Selecione o tipo de erro abaixo

Capítulo 110: Conto de Guerra

Estar consciente era estranho, principalmente por não parecer um estado de consciência. Era quase como um sonho, toda a realidade lhe parecia enevoada e caso estendesse os dedos para tocá-la, ela escorreria pelos seus dedos. Ao alcance de sua visão, mas nunca de seu tato.

Seu corpo não era mais apto a obedecer seus comandos do que era hora antes, pelo contrário, era ainda menos desperto, era mole e leve. A dor excruciante era uma punição cruel, mas a falta de qualquer sensação sólida era um terror agoniante.

Com que me drogou? — tantas formas com as quais poderia ter feito essa pergunta, sendo obrigado a escolher uma das mais curtas.

— Não reclame de barriga cheia, não está mais sentindo dor. 

Não estou sentindo nada.

Ela gracejou algo que não alcançou seus ouvidos e riu de forma contida. Ela se virou para ele, sua concha de madeira derramando um líquido amarelo luminoso em um pequeno frasco de vidro sem desperdiçar a menor gota. Os olhos de fenda o encararam antes de responder:

— De nada.

O Monstro Verde gemeu, não de dor, por causa da excruciante falta de sensações, mas por desgosto. Um sentimento que se tornava mais comum a cada segundo, como se sempre houvesse feito parte dele.

A bruxa colocou seu frasco sobre a mesa junto a outras dezenas com líquidos semelhantes, muitos compartilhando da mesma cor e outros absolutamente distintos em seus brilhos. A loira voltou ao seu caldeirão agora quase vazio e o pegou com seus dois braços, foi uma caminhada rápida até o lado de fora onde indiscriminadamente jogou fora qualquer líquido restante.

Ao retornar para dentro, encheu o recipiente com poucos jarros de água e alimentou a fogueira sob ele com novas toras de madeira. Alongou os braços cansados, e sentou-se a mesa junto do amigo a espera de seu caldeirão iniciar a fervura. Os olhos dos dois se encontraram e foi quando a mulher percebeu, ela é quem teria que se livrar do silêncio.

Com o Hobgoblin preso naquele estado que provoca a ação da empatia, não haveriam maquinações complexas, esquemas desnecessários ou delírios de grandezas expostos em monólogos inspirados com uma desnecessária e prepotente quantidade de palavras. 

Ela tamborilou suas garras na madeira incomodada, era uma das razões que gostava do seu amigo, o verme amava o som da própria voz. A própria como uma antisocial orgulhosa de seu prazer com o isolamento, sempre foi terrível em interações sociais, o que envolve a manutenção de conversas. Normalmente, ela apenas reagia ao que era dito pelo monstro, a criatura era um ótimo norte para direcionar seus diálogos.

— Bom… — como as pessoas tagarelas sempre tinham algo para falar e ela não sabia por onde começar? — … Já falei sobre… a batalha de Jericoacoara?

É sua ideia de assunto? — ele teria gostado de sorrir, mas seus músculos faciais estavam paralisados.

— Você adora histórias de guerra, seu bastardo e qual o problema com o assunto?

Não problema, mas do nada?

— É do nada não, você me lembra cobras sabe, verde, astuto, se dobra de forma nojenta que nenhum ser com coluna deveria fazer. — ela cruzou os braços e ergueu o queixo com orgulho — É quase um elogio, répteis são a forma de vida superior! Embora as cobras sejam menos respeitáveis que predadores nobres, como jacarés por exemplo.

Erguer a sobrancelha é algo que o Monstro Verde podia fazer felizmente e foi o que fez quando ouviu aquela autopromoção. Jacarés? Nobres? Nunca leu essa informação em qualquer um dos livros sobre animais dela ou ouviu ser dito por outra criatura sapiente.

A única coisa que sua experiência própria dizia sobre esta espécie em específico é que assim como todos os outros, seus ovos eram um delícia. Pensar nisso levantou uma questão interessante que nunca lhe ocorreu antes.

Você põe ovos?

E silêncio se seguiu após a perguntas, os dois pares de olhos amarelos se encararam. Uma expressão presa entre o desgosto e a raiva se moldando na face da loira.

— Matei pessoas mais importantes que você por fazerem essa pergunta idiota.

Você põe?

— Quer ouvir a maldita história ou me ver fazer poções em silêncio o dia inteiro?

“Ele” revirou os olhos, pessoas ditas civilizadas e suas questões estúpidas de modéstia e pudor ainda eram estranhas. 

História? Você falava de cobras.

— Porque cobras tem tudo haver com essa história.

Com uma expressão pensativa, a mulher se levantou e seguiu até seu armário pequeno no cômodo. Abrindo uma gaveta tirou um pequeno saco e derramou uma pequena parte do conteúdo sobre a madeira.

