Aquela foi uma visão interessante. Eu não sabia mais como era uma cidade de verdade, com habitantes e casas ocupadas.
Caminhar por construções abandonadas e empoeiradas havia se tornado um hábito, então presenciar tantas coisas acontecendo fez meu olhar se aguçar.
Crianças brincando na terra, logo antes de um homem sair de dentro de uma casa e repreendê-las, ordenando para as mesmas voltarem.
Dois cachorros disputando por um rato morto, que alguns minutos depois foi separado em dois, fazendo os cães se contentarem com aquilo.
Roupas simples e furadas sendo retiradas de varais no segundo andar de uma casa, um casal discutindo na janela de outra, e mais.
Observar aqueles becos e casas atrás da taverna foi meu passatempo até Vivian sair do banho.
“Nossa, tô pensando em roubar esse óleo. É muito bom! Minha pele fica tão macia.” Comentou ao sair do banheiro. Senti um odor agradável e suave de bálsamo no corpo de Vivian, mas não falei sobre.
Ela provavelmente se secou lá dentro, afinal estava completamente seca. No entanto, um pijama de lã branca cobria seu corpo.
“Tome um banho também, vale a pena. Ali tem um óleo de amêndoas que deixa a pele e o cabelo incríveis!” Vivian declarou enquanto se sentava na cama.
Meu cabelo estava oleoso e grudento, minha pele suja e suada. Limpar meu corpo era o melhor mesmo.
Entrei no banheiro e me deparei com uma banheira de madeira úmida. Uma cadeira estava perto da parede, com alguns frascos e um pijama dobrado.
Senti o mesmo cheiro de Vivian nos frascos, então presumi que aqueles eram os óleos. Retirei meu manto, ficando completamente nu.
Entretanto, eu não fazia ideia de como limpar meu cabelo e pele adequadamente usando um óleo, então apenas derramei tudo em minha cabeça e rosto.
“Aaah!” Vivian exclamou enquanto puxava o frasco de minha mão. “Não é assim, se você passar muito vai deixar o cabelo e pele muito oleosos.”
Após essa repreensão ela olhou para mim com pena. “Desculpa, eu devia ter imaginado que você não sabia usar isso direito. Nunca vi você agindo como uma criança, isso me faz esquecer que você é uma.”
“Vamos, vire-se. Te ajudarei nisso.” Declarou e obedeci. Ela esfregou meu cabelo por alguns minutos antes de enxaguá-lo com água.
Fez isso com meu rosto, ombro, braços e costas. Até se ofereceu a limpar todo meu corpo, mas recusei.
Após eu me esfregar e limpar inteiramente, ela usou magia para secar meu corpo. Mesmo fogo não sendo sua especialização, seu domínio nesse elemento era melhor que o meu.
Ela conseguiu criar uma camada fina e controlada o suficiente para evaporar toda a água que cobria minha pele em segundos, mas sem deixar eu me queimar.
“Acho que esse pijama vai ficar muito largo em você, mas tudo bem. Amanhã compraremos algumas roupas mesmo.” Vivian declarou enquanto me vestia com o mesmo tipo de vestimenta que ela.
Não achei necessário ela me vestir, mas não a impedi. Aquele pijama era a roupa mais confortável que já havia vestido.
A lã era quente e macia, me deu vontade de vesti-la por baixo do manto preto o tempo todo.
“Já está tarde. Vamos acordar bem cedo amanhã para aproveitarmos bem o dia.” Vivian declarou enquanto se sentava na cama e apagava a lamparina ao lado.
Consegui enxergar o quarto inteiro perfeitamente mesmo no escuro, então caminhei até o meu lado da cama sem nenhum problema.
Dormi rapidamente e a noite passou em um piscar de olhos, mesmo com pesadelos assolando minha sanidade. Quando percebi o sol já havia acordado eu e Vivian.
Esses sonhos provavelmente enlouqueceriam qualquer um, mas minha resiliência mental era completamente anormal depois de cinco séculos de sofrimento.
Sonhos não me afetavam quando eu já havia sentido-os na realidade, por mais que eles atrapalhassem meu descanso.
“Você se mexe muito enquanto dorme.” Vivian riu. A mesma se levantou e vestiu o manto preto após desvestir o pijama. Ela ficou nua por alguns segundos, mas não me importei.
No entanto, alguns hematomas estavam no lado direito de seu torso. “Isso? Está tudo bem, você me socou algumas vezes enquanto dormia.”
