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Capítulo 90: Um café da manhã mediocre

Seus olhos se abriram apenas para encontrar outro par olhando para “ele”. O monstro não diria que a visão era exatamente desapreciada, afinal, Lauany era para todos os efeitos, uma fêmea atraente em seus padrões globianos. Claro, eram parâmetros reconhecidamente baixos, sua espécie predecessora era conhecida pelo pouco critério ao escolher espécimes femininos (às vezes masculinos) com os quais copular (o Hobgoblin adorava o som dessa palavra). Ainda assim, teria sido melhor se a pseudo-centaura não tivesse feito aquilo.

Melhor para ela.

Antes que a mente de qualquer um dos dois registrasse o que aconteceu, o Monstro verde estava quase de pé, as garras de suas mãos estendidas e se aproximando da garganta da mulher quadrúpede. Da mesma forma que “ele” atacou por instinto ao ser surpreendido, foi com o devido instinto de quem lutou a vida inteira que ela desviou sem dificuldades.

— Oh, isso foi perigoso. — disse como se a manhã tivesse iniciado calma e não com uma – embora falha – tentativa de assassinato.

O convidado nada disse, apenas a encarou. A mensagem naqueles olhos eram claras mesmo para a guerreira que não o conhecia tão bem, ela jamais deveria fazer aquilo de novo. Entendendo que talvez fosse apropriado deixá-lo despertar sozinho, a pseudo-centaura se afastou em um trote calmo.

Com espaço adequado para despertar em seu ritmo, respirou lentamente e alongou seus braços enquanto ainda estava sentado. Os tempos bons como líder de sua tribo de Goblins estava o deixando muito cômodo afinal. A cada vez que dormia, passava a levar mais tempo para despertar e também para levantar. Precisava evitar ficar indolente antes que isso se tornasse um problema.

Ainda cansado e com olhos cheios de remela, encarava o céu como se lá houvesse algo que devia ver. Da mesma forma, as nuvens lhe interessavam e foi incapaz de entender a razão para isso. Guardava a estranha sensação de que esquecera algo considerado importante. Passar a manhã inteira remoendo esses pensamentos teria pouca produtividade e o monstro resolveu ignorar o que sentiu.

Já de pé, era hora de pensar nos próximos passos. Teria que reencontrar a réptil que chamava de amiga, seu sumiço repentino mesmo que não o preocupasse, merecia uma explicação. Ainda devia ser de seu interesse encontrar uma forma de cumprir sua bravata feita aos Homens Lobos.

Suspirou como se tivesse um peso nos ombros.

Mais um problema como aquele, quando sequer solucionou todos os outros que o antecederam. Os primatas (menos barulhentos, mas ainda lá), os humanos, Matinta e os Elfos. Embora, se fosse honesto, deveria admitir que os dois últimos nada tinham haver com “Ele” ou sua vida e que buscava se envolver por conta própria.

Quando sua vida deixou de ser tentar sobreviver a cada dia miserável para o que quer que pudesse resumi-la atualmente?

Infernos, o Monstro Verde nem era capaz de dizer o que sua vida era e usar “O que quer que seja” para se referir a ela foi vergonhoso. Logo ele, criatura letrada e sempre desejosa de conhecer e classificar o significado e importância de tudo, inapto a entender as circunstâncias de sua própria existência. Aquela manhã não seria o momento certo para solucionar este dilema e não querendo cair em mais crises dentro de sua cabeça, deu o primeiro passo para encontrar o que comer. 

Mal começara a caminhar e foi cercado pelas mesmas crianças de sempre. Outro mistério da vida, por qual razão aqueles pirralhos gostavam tanto dele? Esse comportamento não podia ser normal.

Ignorou suas besteiras habituais e se dirigiu até o círculo de membros da tribo que comiam frutas como refeição matinal. Mesmo que entendesse a recusa de todos em comer carne, ainda achava uma grande besteira. Opinião que não o impediu de pegar para si um galho carregado de jabuticabas em uma esteira no chão. Sem muito ânimo, sentou-se ao lado entre Lauany e seu irmão bovino.

— Oh, a irmã em Yebá Bëlo? — era o modo como se referia a bruxa quando descobriram que eram ambas devotas do mesmo conjunto de divindades — Ela apareceu a alguns dias, disse que tu fora se matar em algum lugar e depois voltou para o lago comentando ter visto algo interessante. Não a vejo desde então.

