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Capítulo 89: Um sonho.

O sonho foi estranho e não apenas pelo conteúdo propriamente dito, apesar deste conter de fato pouco ou nenhum sentido lógico. A estranheza residia no simples fato de ter acontecido em primeiro lugar, uma vez que “Ele” não sonhava, nunca o fez antes. Alguns dos livros de sua amiga réptil mencionaram a existência dessas visões irreais que ocorrem durante o sono e ela depois de questionada respondeu que as tinha ocasionalmente em noites particularmente agradáveis.

Ler e ouvir sobre nunca poderia tê-lo preparado para a experiência real. O Hobgoblin sabia que não estava acordado apenas pela impossibilidade do cenário, ele nunca estivera em tal praia tampouco presenciou tal batalha como aquela que se desenrolava em sua frente. A faixa de areia podia ser qualquer uma em todo o mundo, afinal ainda teria que pisar em sua primeira praia. Os integrantes do sonho eram humanos, mas todos diferentes do que “Ele” estava acostumado em qualquer dos dois lados do conflito.

Da floresta de copas largas que delimita o início da praia saiam homens de pele escura amarronzada com lanças e escudos. Alguns vestiam pouco mais que tangas feitas de cipó, outros se cobriam com peles coloridas principalmente de vermelho e outros armaduras de couro grosso. Todos eles podiam ser divididos em vários grupos com base em suas vestimentas, mas lutavam lado a lado como membros iguais de uma mesma tribo.

Alguns de seus inimigos carregavam a marca de uma pele mais clara e vestiam armaduras de couro sob pesadas capas de peles, capacetes de ferro em suas cabeças e machados em suas mãos. Ao lado deles lutavam homens e mulheres com seus troncos cobertos por armaduras douradas, pernas protegidas por caneleiras de mesma cor e rostos obscurecidos por elmos de mesma aparência, em suas mãos carregavam lanças. Haviam mais ao longe no horizontes, distantes demais para a visão do Hobgoblin reconhecer detalhes. Esse lado da batalha vinha pelo mar, barquinhos pequenos lotados de lutadores deixando embarcações maiores para trás.

A cacofonia era estranha a seus ouvidos pontudos visto que era tão contrastantes com o silêncio mortal da Floresta de Dante. Urros de dor eram acompanhados de gritos de guerra, metal entrando em carne, madeira acertando ossos, corpos e mais corpos caindo para dar mais espaço na batalha a guerreiros que surgiam um após o outro como um exército infinito para os ambos os lados do conflito. Os sons mais estranhos eram os dos trovões, afinal era uma tarde clara e sem nuvens.

Ou ele imaginou ser uma tarde, não era fácil dizer apesar do sol claro e brilhante ocupando sua posição de destaque no céu. Sim, a presença do astro indicava ser manhã ou tarde e ainda assim era equivocado decidir entre qualquer um dos horários devido a aparência do firmamento.

No fim das contas, o céu não deveria ser laranja reluzente daquela forma, embora parecesse um pôr do sol, era muito diferente. O seu brilho era o mesmo de um incêndio, o céu estava queimando enquanto todos abaixo dele matavam uns aos outros. A coloração ainda assim era apenas um dos aspectos não naturais nas alturas. As estrelas o assustaram, não por estarem visíveis fora da noite, mas sim por estarem despencando do firmamento celeste.

As formas cintilantes rasgaram as alturas deixando cortes prateados no céu dos quais “Ele” quase esperou ver sangue jorrar dada a já incompreensível estranheza do sonho. Aquelas estrelas vinham em direção a terra, mas em um movimento tão lento que mal podia ser notado, ou poderia ser somente a percepção falha de quem olhava do chão.

Eventualmente o Hobgoblin se cansou da visão do massacre e para sua surpresa passou a caminhar, era comum andar livremente quando em um sonho?

Todos os presentes ignoravam sua presença como se o monstro não ocupasse espaço entre eles. De fato não ocupava, pois em um momento de distração se viu entre a luta de dois homens e perdeu o ar quando viu as armas deles atravessarem sua carne e ficou perplexo quando os guerreiros inconscientes de sua existência passaram por seu corpo da mesma forma que caminhavam pelo ar.

“Ele” era incapaz de interagir com qualquer um dos aspectos daquele sonho, o que por si só contradiz muito o conceito de sonhos.

Quando mais um trovão retumbou no céu, seu olhar foi voltado para essa direção e o cenário se fez ainda mais confuso. Serpentes não deviam ser tão gigantescas e menos ainda capazes de voar pelo céu igual aquela fazia, embora aquela estivesse longe de parecer uma serpente comum. Estava distante demais para que o Monstro Verde compreendesse detalhes, mas ainda era possível ver o tom azulado claro pelo corpo da criatura e as cores vermelho, verde e azul que enfeitavam sua cabeça. 

Seus olhos amarelos estavam paralisados naquela visão, não capazes de olhar para outra coisa e quanto mais encaravam, mais entendiam. Assim percebeu que a gigantesca criatura não voava, ela deslizava pelas nuvens como teria feito sobre o chão. Ato não menos sobrenatural, mas na opinião do Hobgoblin muito mais impressionante. Uma predadora de proporções colossais com uma presa muito evidente, tão evidente que o Monstro Verde se amaldiçoou por não ter notado antes.

Culpou a distância pela sua falta de percepção e analisou a nova peça da imagem.

Uma biga voadora puxada por três cavalos enquanto pegava fogo.

