Encarei o mundo com um olhar indiferente enquanto seguia Vivian. Refleti sobre minhas últimas ações e pensamentos.
Algumas coisas eram irônicas e isso me deixou pensativo. Quando matei a mulher doente, senti culpa. Mesmo as circunstâncias me forçando, um remorso marcou minha consciência por um tempo.
Ela era completamente inocente e dei o meu melhor para lhe dar uma morte digna e indolor, mas mesmo fazendo isso, ainda me sentia culpado.
Mas agora foi diferente.
Nessa época eu ainda estava quebrado mentalmente. Os séculos de sofrimento criaram inúmeras sequelas e traumas em mim, e uma dessas sequelas foi o sadismo.
Tanto a mulher quanto os homens eram humanos, seres-vivos que se esforçavam para viver, mas a discrepância de valor que suas vidas possuíam a meu ver era imensa.
Não senti culpa torturando-os, e sim satisfação.
O desejo sexual que senti em suas feições quando olharam para mim feriu meu orgulho profundamente. Meus instintos queriam que eu os dessem uma morte humilhante e dolorosa, e assim fiz.
Ninguém poderia me culpar.
Eles vieram atrás de mim e de Vivian primeiro, eles me agrediram primeiro, me sequestraram primeiro, tentaram me abusar primeiro.
Apenas não esperavam que eu não era uma criança fraca, e sim alguém pior que qualquer demônio.
‘Eu sou aquele que pune os demônios.’ Declarei em minha mente para o céu. A lembrança da deusa brilhante surgiu em minha imaginação nesse momento.
Coloquei o assunto no fundo da minha mente após isso. Eu tinha certeza que aquele mundo era pisoteado por pessoas piores e mais deploráveis ainda, não poderia permitir meros bandidos ocuparem espaço em minha mente.
“Sirius, que tal visitarmos alguns lugares? Não sei quando você vai poder ter a chance de visitar uma cidade tão cedo, ainda mais acompanhado de uma mulher bonita.” Vivian riu enquanto me oferecia a mão.
“Tem algum lugar em mente? Quer fazer compras em alguma feira?” Ela indagou enquanto eu aceitava sua mão, assim parecemos mais como uma mãe e filho.
Nesse momento me lembrei das palavras de Roger sobre mercados negros e mágicos.
“Mercado mágico.” Sussurrei em seu ouvido depois de pedir para ela se abaixar. Vivian fez uma expressão séria ao ouvir minha resposta.
“Falaremos sobre isso no quarto, mas agora não vai dar, okay?”
Assenti com a cabeça e continuamos a caminhar. Eventualmente chegamos em um grande pátio lotado de pessoas e barracas com uma diversidade de produtos.
Frutas, carnes, bijuterias, artesanatos, e mais. Um vendedor deu duas maçãs de presente para nós como uma tentativa de cortejo com Vivian.
Comi a fruta pela primeira vez. O sabor cítrico, mas ao mesmo tempo doce, surpreendeu meu paladar acostumado com carnes assadas sem qualquer tipo de tempero.
Experimentamos outras comidas e frutas, foi uma experiência muito interessante, isso me ajudou a clarear a mente.
Muitos homens paravam Vivian, mas ela os ignorava sempre que podia. Quando insistiam, ameaças e ofensas corriam soltas no ambiente.
No decorrer do passeio percebi que Furtel era realmente labiríntica. Muitas ruas eram apertadas e sem saída, inúmeros becos davam acesso a casas e prédios comuns.
Não era raro ver duas casas uma na frente da outra, com poucos metros de distância de ambas as portas.
Essa má infraestrutura muitas vezes confundia eu e Vivian, mas conseguimos voltar para a taverna no entardecer.
Subi para o quarto enquanto ela conversava com o dono sobre alguns serviços de quarto, inclusive a escutei exigir mais óleos de amêndoa.
O dia tinha sido cheio, muito cheio. Conheci o interior da cidade, experimentei muitas coisas novas, presenciei a rotina de uma mulher bonita no meio de vários homens inconvenientes.
Claro, também torturei seis sequestradores que queriam me estuprar.
No entanto, eu precisava treinar. Me incomodava ficar mesmo um dia sem melhorar meu controle mágico.
