opressor faziam seus sentidos ficarem em alerta. Finalmente chegaram a uma espaçosa e vazia sala, a luz fraca e as sombras projetadas nas paredes contrastavam com uma figura imponente no centro, sentada diretamente no chão.
Ela era impressionante, com roupas folgadas que traziam um ar de fantasia cobrindo uma armadura negra reluzente, adornada com elegantes traços laranja. De suas costas saíam braços de aranha revestidos do mesmo metal escuro, se movendo com uma graça inquietante. Embora sua postura fosse relaxada, havia uma presença inegável de poder e autoridade.
— Sua Majestade, Niala, rainha da Colônia — anunciou o guarda, com uma grande reverência, deixando a sala em seguida com um estranho pavor em seus passos.
Enquanto analisavam o local, os mascarados notaram um homem magro e estranho, de óculos escuros redondos, que permaneceu em pé em um canto, observando a cena com olhos invasivos. Luiz se manteve ao fundo do seu grupo, acompanhando a conversa com discrição.
A mulher mascarada que liderava as negociações, após uma breve reverência, sentou-se em frente a Niala, iniciando o diálogo com uma voz respeitosa.
— É uma honra estar aqui, Sua Majestade. Viemos para propor uma aliança entre nossas comunidades. Acreditamos que uma troca de recursos e apoio mútuo pode ser benéfica para ambos.
Niala observou o grupo por um momento antes de responder.
— Uma aliança? Com vocês? — disse, com claro desinteresse. — Lembro-me bem de como os amaldiçoados vivem em meio a escombros. Não há nada de valor. Não vejo o que poderiam oferecer.
Com o término da frase, uma se suas longas pernas foi em direção a uma taça de vinho, demonstrando seu desdém enquanto se servia com um gesto desleixado. A mascarada manteve a calma, seu tom firme e confiante.
— As coisas mudaram. Nossa rainha retornou. Estamos nos reerguendo, reconstruindo nossa cidade, e buscando novos aliados.
Niala permaneceu cética, mas suas antenas balançando levemente, quase imperceptíveis na escuridão. Seus olhos se viraram sutilmente em direção ao homem que permanecia ao fundo, e Luiz percebeu que as antenas dele fizeram o mesmo movimento trêmulo.
— Isso não me diz nada. Ainda não vejo como posso me beneficiar de um acordo — continuou a mulher inseto.
Luiz percebeu que, mesmo mal tendo começado, a conversa não estava indo bem, afinal, Niala não estava totalmente errada, não havia muito que uma cidade que ainda não existe pudesse ofertar.
“Só uma pequena sugestão para voltar para a direção certa não fará mal”, pensou, confiante que teria sucesso como das outras vezes.
Concentrando-se, ele tentou acessar a mente de Niala, buscando influenciá-la sutilmente para ao menos considerar a proposta que seria feita em seguida. Ele sorriu orgulhosamente ao ter um aparente sucesso após uma única tentativa, contudo inesperadamente se deparou com milhares de vozes e ideias bombardeando seu cérebro de uma só vez. Era algo raro, talvez tão estranho quanto a mente de Ana, mas muito mais doloroso.
“Consciência compartilhada!”
Infelizmente havia notado tardiamente, sua cabeça parecia prestes a explodir, e ele começou a apertar as laterais de seu crânio, tentando resistir à agonia que o consumia. No meio de seu tormento mental, ouviu o som de um copo de vidro se quebrando, seguido por um alto extrondo que o despertou em um pulo, com centenas de lascas de pedra atingindo seu rosto.
A parte superior do corpo da mascarada que dirigia a conversa já não existia mais, sendo obliterada por um golpe devastador de Niala. Antes que Luiz pudesse reagir, outra perna metálica pegou seu corpo, o erguendo no ar com brutalidade, arrancando sua máscara negra com um movimento ágil.
— Olha só, você não parece um desses montes de pedra — disse a rainha, com um tom frio e calculado, seus olhos fixos no mentalista que se debatia em vão. — Me pergunto quem permitiu que colocasse essa mente suja na conversa da minha colônia.
Suspenso no ar, sentindo a dor remanescente ainda pulsando em sua cabeça, Luiz mal conseguiu manter a compostura. A única coisa que conseguiu pensar foi em como Ana ficaria brava por ele ter ignorado suas ordens.
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