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Dois meses se passaram desde que Ana assumiu o comando, e a transformação da cidade foi nada menos que extraordinária. O que antes era um amontoado de ruínas e destroços agora se estendia como um vasto campo aberto, com alguns poucos edifícios que se erguiam como árvores de concreto e aço, desafiando o céu com suas formas imponentes. 

Ana, com um olhar visionário, havia iniciado uma série de grandes construções que avançavam a passos largos. A força de trabalho dos bestiais foi essencial nesse progresso. Seus músculos e suas mãos calejadas, guiados pela determinação e pela necessidade de reconstruir suas próprias vidas, ergueram muralhas robustas que envolviam a cidade, com blocos de pedra e vigas colocados com precisão quase ritualística sob a supervisão de mascarados especializados. 

Um grande fosso estava começando a ser escavado e torres de vigia pontuavam essas muralhas, cada uma equipada com intrigantes armadilhas e armamentos que refletiam a criatividade sombria dos engenheiros que as projetaram, mas que, falando a verdade, não funcionavam muito bem neste momento, sendo apenas ótimas adições estéticas.

Os inesperados novos residentes se estabeleceram no canto leste da cidade, fora das muralhas centrais, mas também protegidos por uma muralha anexada de menor extensão em forma de meia lua, se organizando de maneira surpreendentemente eficaz. Dando tudo de si, ergueram casas robustas, feitas de madeira e pedra, que ressoavam com a história de seu povo. Cada golpe de martelo era um esforço consciente para domar seus instintos selvagens, transformando essa energia em construções sólidas e funcionais. 

Eles abandonaram os trapos que antes vestiam, adotando roupas leves de pano e partes de couro, que se adequavam ao clima e ao trabalho pesado. Com seu novo modo de vida, pareciam uma tribo bárbara, com um jeito bruto de viver, mas eram diligentes e sérios quando concentrados. Cada tarefa era cumprida com disciplina e um propósito claro, mostrando um lado dos bestiais que muitos não esperavam.

Além das moradias, também deram início à criação de uma raça de ovelhas que mais parecia saída de um pesadelo antigo. Essas criaturas agressivas, com seus dentes incrivelmente afiados e olhar selvagem, produziam uma lã densa, mais grossa e resistente do que a de ovelhas comuns. Sua carne era dura, exigindo uma grande paciência para serem cozidas, mas se tornou uma valiosa fonte de alimento para a tribo reformada, e aos poucos deixavam de caçar sem necessidade. Com o passar das semanas, os bestiais passaram a cuidar destes rebanhos com uma devoção que surpreendia até os mais cínicos.

Muitos viam essa apreciação carinhosa como macabra, já que no fim do dia muitas eram assassinadas para consumo, mas como parecia servir como um tipo de terapia para eles, não havia do que reclamar.

No centro da cidade, elevado em relação às demais construções, um castelo imponente dominava a paisagem. Embora compacto, sua estrutura exalava poder e autoridade, com torres altas e paredes reforçadas que brilhavam sob a luz do sol, se erguendo como o coração pulsante do novo reino. Conforme planejado, as ruas principais da cidade irradiavam do castelo, formando largas avenidas que se conectavam em cruzamentos organizados, facilitando o tráfego e a movimentação por todo o reino.

Espalhados pelos arredores, em locais previamente definidos para tais, moinhos de vento feitos com peças básicas giravam incessantemente, suas lâminas cortando o ar como se fossem sentinelas vigilantes. Esses moinhos não apenas forneciam uma pequena quantidade de energia, mas também simbolizavam a autossuficiência e a inovação que permeavam a comunidade. Quartéis e campos de treinamento fervilhavam de atividade, onde os novos recrutas, uma estranha fusão de mascarados e jovens bestiais, aprendiam a dominar habilidades que antes eram desconhecidas.