O Hobgoblin murmurou em reconhecimento, apenas sinalizando que ouvira o que foi dito. A bruxa estava no lago? O monstro não a viu por lá, porém via com muita descrença a possibilidade de algo ruim ter acontecido com ela. Poucas coisas poderiam representar perigo real à Bruxa do Pantano.  

O que lhe causava incômodo era descobrir por qual razão ela ficaria por aquela área. “Ele” não conseguia ver nenhuma tanto na planície ao redor quanto no corpo d’água. Embora fosse injusto negar qualquer utilidade no lago, ele poderia prover o que beber e o que comer. 

Comida.

Isso lhe rendeu uma ideia.

Lauany viu a face do visitante lentamente mudar para formar o que chamava de “cara de pensar muito”. O rosto que o Monstro Verde fazia toda vez que começava a planejar algo complexo e por isso ignorava todos ao seu redor. Talvez seu amigo nem soubesse que tinha a cara de pensar muito.

Ela achava moderadamente adorável, o que era incomum, afinal seu amigo era normalmente bonito e atraente, não adorável e fofo. O que a agradava eram os detalhes, possivelmente era a única a perceber os pequenos movimentos e sutis mudanças que compunham aquela cara de pensar. Primeiro, o monstro começa a encarar um ponto vazio com um olhar vago, então suas sobrancelhas se franzem e o canto esquerdo de seu lábio se ergue de forma quase imperceptível. Se o que quer que pensasse fosse agradável, iria lamber o interior do lábio inferior, mais uma ação que poucos perceberiam. Caso seus pensamentos fossem negativos, seu olho esquerdo ficaria menos aberto que seu olho direito.

Logo chegaria a uma conclusão e uma entre duas atitudes seria tomada por parte dele, ou ele sairia para pôr em prática suas ideias ignorando a todos e deixandos o para trás sem o menor sinal de despedida ou então começaria a falar e expor seus entendimentos com quem estivesse ao seu redor, pois era óbvio como se orgulhava de sua inteligência e apreciava o som da própria voz.

E como ela previu, uma das duas ações foi feita com o convidado se levantando e partindo sem olhar para trás, recusando a menor grama de atenção para qualquer um que tentasse cumprimentá-lo. Seus olhos azuis observavam-o caminhar pelas planícies e se afastar cada vez mais. Seu olhar vagou para suas costas bem torneadas e coxas grossas, uma visão agradável de se ter e um indivíduo interessante para se conversar. Não era estranho que na noite anterior, Olhos de Fogo tivesse vindo para observá-lo à distância. Lauany tinha certeza que aquele Hobgoblin estava destinado a grandes coisas, boas ou ruins, só dependia do próprio.

Inconsciente das opiniões que outrem nutria por si, o Monstro Verde levou apenas alguns minutos para chegar ao acampamento Orc, o que não aconteceu por sua vontade. Seja dito a verdade, “Ele” nem percebeu que estava seguindo para lá até que pisou seus pés para dentro. Se tivesse escolhido conscientemente, teria dado a volta, mas em sua pressa escolhera o caminho mais curto.

Tarde demais para voltar, não, tempo havia de sobra. Tinha pouco ânimo para retornar e poucas razões para fazê-lo. Os Orcs eram uma potencial ameaça em vez de um perigo concreto, muitos se mostraram felizes em simplesmente o ignorar desde sua vitória sobre um dos membros do grupo. Em outros casos, matariam qualquer criatura de outra espécie que entrasse em seus limites, mas o companheiro verde de tamanho menor demonstrou sua força e habilidade (mais o segundo do que o primeiro) e isso é algo que todos podiam respeitar. Desafiariam o Goblin bonito a qualquer momento se vissem motivo ou quisessem provar seu próprio poder. A primeira razão, apesar de provável, estava longe de imediata, uma vez que “Ele” pouco interagia com aquele povo e a segunda era pouco possível porque nenhum deles tinha um ego tão frágil. 

