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Capítulo 6: A água que corre

Após muita persistência, “ele” conseguiu pela primeira vez atirar um dos gravetos de ponta afiada. O projétil não chegou a ir longe e tampouco fez qualquer tipo de furo na parede que era seu alvo. O goblin não havia nem mesmo acertado o local onde pretendia, porém só o fato de conseguir realizar aquela ação, era uma conquista.

A segunda vez só veio após outras dezenas de tentativas falhas. Ter conseguido antes não garantia que o feito se repetiria facilmente e realmente não o fez.

Para cada tiro realizado com sucesso, muitos outros falharam. Se o monstro possuísse a habilidade para contar, iria sentir vergonha da própria falta de maestria. Sua incapacidade felizmente o protegia desse sentimento, embora não fosse capaz de o privar da frustração.

Sua rotina se tornou, basicamente, empenhar-se naquela dura tarefa até chegar ao seu limite. Após isso, ocupar-se-ia com outras coisas e somente no dia seguinte voltaria ao seu treinamento com aquela arma humana estranha. 

Não havia pressa, uma vez que o cipó esquisito não sumiria de repente. Poucos seres naquela região da água escura teriam capacidade para devorar o inimigo, o que não significava que eram raros aqueles com força para cumprir tal objetivo. Em breve, “ele” seria um desses monstros.

O objeto humano não era suficiente, precisava de mais para manter sua pretensão de matar o cipó que faz “ssssss”. Se enfrentasse tal criatura, ia precisar obter uma forma de desviar de seus ataques e ainda fugir caso precisasse. O inimigo era grande o bastante para alcançar sua presa dos galhos e também era uma notável nadador.

“Ele” teria que aprimorar seus movimentos na água e nas árvores, propósito tão impossível para si quanto utilizar a arma humana. O mesmo esforço sobrenatural colocado na primeira missão, teria que ser depositado nas outras.

A água era o primeiro obstáculo a ser ultrapassado, verdade seja dita, um obstáculo muito grande. Sua raça foi feita para permanecer na terra, na maior parte do tempo dentro dela. Se molhar não era algo pelo qual se atraiam, viajar na água igual a outros monstros era um ação que goblin algum sabia fazer.

“Ele” tentaria ser o primeiro.

Tentaria.

Pela manhã, lá estava a pequena criatura infeliz na água que corre. Nunca soube de onde ela surgia, apenas que vinha do oeste onde ficavam as montanhas e seguia caminho pelo meio da floresta sumindo no além do sudeste. Ela era grossa, difícil de atravessar, quem quisesse ultrapassá-la teria que o fazer por cima através das árvores, saltando pelas pedras encontradas em alguns trechos e é claro, atravessando por dentro.

“Ele” escolheu uma parte não muito grossa da água que corre, apenas no caso de ter que desesperadamente retornar a borda. 

Apenas o medo impedia que continuasse. Esse sentimento era o primeiro a ser aprendido na vida de um goblin, o principal companheiro de todos os nascidos naquele inferno. Deve temer, tema aos seus iguais, ao desconhecido, ao mundo. A fraqueza é um pecado e sempre há algo mais forte que você.

Medo era o que permitia aos fracos viverem um dia após o outro. Essa emoção gritava nos ouvidos pontudos do goblins, lembrando de como o que iria fazer contrariava todos os seus instintos.

Pela primeira vez, ignorou esse seu fiel companheiro e tendo o peito cheio de algo que não entendia, pulou na água que corre. “Ele” se arrependeu imediatamente.

Boiar igual aos animais da água parecia fácil, entretanto não era. O seu corpo afundou e por mais que tentasse, não voltava para cima. Era fundo demais para alguém tão pequeno, desesperadamente bateu seus braços, chutou o chão, fez tudo que podia tentando se impulsionar para cima.

Estava sendo levado, não tinha como ficar parado, não contra aquela força da natureza raivosa. Seu corpo doía, a tormenta era intensa e aumentava conforme era carregado por mais tempo. “Ele” pensou que seu corpo fosse partir, tinha certeza que inevitavelmente quebraria feito um galho.

Quando estava prestes a sufocar, alcançou a superfície. Sua garganta puxou todo o ar possível, seus olhos vermelhos de terror encararam o arredor tentando se localizar. Não foi capaz de reconhecer onde estava, as árvores eram ainda maiores do que aquelas com as quais estava acostumado. O sol queimava sua pele onde o suor escorria, o frio do líquido o banhando era insuficiente para apagar o calor nascido de sua agonia.

Os músculos cansados não sustentaram seu corpo na superfície e novamente foi obrigado a voltar para o fundo pelo peso das águas. Não era mais calmo lá embaixo, longe disso. A tormenta o jogava para todos os lados, indiferente para com a sua vida. As pedras eram seu temor, “ele” não podia abrir os olhos para se precaver, entretanto tinha noção de como o trajeto seria cheio de rochas.

Nenhum sentido mais funcionava além de seu tato. Seus ouvidos só captavam zunidos, pareciam inchados e prestes a estourar. A boca engolia mais e mais goles d’água contra a sua vontade, os pulmões quase cheios, a linha de sua vida quase partida.

Era o fim?

O goblin pensou que sim. O corpo fraco acertou algo sólido, dor era a reação imediata, alívio logo em seguida, uma esperança criada pelo seu raciocínio rápido. Outro monstro só teria em mente o sofrimento, “ele” enxergou uma oportunidade. Agarrou a pedra com todos os seus membros, um abraço por sua vida. Usando as pernas se impulsionou na direção da superfície lutando para manter a consciência ameaçada pela falta de ar.

O topo foi alcançado, uma base sólida e escorregadia na qual subiu com dificuldade. Suas pernas inquietas tremeram enquanto ele vomitou água e qualquer outra coisa mais que houvesse engolido nas últimas horas. Desconsolado, empenhou-se em sua busca de entender onde estava.

A compreensão foi uma nova dose de temor. Os troncos das árvores eram mais grossos, de cima desciam muitos cipós, cipós e muito mais cipós, cipós, cipós, cipós e mais cipós.

Por ínfimos segundos isso foi tudo a ocupar os seus pensamentos. Obsessão só interrompida quando o pequeno ser verde encarou ao longe as montanhas, muito mais próximas do que antes.

Montanhas e cipós, cipós e montanhas, cipós, montanhas, cipós, montanhas, cipós, montanhas.

“Ele” sabia onde estava, não devia de forma alguma estar lá. Com medo, achou ter ouvido ao longe o urro deles, eles estavam por perto, não gostava deles, pavor possuía o seu peito só com a idéia de encontrá-los.

A fraqueza tomou conta de si outra vez, um deslize na pedra molhada, uma queda. Sua cabeça de encontro à rocha.

E apenas a escuridão.

Enquanto caia na profunda inconsciência, sentiu algo tocar em seu corpo na água, mãos firmes o pegaram. Braços peludos lhe embalaram e ali soube que havia sido capturado.

Foi esse o seu último pensamento antes de não conseguir pensar mais nada.

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