Me sentei no chão e iniciei minha meditação. Inúmeros fios multicoloridos apareceram ao meu redor quando alternei minha visão.
Controlei e criei várias formas de diferentes tamanhos, variava entre apenas uma forma grande ou várias pequenas.
Existiam muitas formas de melhorar o controle mágico, mas eu praticava com todas as técnicas que conhecia. Meu desespero para conseguir masterizar a magia era imenso.
Após alguns minutos Vivian entrou no quarto, mas não olhei para ela. Permaneci focado no treino, ela respeitou isso.
Vivian entrou e saiu do banho enquanto isso, mas não prestei atenção.
Nada mais existia no mundo enquanto a energia prismática me rodeava. Aqueles fios brilhantes eram a única coisa que importava durante meu treinamento.
Logo anoiteceu e a lamparina ao lado da cama iluminou o ambiente, mesmo que sua luz fosse insignificante comparada à mana.
Suor escorreu pelo meu corpo enquanto eu esvaziava e enchia meu núcleo, mas persisti.
Eventualmente presumi que havia treinado o suficiente e me levantei. Encontrei Vivian deitada na cama lendo um livro.
Ela estava vestindo o pijama de lã e isso me fez sentir inveja. Mal podia esperar para tomar um banho e vestir essa roupa.
“Você realmente gosta de treinar, né?” Vivian comentou enquanto tirava os olhos das páginas do livro e os colocava em mim.
“… Acho que sim. A sensação de melhorar meu domínio naquilo que me permite viver é incrível.” Declarei enquanto tirava meu manto.
Fiquei nu e estava prestes a entrar no banheiro, mas Vivian me impediu.
“Mas o treino dentro de um quarto tem um limite.” Ela revelou. Fiz uma expressão confusa quando me virei para ela, mas ela esclareceu minhas dúvidas depois.
“Por que você quer ficar forte? Quer matar todos seus inimigos? Quer poder se defender de qualquer um que queira seu mal? Quer proteger aqueles que ama?”
Pensei em responder, mas não tive a chance. “Nós magos somos guerreiros, mesmo não querendo. Somos forçados a resistir, ou morremos.”
“Para podermos apreciar o dom e segredos da magia, precisamos lutar por isso. Somos azarados, afinal nosso reino nos caça, mas nós resistimos.”
“Sirius, você terá que lutar incessantemente para poder ficar mais forte. Postulados, mercenários, Campeões… Todos acima da hierarquia nesse reino são seus inimigos.” Vivian declarou em um tom sério.
“O que quero dizer é, você precisa ter conhecimento de batalha. Precisa saber como um oponente que sabe que você é um mago age, como ele reage aos seus feitiços, como ele luta de volta… Eu te ensinarei isso quando voltarmos para as montanhas.”
Não esperava essa conversa, mas aceitei a proposta. Vivian não sabia que eu tinha uma experiência de batalha secular, mas ela tinha razão. Eu nunca lutei com um humano que sabia que eu era um mago, eu desconhecia como não-magos se defendiam de magia.
Claro, havia lutado contra Hark, mas ele também era um mago.
Conversamos um pouco mais antes de eu entrar no banheiro. Já sabia como me lavar com os óleos, então não precisei da ajuda de Vivian.
Aproveitei para lavar meu manto. A água da banheira se tornou vermelha quando o sangue seco foi retirado.
‘Acho que essa é a cor que mais vi na vida.’ Comentei comigo mesmo ao observar a água carmesim lentamente se diluindo e voltando à sua cor transparente normal.
‘… Parece uma maldição.’
Continuei refletindo. Mergulhei meu corpo completamente por alguns segundos para relaxar.
Preparei as várias perguntas que faria para Vivian depois, junto com algumas dicas sobre magia.
Sinceramente, esse período foi o melhor que havia vivido.
Dormir em uma cama grande toda noite enquanto vestia um pijama confortável. Tomar banho em uma banheira com vários óleos incríveis, passear e explorar a cultura humana em uma cidade povoada e grande.
Mas não deixei essas boas sensações me atrapalharem, afinal eu estava lá para cumprir um objetivo, e faltava poucos dias para isso acontecer.