Com confiança, caminhou por aqueles que, há meses e meses atrás, chamava apenas de Grandes e Fortes Verdes. Alguns o olharam e outros nem o perceberam, sua passagem foi tranquila até que um dos Orcs se colocou em seu caminho. Por um momento imaginou que seus olhos lhe enganavam, aquele em sua frente parecia especialmente baixo para alguém daquela tribo. O Hobgoblin não era pequeno, pelo contrário, ostentava quase dois metros, especialmente alto entre muitas das outras diferentes espécies na Floresta de Dante. Ainda assim, diminuto frente a grandeza de um Orc normal, o que não era o caso daquele em sua frente. Não, os seus olhos não o enganavam, os dois tinham o mesmo tamanho.

Era… curioso, mas insuficiente para que o fizesse parar ou pensar sobre. Precisava seguir antes que suas ideias ficassem vagas, não que fosse esquecê-las, sua memória era ótima, mas o Monstro Verde sempre tinha tantos pensamentos novos que os antigos se dispersavam para terem que ser recolhidos depois e isso era um costume desagradavel. Talvez devesse arranjar um diário no qual fazer anotações, seria útil, mas não muito dentro das possibilidades do que aquela floresta oferecia. Teria que ir a uma cidade para conseguir um e uma viagem dessas estava fora de suas previsões.

Retomando ao que era importante, aquele espécime baixo provavelmente o desafiaria para um conflito e ciente de que a recusa de uma peleja afetaria sua reputação, o Hobgoblin seria obrigado a aceitar. Suas chances não seriam as piores em um dia normal, principalmente considerando que seu oponente era o exemplar menos lisonjeiro daquele acampamento. Naquele dia? Se via menos confiante, ainda não se recuperara de toda aquela ingestão de água salgada e faltava muito  para voltar ao seu estado pleno de saúde.

A luta com os Homens Lobos pouco ajudou sua recuperação.

Talvez golpes rápidos e precisos em regiões da cabeça, ou então ataques fortes em áreas sensíveis como o pescoço ou articulações dos membros.

A boca do Orc se abriu, sem dúvida, para fazer o tão fatídico desafio para a luta, uma luta que não veio acontecer, contrariando todas as expectativas do Hobgoblin.

— O chefe quer falar com tu. — disse e foi embora.

O Monstro Verde ficou alguns segundos parados fazendo sua melhor atuação como Lauany, pois tinha os lábios em formato de “O” e faltou pouco para que exclamasse um “Oh” surpreso. Lhe ocorreu que talvez pensasse demais nas coisas e poderia ser melhor, ocasionalmente é claro, apenas seguir o rumo dos acontecimentos sem tentar os prever. Tão rápido quanto surgiu, esse pensamento se foi, uma vez que nada impediria o monstro obcecado com planejamento de ser um monstro obcecado com planejamento.

Movido mais por curiosidade do que qualquer outra coisa, “Ele” se dirigiu até aquela que supunha ser a tenda onde vivia o chefe devido ao seu tamanho. Suposição incorreta, mas ainda fez com que chegasse ao lugar certo.

O local não era para descanso, não com aquela falta de móveis e itens apropriados para tal fossem rudimentares ou não. O maior espaço era ocupado por uma mesa quadrada larga com papéis e pergaminhos sobre a superfície de madeira. Ladeando-a, haviam peças de armadura de metal e couro juntamente das mais variadas armas e objetos irreconhecíveis para o visitante.

Surpreendente foi ver o Chefe Orc lendo um dos papéis, o Hobgoblin jamais esperou encontrar outro monstro letrado nas línguas do homens e se tivesse que pensar em uma espécie que o fizesse, sua primeira opção não teriam sido os Orcs.

Levantando os olhos dos papéis, o anfitrião sentado em uma grande cadeira de madeira apontou com a mão direita para uma de igual tamanho na sua frente na qual “Ele” se sentou calmamente. Com o cotovelo direito, apoiou-se no braço da cadeira e deixou sua bochecha descansando sobre os nós de seu punho fechado. Cruzou as pernas com uma elegância que não era merecida por nenhum monstro e com um sorriso orgulhoso acenou como quem dá permissão a um subordinado.

Pela paz ou por não se importar, o Orc ignorou a arrogância do monstro em sua frente que agia como se fosse o dono da tenda e pronunciou sem hesitação:

— Vamos tratar de negócios.

O sorriso do monstro bonito se alargou, aquilo ia ser interessante.

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