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Capítulo 36 – Sumiço

Estreitei minhas pálpebras quando visualizei o homem. Ele caminhava lentamente, quase tropeçando. Pareceu que ouviu nossa carroça se aproximando, pois levantou a cabeça e nos olhou. 

Era um idoso, e sua feição era extremamente miserável e sem qualquer tipo de esperança. Vestia trapos, e senti o hálito de álcool quando o mesmo abriu a boca ao pararmos com a carroça ao seu lado.

“Está tudo bem, senhor?” Vivian perguntou gentilmente, colocando o corpo para frente para poder olhar o idoso nos olhos, afinal ele estava do meu lado direito.

O homem pareceu confuso, sem mostrar qualquer indício de que entendeu a pergunta. Ele ignorou Vivian, e a mesma bufou.

“O que está fazendo tão longe da cidade?” Vivian perguntou novamente, e foi ignorada que nem antes.

“Merda, um bêbado aleatório. Não podemos deixar ele aqui, peça para ele subir na carroça, levaremos ele até a cidade.” Vivian ordenou enquanto descia da carroça e subia na parte de trás dela, movendo algumas caixas para liberar espaço para o homem.

Desci do veículo e me encontrei com seus olhos mortos ao levantar a cabeça. “Suba.” Ordenei, mas não obtive respostas.

Já estava acostumado em lidar com bêbados, afinal vivi com Roger, mas ele não era tão complicado. No máximo ria sozinho e dormia que nem pedra, mas esse idoso era diferente.

No entanto, meus instintos me disseram que aquele vazio em sua feição não foi causado pelo álcool.

“Você está bem?” Perguntei inutilmente. Pisei no pé direito desprotegido do homem, mas nem essa dor o despertou.

Pulei e agarrei sua gola, puxando-o para baixo. O mesmo caiu ajoelhado na minha altura, me permitindo estapear seu rosto.

Após quatro tapas, ele mostrou sinais de consciência. “O-o quê…?” Seus olhos brilharam com um pingo de raciocínio. “Onde estou?”

“Acorde.” Ordenei novamente, e o mesmo começou a chorar. Lágrimas rolaram de seu rosto enquanto ele encostava suas mãos em meu rosto.

“Kelly?” Indagou incrédulo, e estranhei seu toque repentino e expressão. “Onde você estava? Sabia que o vovô procurou você por todos os cantos? Por favor, nunca mais faça isso…” Declarou enquanto me abraçava e soluçava.

Meus instintos não identificaram nenhuma ameaça, então permiti seu gesto. “Meu nome não é Kelly.” Revelei, empurrando o peito do idoso após alguns segundos.

Ele apenas riu entre soluços nos primeiros segundos, mas acabou percebendo a realidade após limpar seus olhos e me olhar com atenção.

“… Você não é minha neta, né?” Ele perguntou desolado, quase se perdendo em meio ao vazio que residia em seu olhar anteriormente.

“Não.” Neguei friamente. 

“Oh… Vejo que minha esperança está me enganando novamente…” Reclamou, massageando as têmporas.

“Me ignore, sou apenas um velho bêbado, estou usando a bebida para me consolar.” Declarou o homem, tomando um gole da garrafa que segurava.

“Ei, como está aí?” Vivian apareceu ao nosso lado, batendo as mãos para limpar a poeira.

Alternei o olhar entre os dois. “Não sei.” Respondi honestamente. Não sabia o que estava acontecendo ali.

“Oh, olá… É que esse garoto parece muito minha-” O idoso de repente parou de falar, e choque refletiu em seu rosto.

 “… Minha neta desaparecida…” Terminou em tom de amargura alguns segundos depois.

Vivian estreitou os olhos. “Desaparecida? Onde que ela desapareceu? Na floresta?” Indagou, e a miséria no rosto do homem se intensificou.

“Em Furtel.” O idoso revelou, e a expressão de Vivian se espantou. 

“Na cidade? Sequestros não são comuns lá.” A mulher declarou, cruzando os braços.

“Não eram até um tempo atrás, já desapareceram dezessete crianças de oito meses pra cá. E minha neta faz parte desse número…”

“Sinto muito, falaremos sobre isso na viagem. Suba, por favor, te daremos uma carona para Furtel.” Vivian declarou, subindo na carroça, e me puxando junto.

Percebi meus cabelos completamente escuros e lisos voando na direção oposta quando fui puxado, e talvez aquilo explicasse o motivo do idoso ter me confundido com sua neta.