Nas extremidades da cidade, além dos muros, campos de agricultura em padrões geométricos perfeitos se estendiam, ainda vazios, mas prontos para garantir as colheitas da cidade. Em conjunto a isto, estufas improvisadas foram construídas, permitindo o cultivo de plantas mais raras e exóticas, enquanto reservatórios de água subterrâneos alimentavam os campos com um sistema de irrigação engenhoso.

Mas talvez o projeto mais intrigante estivesse acontecendo no subterrâneo. Ali, um perturbador local estava sendo esculpido nas profundezas da terra, longe de olhares curiosos. O laboratório, destinado à pesquisa avançada e experimentos, era o centro nervoso dos planos de Ana, onde o conhecimento antigo seria combinado com a nova realidade do mundo. Os corredores eram mal iluminados por pequenas pedras rúnicas de mana, que cintilavam em tons azulados, criando um ambiente misterioso e ao mesmo tempo acolhedor para os pesquisadores.

A organização da cidade era exemplar, com grupos separados em mini divisões, indo além do apenas funcional. A Divisão de Pesquisa, onde a própria Ana compartilhava seu vasto conhecimento, tornou-se um centro de aprendizado e inovação. Lá, ela ensinava conceitos de tecnologia, ciência e ideias a respeito da mana, instruindo possíveis talentos mascarados em como, teoricamente, manipular e combinar todos. 

Mais ao norte, a Divisão de Construção trabalhava incansavelmente, erguendo novas habitações e oficinas a cada dia, transformando a cidade em um lugar onde trabalho e progresso andavam de mãos dadas. Nas minas, equipes de trabalhadores escavavam com precisão, extraindo os recursos necessários para alimentar a expansão da cidade. Cada divisão operava como uma engrenagem em uma máquina maior, mantendo a cidade em constante movimento.

A vida, embora pacífica, era marcada por um ritmo de trabalho incessante e uma organização quase militar, mas os habitantes pareciam bem com isso. Havia um sentimento coletivo de propósito e esperança, e as noites eram preenchidas com música e celebrações modestas que fortaleciam os laços entre os poucos habitantes.

Para a surpresa do Punição Divina, e talvez até das próprias estátuas, os mascarados começaram a adquirir traços de individualidade. As esculturas que ganharam vida, como pergaminhos em branco prontos para serem preenchidos, absorviam os costumes e emoções dos que estavam seu redor, e por trás de suas máscaras rígidas e sem expressão, começavam a refletir leves nuances de caráter, cada um moldado pelas interações com seres vivos de verdade.

Em uma noite particularmente agradável, Ana encontrava-se sentada em uma mesa no canto de uma das maiores construções da cidade: uma taverna recém-inaugurada que infelizmente ainda não pulsava com a energia dos frequentadores. 

As paredes de madeira polida refletiam a luz suave das lamparinas, enquanto o silêncio preenchia o acolhedor salão ao invés de risadas e conversas animadas. Havia uma simplicidade e um toque rústico que remetia às antigas tavernas dos contos populares, um ambiente digno de melancólicos livros de fantasia.

— A qualidade da cerveja ainda é duvidosa — comentou a rainha, levando a caneca aos lábios e fazendo uma careta logo em seguida pelo sabor.

Ao seu lado, Nyx dedilhava distraidamente seu alaúde, arrancando notas melodiosas que pairavam sobre o ar. Ela soltou uma risada suave, inclinando-se para observar o líquido âmbar na caneca enquanto concluía a canção. Pousando o instrumento no colo, virou-se para Ana.

— Bem, considerando que a maioria dos que trabalham aqui são estátuas que não sentem gosto, talvez seja pedir demais que façam a receita perfeita.

— Você tem razão. Mas ainda assim, um pouco mais de esforço não faria mal. Uma boa cerveja seria ótima depois de um dia longo como este.

Ana suspirou, recostando-se na cadeira, e a Sombra se alinhou em uma posição semelhante.