— Foi há oito, nove? Oito, acho que foi há oito anos atrás. Era o vigésimo sexto ano da sexagésima sexta guerra de conquista demoníaca. O Rei Demônio naquele ano se voltou para um alvo inesperado, um prêmio necessário para o todo, mas um tanto desprezível em si. — separado o fumo que ia ser usado, ela retirou seu cachimbo da gaveta e o preparou. — Jijoca, um reino minúsculo e litorâneo no nordeste, nenhuma conquista militar, nenhum habitante famoso, nem a menor importância na história do continente, praias bonitas, mas não era um local especialmente turístico.

Por que?

— A grande questão, não é? Por que? — a mulher se aproximou da lareira e começou a cutucar a madeira com seu atiçador — Mãe Finazza, vidente da corte do Rei Demônio. Os poderes dela eram reais, mas a mulher em si? — a réptil revirou seus olhos — Era uma vigarista. Suas previsões eram raras e pouco claras, então ela passava a maior parte do tempo inventando histórias e mentiras para ocupar a todos até finalmente conseguir uma previsão real.

Retirou um pedaço de madeira queimada da lareira com auxílio do atiçador e o usou para acender seu cachimbo. Depois de um longa baforadas, se levantou largando a ferramenta.

— Mãe Finazza previu que em Jericoacoara, capital de Jijoca surgiria uma arma de metal que ameaçaria destruir exércitos e conquistar o continente. O Rei Demônio queria aquela suposta arma para si e ordenou a conquista do pequeno reino. — a bruxa sentou a mesa ao lado de seu amigo e suspirou. — Ele enviou o General Maçone, demônio cruel, sádico e repulsivo. A conquista de Jijoca devia ter sido rápida, mas Maçone deixava os habitantes fugirem para a capital, apenas para que ficassem desesperados aguardando o momento da morte, querendo que eles se afogassem em medo.

Deu-lhes tempo.

— E foi esse o erro do idiota! Só descobriram depois de torturar um dos nobres de Jijoca que sobreviveu ao conflito, mas havia uma coisa na capital, um tesouro, um artefato milenar do qual ninguém fora da família real sabia. A princesa de Jericoacoara, desesperada com a invasão usou esse artefato pra se comunicar com alguma coisa, acho que talvez um de seus deuses, ela queria força, a força para destruir o exército que Maçone liderava.

E conseguiu?

A Bruxa do Pântano sorriu com essa pergunta, fumaça atravessando os seus dentes afiados.

— Conseguiu, conseguiu a força e o poder para impedir a invasão. Tudo sob a forma de uma gigantesca, assustadora e mortal cobra com cabeça de mulher. O que antes era uma princesa, se tornou um monstro faminto que atacou o exército inimigo devorando um a um, mas quando seu povo foi até ela para lutar ao seu lado, ela os esmagou espalhando sangue por toda a terra. Aquela coisa não era mais a princesa deles. — a Bruxa pareceu hesitante antes de iniciar a próxima parte, mas depois de olhar o Hobgoblin, pareceu não encontrar problemas. — Havia uma bruxa acompanhando Maçone, uma que percebeu que a cobra não podia ser derrotada por eles. Ela usou um artefato antigo, um bracelete forjado pelo trigésimo quinto Rei Demônio que poderia abrir passagem para uma espécie de, mundo vazio? Era um lugar sem nada onde as coisas podiam ser seladas. A mulher genial prendeu de uma só vez a cidade, a cobra, os habitantes e parte do exército demoníaco dentro do bracelete.

E depois?

A réptil deu de ombros.

— Não muita coisa. O idiota do Maçone foi punido e baixado de sua posição, Jijoca foi deixada de lado e a guerra continuou.

A loira se levantou quando notou a água fervendo, pronta para dar início a um novo lote de poções.

A princesa?

— Hum? Nunca pensei muito nisso, presumo que ela devorou todos presos com ela e morreu de fome. Fazem oito anos, não deve haver nada além de ruínas dentro do bracelete.

Era algo a se pensar, aquela foi uma boa história, porém só trouxe mais dúvidas. Deuses? Transformações? Uma cidade presa em uma bijuteria? 

“Ele” pensaria muito sobre isso naquele dia e algumas vezes ao longo dos anos. Sobre aquele monstro, aquela mulher presa sob escamas, sobre a Princesa de Jericoacoara.

Picture of Olá, eu sou MK Hungria!

Olá, eu sou MK Hungria!

Enganei vcs? Fazendo vcs pensarem que o próximo capítulo ia ser na cidade? Foi de propósito, muahahaha.

Agora sobre vários capítulos de uma vez, é, não vai dar. Comecei a receber seminários pra fazer e provas pra estudar na faculdade, to meio sem tempo.

Clique aqui para entrar em nosso Discord ➥