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A luz do sol se filtrava preguiçosamente pelas copas das árvores, projetando sombras inquietas sobre a trilha à frente. A floresta parecia congelada no tempo, envolta em um silêncio tão denso que até mesmo o som dos passos de Ana e Miguel parecia abafado.

Ana, com a longa espada enrolada em um tecido áspero nas costas, movia-se com a habitual confiança, mas algo na quietude ao redor parecia se agarrar à sua pele, trazendo lembranças desconfortáveis à tona.

— Essa viagem foi… tranquila demais — comentou a rainha, com um tom que denunciava sua crescente inquietação. — Digo, tranquila além do normal. Esse silêncio… está mórbido. A floresta está estranha.

Miguel, que caminhava ao lado, apenas assentiu, mas não pôde deixar de compartilhar o desconforto de Ana. O ar estava pesado com uma quietude que beirava o sobrenatural.

— Sabe — Ana continuou, com um tom casual. — Houve uma época em que eu realmente tinha uma queda por plantas. Antes mesmo de começar a esculpir as estátuas.

O secretário mascarado piscou, surpreso pela mudança abrupta de tema. Ele não conseguiu evitar uma risada suave, confuso.

— Uma… queda? — repetiu ele, tentando entender o que ela queria dizer.

Ana sorriu de canto, gostando da reação dele. 

— É como um fascínio, uma paixão. Elas faziam eu me sentir menos sozinha, e eram tão belas…

— Entendo, então você gostava de plantas?

— Isso! — ela se inclinou ligeiramente em sua direção, seu tom assumindo um ar conspiratório, como se estivesse prestes a revelar um grande segredo. — Mas depois eu percebi que elas são meio nojentas. Se acham no topo do mundo só por serem cheias de vida, sempre crescendo, sempre evoluindo. Tão mesquinhas.

O mascarado tossiu, pego de surpresa pela revelação. Ele tentou disfarçar a risada, recompondo-se rapidamente.

— Acho que… talvez seja melhor deixar esse assunto pra lá — sugeriu ele, sorrindo de forma divertida. — Parece que já estamos bem próximos.

Com o término das palavras, as sombras escuras das árvores começaram a dar lugar a contornos familiares: os restos de uma antiga aldeia começaram a emergir da vegetação densa. Estruturas parcialmente encobertas por vinhas, galpões decrépitos e ruínas estavam entrelaçados de maneira quase simbiótica com a floresta ao redor. A fusão entre o que era natural e o que fora construído pelo homem dava ao lugar uma sensação de desolação e mistério.

Ana resmungou, franzindo o cenho.

— Já consigo sentir os olhares — ela fez um som de irritação, um “tisc” audível, e então olhou ao redor, incomodada. — Como é que plantas têm tecnologia se nem ao menos constroem casas?

— Não deixaram tudo ao relento, guardaram tudo que puderam em galpões bem antes das mutações começarem — explicou Miguel, calmamente. — Eles têm uma certa paixão pelo antigo. E na verdade ainda usam tecnologia, só que de um jeito que não é tão visível.

Ele apontou para umas vinhas mais espessas, que se ramificavam para diferentes direções, se entrelaçando de forma simbiótica entre árvores e estruturas. Ana arqueou uma sobrancelha, claramente mais intrigada do que antes. Com um movimento rápido, pegou uma pequena faca da cintura.

— Não faça isso… 

— Para de ser chato, eu só quero dar uma olhada.

Antes que o mascarado pudesse protestar mais, Ana fez um corte limpo em uma das vinhas menores, puxando-a para frente dos olhos. Um sutil ruído foi ouvido quando as duas partes se separaram, e a mulher a encarava com olhos tão brilhantes quanto os de uma criança.

— Mana sempre surpreende… isso é biotecnologia a um nível surpreendente! Pela forma que foram construídas, são dispositivos de som?

Miguel assentiu, balançando a cabeça de incredulidade enquanto se aproximava, também observando o estranho dispositivo.

— Eles são mudos — explicou o homem, seu tom assumindo um tom mais sério. — Pelo menos, da forma como nos comunicamos. Já os vimos algumas vezes fora da aldeia. Sempre carregam rádios, fitas cassete… faz parte de como eles se comunicam com o mundo.

Ana ficou em silêncio por alguns segundos, absorvendo a informação.

— Isso é… incomum — murmurou, com mil possibilidades e perguntas vagando por sua mente. — Mas um conceito fascinante.

Finalmente, Ana e Miguel cruzaram o limite invisível de Ybyty Poty. À medida que avançavam, os habitantes da cidade começaram a surgir das sombras entre as árvores. Eles se aproximavam de todos os lados, seus passos eram tão suaves que mal podiam ser ouvidos, e a aura de quietude ao redor deles apenas aumentava o desconforto.

Ana suspirou, seus olhos imediatamente se estreitando em desconfiança. Instintivamente, ela levou a mão às costas e desprendeu a trouxa, começando a desenrolar a longa espada. O metal frio da lâmina, ainda meio coberta pelo pano desgastado, a confortava de uma forma estranha. 