“Ele” desviou o olhar para o solo e esfregou os olhos com as costas de suas mãos como garantia de que nada atrapalhava sua visão, então tornou a encarar os céus. A biga ainda estava lá, pegando fogo, sendo puxada por três cavalos voadores e é claro, sendo perseguida por uma cobra emplumada gigante que serpenteava por entre nuvens.

Certo, o monstro ouvira que sonhos não faziam o menor sentido e essa foi a confirmação empírica do fato.

Estava quase hipnotizado com tudo que via, tão distraído com a miríade de acontecimentos caóticos ao seu redor que não percebeu o trote da criatura até que ela parou ao seu lado. Os olhos amarelos se viraram para encontrar uma veado de pelagem branca, um animal que exalava uma camada de glória. O hobgoblin se considerava alto, de fato era, alcançando quase dois metros. O quadrúpede superava sua altura por algo próximo de largos quarenta centímetros. Seu corpo claro e sua serenidade reluziam sob a luz do sol e conflitavam com o céu queimando. O mais inesperado, no entanto, foi o veado retribuir o olhar, encarando o Hobgoblin com olhos tão intensos quanto das alturas cobertas por chamas. Como se não fosse nada digno da menor grama de sua atenção, o animal tornou a galopar com outra direção como norte.

Espere! — pediu tendo sua voz apagada em meio aos sons tão altos da batalha.

“Ele” não deixaria algo como aquele acontecimento curioso passar sem resposta e perseguiu a criatura em meio ao conflito. Não hesitou em passar pelas flechas lançadas a esmo ou recuou quando as espadas e machados lhe atravessaram. Quanto mais avançava, mais distante estava o veado, suas velocidades não eram comparáveis e quando desviava o olhar, a criatura parecia desaparecer e reaparecer ainda mais longe. 

Somente alcançou quando a própria criatura desistiu de fugir, ou nem fugia. É isso, não estava necessariamente fugindo Hobgoblin, apenas tinha outra coisa mais importante para a qual focar sua atenção e aparentemente chegou até ela..

  “Ele” parou ao lado do animal de pelagem clara e o último não lhe deu um único sinal de reconhecimento, ainda o ignorando como se a primeira troca de olhares nunca tivesse acontecido. Os olhos amarelos do monstro se desviaram para ver o que tanto prendia o foco do veado tão incomum e assim a viu pela primeira vez de uma forma que nunca a vira antes.

Muitas coisas estavam erradas naquele sonho, serpentes nas nuvens, bigas no céu, céu este com uma cor anormal e entre todas essas coisas, aquele novo detalhe errado. Uma sensação de desconforto preencheu seu peito, uma emoção incomoda em sua cabeça, advinda do fato dele presenciar uma cena que sabia estar incorreta. A altura estava certa, o rosto, seus cabelos e até a forma que ela se movia, mas a cor, Caipora devia ser vermelha e não parda.

De qualquer forma, com o tom certo ou não, era a mesma garota do mato mantendo aquela agilidade e destreza admirável que o Hobgoblin treinava para alcançar. Ela saltou e se agachou para fugir dos machados empunhados por aqueles que vinham do mar. Dois, quatro, seis, doze caíram frente a garota pequena que carregava apenas uma lança em suas mãos.  

Infelizmente, conforme aqueles guerreiros caiam, mais se reuniam ao seu entorno para aumentar as chances de derrotá-la. Independente de quanta habilidade a garota do mato possuísse, ainda era uma só contra um número esmagador e o que parecia inevitável, ocorreu. Ela caiu quando o machado de um homem alto atrás dela rachou o topo de seu crânio com um único golpe de seus braços fortes e não levantou mais.

O corpo no chão continuava vivo, mas era questão de tempo até que deixasse esse mundo e fechasse os olhos para não mais abri-los. Os guerreiros a deixaram sozinha, se era para prolongar o seu sofrimento ou se estavam desesperados para não perder tempo algum, o Hobgoblin era incapaz de saber.

Os três estavam sozinhos.

O monstro, o animal e a garota.

A garota, esse pensamento ocupou sua mente por um momento e gerou descobertas interessantes. “Ele” nunca pensou em Caipora como uma mulher de além do norte, apesar de pensar nela como uma garota. Sua pele era vermelha, seus ouvidos eram longos, seus olhos anormais, sua agilidade sobrenatural. Entretanto, ali naquele cenário impossível vendo o corpo caído deitado sobre sangue e areia, percebeu que ela era indubitavelmente humana.

“Por enquanto.”

O pensamento ocorreu e pareceu errado, invasivo, não foi algo saído da mente do monstro. Por qual razão teria visto aquela condição de humanidade como temporária?

Qualquer que fosse a razão, procuraria em outro momento. O quadrúpede de pele clara passou a se mover e com passos lentos alcançou a garota na areia. O surpreendente foi ela olhar para o animal. Nenhum dos guerreiros, fossem qualquer lado, deram exemplos de perceber a existência do veado, da mesma forma que não reconheciam a do monstro.

Ela o fez encarando seus olhos brilhantes enquanto a criatura se abaixava e inclinava seu pescoço para ter sua boca nos ouvidos da guerreira derrotada. O Monstro Verde nada ouviu, porém soube pela mudança de expressão da garota que algo foi dito. Ainda mais quando os lábios dela se moveram em uma ação quase imperceptível devido a gravidade de seu ferimento.

“Ele” sentiu o corpo ficando leve como uma pena levada pelo ar, o nome Caipora sendo ouvido de algum lugar e a visão de pele vermelha foi tudo que teve antes de finalmente acordar.

Tendo a sensação de que esqueceu algo.

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