Me senti culpado quando descobri isso. Eu de fato muitas vezes instintivamente me defendia ou atacava em meio à imensidão de demônios irreais, mas não tinha controle sobre isso.
“Peço perdão. Tenho muitos pesadelos, na próxima vez dormirei no chão. Já estou acostumado a dormir na caverna mesmo.” Declarei enquanto me levantava e repetia os movimentos de Vivian.
Foi um golpe crítico em meu humor ter que retirar aquele pijama confortável para poder vestir aquele manto fedorento, mas tive que fazer isso. Fiquei nu por alguns segundos antes de me vestir.
Lembrei dos cristais de mana quando instintivamente coloquei as mãos no bolso, mas eu não tinha os levado junto.
Não queria arriscar perdê-los ou ser descoberto com eles, então os deixei dentro do armário no meu quarto na casa de Roger.
Deixei minha espada dentro do quarto, afinal não conseguia escondê-la direito debaixo do manto, então apenas embainhei a adaga no cinto, após isso saí do quarto.
Segui Vivian para baixo do andar e a esperei conversar com o homem que descobri ser o dono da taverna.
Escutei ela exigir alguns serviços, como a alimentação e cuidado do cavalo que nos esperava lá fora. Vivian pagou algumas moedas a mais para alugar um espaço no estábulo ao lado para isso.
Os homens do dia anterior não estavam lá.
“Vamos.” Ela falou e a segui para fora. O sol iluminou as ruas movimentadas de Furtel, presenciei pessoas carregando cestas e mercadorias artesanais ainda cedo, carroças cheias de caixas ocupando espaço na estrada e mais.
Eu e Vivian vestimos nossos capuzes e seguimos ao oeste. Após vários minutos, a moça parou em frente a uma loja com vitrines de vidro.
Vestidos, ternos, roupas simples e chamativas, tudo podia ser visto pelo lado de fora.
Ela entrou e fiz o mesmo, apenas observei as roupas e a conversa com o homem que parecia ser o dono.
Tudo estava bem, até que senti um cheiro estranho. Um odor forte, principalmente de ferrugem, além de um cheiro químico esquisito.
A fonte do odor era o homem. Ele vestia uma roupa simples, mas levemente adornada com seda. Me aproximei e percebi que suas mãos eram a principal fonte do odor.
“Você tem um cheiro estranho.” Declarei repentinamente. Tanto Vivian quanto ele se surpreenderam.
“Meu Deus, desculpa. Meu filho não tinha intenção de ofendê-lo.” Vivian se desculpou, o homem apenas sorriu timidamente.
“Está tudo bem, é que eu mexo muito com tinta e ervas para colorir algumas roupas. Seu filho tem um ótimo olfato…” Ele riu enquanto esfregava as mãos.
Aquilo fazia sentido, então não pensei muito sobre. Nem sabia porque fiz aquilo, acho que o odor forte acionou algum instinto em mim.
“Então, que tipo de roupas você quer?” Ele perguntou enquanto caminhava pela loja e mostrava algumas roupas.
“Um terno preto sob medida para ele, e um vestido azul e longo para mim. Sem adornos chamativos ou algo do tipo. Sem decote ou saia. Ah, e um par de sapatos pequenos de couro preto e um par de tamancos da mesma cor do vestido.” Vivian listou após alguns segundos.
“Está bem. Tenho tudo isso, apenas precisarei ajustar em seu corpo. O mesmo para seu filho.” O homem falou enquanto ia para os fundos.
Vivian e eu tivemos que ir para um canto da loja e termos nossos corpos medidos pelo homem, que usou um tipo de fita e algumas réguas estranhas.
“As duas roupas ficarão prontas amanhã, pode vir buscá-las antes do meio-dia.” Ele declarou depois de revelar o preço para Vivian.
Estava apenas observando, mas o odor que discretamente dominava o ambiente estava começando a me incomodar.
Por causa disso, saí da loja para esperar Vivian do lado de fora, mas encontrei pessoas conhecidas.
Os mesmos homens do dia anterior estavam em um beco no outro lado da estrada. Eles estavam olhando para mim e para a loja.
Presumi que Vivian demoraria mais alguns minutos lá dentro, e eu poderia resolver aquele pequeno problema em bem menos tempo.
Pensando assim que eu atravessei a rua e me encontrei com o grupo de homens.