Feito isto, apoiou a arma no chão, em uma postura clara de preparação para o combate. Mesmo com os pelos da nuca arrepiados, estava meio confusa. Não era um alarme falso, mas também não havia uma ameaça imediata ou hostilidade nos seres que ela via. Miguel, ao perceber o movimento da rainha, sacou sua espada curta, mas deu alguns passos para trás, seu corpo mais tenso e menos preparado para a calma que Ana demonstrava.

— Oi? — Ana disse, com uma sobrancelha levantada, sem saber como reagir a falta de resposta. Lentamente, se virou para o mascarado que a acompanhava. — Não seria mais fácil só matarmos todos e pegarmos o que precisamos? Isso parece uma perda de tempo…

Miguel arregalou os olhos e balançou a cabeça lentamente em negativa, quase incrédulo pela falta de noção da mercenária em uma situação como aquela. Ela suspirou, visivelmente entediada com a resposta contida dele. Fincou a espada no solo com mais força e cruzou os braços.

— Então foda-se, vamos só esperar.

O povo verde não esboçou desgosto pela sugestão violenta, tampouco pararam. Continuavam se aproximando em um ritmo quase coreografado, e aos poucos a humanidade vegetal deles se tornava mais aparente. 

Seus corpos eram formados de camadas entrelaçadas de folhagens e caules, contendo muitas plantas nativas vistas pelo local. Costelas-de-Adão criavam um belo mosaico ao se estender por suas extremidades, braços que se curvavam como lianas serpenteantes, com veias esverdeadas que pulsavam suavemente por baixo da casca escura. 

Algumas partes exibiam flores que lembravam a Orquídea Negra, enquanto outras eram revestidas com folhas que se assemelhavam ao Ipê-Amarelo. Suas faces variavam em formatos e cores, mas todas eram adornadas com belas pétalas de Flor-de-maio. Seus olhos pareciam ocos, apesar de não tão vazios quanto os dos mascarados, como se estivessem profundamente imersos na simbiose entre planta e humano.

Vendo mais de perto, havia algo bizarramente gracioso em como eles se moviam, com pequenas partes arrastando-se pelo chão, como se sentissem o solo a cada passo.

E então, sem aviso, os seres começaram a circular ao redor de Ana de forma lenta e metódica. Era como se eles estivessem dançando ao redor dela, movendo-se com uma precisão fluida. Vinhas se estendiam suavemente até sua pele, deslizando como se estivessem explorando a textura de sua carne e tecido, com uma mistura de curiosidade e reverência.

— Fascinantemente estranhos — murmurou Ana, sem parecer particularmente abalada pela estranha dança. Ela tocou a pele deles assim como estavam fazendo, sentindo a textura áspera e, com um movimento brusco, estourou uma das vinhas que se enrolavam em seu dedo. — Olha isso, Miguel. Nem sequer reagiu! Esses corpos são incríveis!

— O que está…

Antes que ele pudesse terminar a frase, uma das mulheres-planta, cujo corpo estava quase inteiramente coberto de pétalas, se aproximou com uma coroa feita de flores vibrantes. Com movimentos lentos e delicados, ela a colocou sobre a cabeça de Ana. 

A mercenária não pôde deixar de notar que as flores da sua coroa eram excessivamente parecidas com as que compunham o próprio corpo da habitante que a “presenteou”. 

Ainda imóvel, virou-se novamente para o mascarado em busca de algum tipo de explicação, apenas para se deparar com outra habitante, semelhante à primeira, adornando com um colar de flores. Os dois se entreolharam, compartilhando um momento de confusão mútua.

— E ai? Agora podemos começar a cortá-los antes que fique ainda mais bizarro?

— Talvez…

Foi então que, de repente, um alto som de estática tomou conta do lugar, quebrando a misteriosa cena. Era um ruído agudo, cortante, que parecia reverberar de todos os lados. 

Ana olhou na direção do som com certo desconforto, até que a viu. Uma mulher se aproximava em passos lentos, mas cheios de autoridade. Ela era uma visão que mesclava o grotesco e o maravilhoso, com o corpo curvado pela idade, mas ainda elegante. Sua pele vegetal brilhava com o reflexo de luzes tênues e seu rosto, uma mistura de humano e uma planta carnívora, lembrava a boca de uma Dioneia, com fileiras de “dentes” plantíneos delineando suas feições.

Em suas mãos aparentemente frágeis, a mulher carregava um rádio antigo, cujos circuitos pareciam entrelaçados com raízes que se conectavam diretamente ao seu corpo, como se ela fosse uma com o aparelho. A estática aumentava a cada passo que dava, até que finalmente parou diante dos dois visitantes.

Com um leve toque no rádio, o som de estática se ajustou. Entre os ruídos distorcidos e o chiado, uma voz grave e rouca emergiu, quebrando o silêncio que até então dominava a aldeia.

— A natureza… nunca esquece.

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