— Tudo parece estar caminhando bem ultimamente, não é mesmo? É impressionante o quanto a cidade mudou em tão pouco tempo. Eva e Gabriel realmente têm se superado na organização de tudo.

— Eles me pouparam de muito trabalho, isso é certo. A menina tem uma habilidade incrível para coordenar as equipes, e Gabriel garante que tudo funcione perfeitamente nos bastidores. Sem eles, não teríamos avançado tanto. Pelo menos não sem eu ser obrigada a me esforçar de verdade.

Nyx, sem dar muita atenção, observou o ambiente ao redor, seus olhos percorrendo as vigas altas e o salão espaçoso.

— Mudando de assunto, por que construir uma taverna tão grande? Parece tão elaborada quanto o novo castelo.

Ana apoiou a caneca na mesa e cruzou os braços, como se ponderasse a resposta antes de falar.

— Porque é necessário — respondeu ela, com convicção. — Este lugar não vai ser só beber e comer. É um ponto de encontro, onde as pessoas podem relaxar, compartilhar histórias e fortalecer laços. Um lugar onde as ideias fluem tão livremente quanto a cerveja. Parece bobeira, mas laços são o que fazem uma cidade sobreviver, que motivam as pessoas a ficarem e lutarem por ela. Este lugar… é uma pedra angular para o que estamos tentando construir.

Nyx assentiu, vendo a lógica nas palavras de Ana, e voltou a dedilhar o alaúde, o som suave preenchendo o ambiente.

Nesse instante, a porta da taverna se abriu, e Miguel entrou, trazendo consigo uma brisa fresca e uma expressão ligeiramente preocupada. Ele se aproximou de onde as mulheres estavam sentadas e fez uma reverência profunda, com sua máscara sorridente quase tocando a mesa.

— Vejo que está bem relaxada, minha rainha — disse ele, com um sorriso ligeiramente provocativo.

— Mereço um pouco de descanso, não acha?

— Mas é claro! Você nem mesmo deveria ter que trabalhar, minha ra…

— Pare de graça, sem essa merda de minha rainha também, é a mesma coisa que minha senhora — resmungou Ana, com certo humor. — O que traz você aqui, Miguel?

O secretário soltou uma risada breve antes de assumir uma expressão mais séria.

— Alguns emissários voltaram. Trazem notícias que você provavelmente vai querer ouvir.

O semblante de Ana tornou-se imediatamente mais atento, a descontração dando lugar à curiosidade.

— Notícias boas ou ruins? — perguntou ela, indicando uma cadeira vazia para que o homem se juntasse a elas.

O mascarado sentou-se, apoiando os cotovelos na mesa enquanto se inclinava para frente.

— Difíceis de classificar. Depende de como você pretende lidar com elas.

— Quem voltou? Alguma informação específica? — interrompeu Nyx, também curiosa.

— Por enquanto apenas um grupo que enviamos ao norte para estabelecer contato com as colônias próximas. Parece que encontraram mais resistência do que esperavam, mas também descobriram algumas oportunidades interessantes.

Ana cruzou os braços, refletindo por um momento.

— Certo. Vamos convocar uma reunião amanhã cedo para discutir os detalhes. Por enquanto, aproveite a noite. Você e os outros têm trabalhado duro demais.

Miguel inclinou a cabeça, confuso, mas pegou a caneca que Ana empurrou para ele.

— Creio não ser o ideal, seria um desperdício de bebida…

— Vamos, apenas finja um pouco. Luna, traga mais algumas rodadas e venha sentar-se com a gente também — murmurou a rainha, levantando a mão para que uma jovem garota atrás do balcão se atentasse em suas palavras. — O clima aqui está muito deprimente.

— Quem sabe com a música certa, a cerveja até fique mais saborosa? — comentou Nyx, acelerando o ritmo de sua canção.

Ana balançou a cabeça, um sorriso suave brincando em seus lábios enquanto observava seus estranhos companheiros desfrutarem de um ainda mais estranho momento.

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