“Quer ajuda para cortar seu cabelo?” Vivian indagou quando me percebeu segurando uma mecha de cabelo. A mecha já estava abaixo dos meus ombros.

Não me importava com seu comprimento, mas aquela foi a primeira vez que percebi seu tamanho. No entanto, eu o cortaria se crescesse muito, afinal isso poderia ser uma desvantagem em uma luta.

“Não.” Respondi enquanto me virava para trás. O idoso, que disse ser chamado Berton uns minutos atrás, estava deitado no espaço que Vivian montou para ele.

“Por que ajudou ele?” Indaguei honestamente. Já havia entendido que era a obrigação de um mago saber ser discreto, por isso não entendi as ações de Vivian.

No meu ponto de vista, seria menos arriscado para nós matarmos ele.

“Como assim?” Ela respondeu enquanto ria. “O que você quer dizer?” 

“Quero dizer o que perguntei. Por que nós ajudamos ele?” Questionei novamente.

“Hmm, não acho que você precise de motivos para ajudar um idoso desolado pelo sumiço da neta, quase caindo bêbado em uma estrada a quilômetros de casa.”

Fiquei em silêncio. Aquilo era contraditório, eu estava naquela situação para poder provar para Hark que eu poderia ser discreto e digno de confiança, mas não parecia muito discreto salvar alguém daquele jeito.

Não falei mais nada sobre aquilo, até que lembrei do evento que Vivian citou antes de partirmos.

“Sobre o grupo de mag-” Vivian de repente tampou minha boca com sua mão. Sua pele era macia, mas seu rosto demonstrava hesitação.

Seus olhos apontaram para atrás da carroça, e percebi que quase falei demais perto do homem.

“Falaremos sobre isso quando estivermos sozinhos em um quarto na taverna.” Vivian sussurrou em meu ouvido.

Assenti e apenas observei as paisagens que não mudaram frequentemente. As vastas planícies esverdeadas continuavam até o horizonte, mas passamos por alguns bosques e uma floresta.

Paramos algumas vezes para o cavalo descansar e conversarmos. Berton contou um pouco de sua vida, de como perdeu sua filha e genro em um acidente, ficando com apenas a neta como parente vivo.

O idoso era um lenhador e construiu uma casa para ele e a neta na cidade. Disse que um dia ele a deixou sozinha para ir trabalhar, e quando voltou, encontrou a casa revirada e sua neta desaparecida.

De acordo com ele, ela tinha dez anos, uma idade próxima à minha. E ela sumiu três semanas atrás.

Escutei isso sem querer, não me importava com o destino real dela. Não a conhecia, e a missão era muito importante para eu me desconcentrar com empatia.

Apenas prometi junto com Vivian de que iríamos até ele se encontrássemos sua neta.

Então, enxerguei um grande muro no final da estrada, e um largo portão de madeira. Não havia nenhuma carroça ou carruagem entrando ou saindo, mas dois guardas sinalizaram para Vivian parar a carroça.

“Caralho, que mulher gostosa.” Um deles falou para o outro enquanto se aproximavam. Vivian pareceu não ouvir, mas minha audição me permitiu escutá-los de longe.

Dois homens vestindo cotas de malha sobre uma armadura de couro rígido pararam ao lado da carroça.

No meu lado, um homem barbudo e calvo de cabelos marrons me analisou com os olhos.

Do outro, um homem de meia-idade sem qualquer tipo de fio na cabeça abordou Vivian. “Boa tarde, jovem senhorita. Qual o motivo da visita em nossa próspera cidade?” Questionou o careca.

“Viemos participar do evento em que a jovem Linya receberá conselhos de outras mães. Conheço ela, queria compartilhar o que aprendi criando meu filho sozinha.” Vivian mentiu enquanto apontava para mim.

Senti olhos me estudando. “Ele não parece em nada com você, exceto pelo rostinho bonito.” Comentou o homem calvo, e entendi suas intenções imediatamente.

“Berton?” O homem careca perguntou quando foi para trás da carroça. “O que está fazendo aí?”

“O-liver, tudo bem? Essa mulher gentil e seu filho estão me dando uma carona, me acharam bêbado na estrada.” Declarou o idoso, convencendo o guarda imediatamente. Provavelmente aquela não foi a primeira vez que ele foi para longe da cidade enquanto bebia.

Os guardas não pareciam competentes, então após alguns minutos de perguntas e respostas Vivian conseguiu convencê-los e adentramos na cidade.

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Olá, eu sou Kalel K. Dessuy!

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