Saímos da loja comigo sem conseguir ver um palmo na frente, pois bolsas e sacolas repletas de suprimentos ocupavam toda minha visão enquanto eu segurava as compras.
Stella apenas sorria ao meu lado, me provocando. Ela estava carregando Caedes por mim.
Havíamos comprado carne seca, cantis de água, cobertores resistentes, talheres e utensílios que facilitariam em muito a viagem.
Todavia, o preço tinha passado do bronze e custou uma moeda de prata, equivalente a cem moedas de bronze.
“Não sabemos o que podemos fazer para te agradecer, senhor Levi.” Stella declarou com um sorriso grato.
Eu não costumava me sentir em dívida com alguém, pois para mim toda ação gentil esconde um desejo de retribuição por trás.
Mas eu não vi o padre pedir nada em troca. Ele ajudou simplesmente por ajudar, o que não pude evitar achar suspeito.
‘É isso que as pessoas fazem pela fé?’ Pensei ao andarmos até a casa de Quiara e Frank após várias horas. Neste ponto já havíamos nos separado de Levi, que foi abordado por uma criança chorando.
Logo descobrimos que ele cuidava de alguns órfãos em uma catedral perto, o que adicionou mais bondade em sua figura.
A ficha ainda não tinha caído que existia pessoas boas assim, mas logo parei de pensar no assunto quando entramos na cabana do casal e encontramos Quiara sentada no chão, chorando.
Seu rosto estava cheio de hematomas e seu lábio rasgado. Stella correu até a mulher para ver o que aconteceu, enquanto eu colocava as compras no chão ao lado da porta.
Frank estava sentado num sofá de couro enquanto bebia de uma garrafa de cerveja. “Ah, vocês chegaram. E aí, como foi? Belas roupas.” Comentou antes de dar outro gole.
Permaneci em silêncio, os problemas domésticos deles não eram do meu interesse, contanto que não me afetasse.
Encarei Stella ajudando Quiara, mas a caçadora não quis se levantar. Ela parecia em pânico.
“O que você fez?” Perguntei para o homem em um tom mais frio que o inverno.
“Coloquei ela no lugar dela. Como mulher.” Frank respondeu secamente. “Faz um tempo que eu não dou um sarrafo nela, acho que se esqueceu de quem é o homem da casa.” Declarou ao continuar bebendo.
“Não faça isso enquanto estivermos aqui. Não quero que minha irmã veja uma cena dessas.” Ordenei ao caminhar até elas e colocar a mão no ombro de Stella por trás.
“Acalme-se.” Sussurrei no ouvido dela. “Não sinta empatia por ela. Isso só vai nos atrapalhar.” Falei próximo da garota, mas encarando o olhar choroso de Quiara.
Stella suspirou, mas continuou apoiando a mulher. Saí de perto e organizei nossos suprimentos em um lugar seguro na cozinha.
“Ela está se recuperando de um ataque de urso e ele faz isso, como é capaz?” Stella indagou ao me abraçar por trás enquanto eu mexia dentro de uma sacola, atrás do balcão da cozinha.
“Não se rebaixe ao tentar entender a mentalidade de humanos simples.” Declarei ao aceitar o abraço.
“Pense apenas em nós dois. Estamos sozinhos, Stella.” Falei ao me virar e abraçá-la de frente, acariciando seu cabelo. “Você me acha forte, não é?” Perguntei ao afastá-la um pouco e encarar seus olhos prateados.
A garota assentiu de maneira triste, desviando o olhar. “Eu apenas sou forte porque sou capaz de focar no meu objetivo. Tudo que não me leve diretamente a ele não tem valor, exceto algumas coisas importantes.” Anunciei com orgulho e voz fria.
“Qual seu objetivo, Stella?” Indaguei ao apertar seus ombros. “Olhe para ele!” Declarei ao balançar seu corpo.
“… Meu objetivo?” A garota questionou para si. “Acho que era orgulhar mestre Lívia… Mas agora é continuar viva…”
“Então conte comigo para isso.” Anunciei, beijando sua testa. Nem eu entendi porque fiz isso, mas meus instintos me apoiaram.
“Tente ir dormir, vou ir pegar aquele mapa, daqui a pouco eu volto.”
Assim que falei isso, a garota correu e subiu uma escada de madeira para o pequeno sótão. Quiara e Frank estavam dentro do quarto, de onde consegui escutar gemidos.
‘Espero que tenham terminado quando eu voltar.’ Pensei ao empunhar Caedes e partir para a vila. Já era noite e poucas pessoas caminhavam pelas ruas de Vonlet.
Caminhei discretamente entre as ruas iluminadas por tochas e pela luz que saía das casas movimentadas. Após alguns minutos cheguei na casa do líder, onde observei pela janela o que o mesmo fazia.
Sua casa também era simples e eu conseguia o ver dormindo em uma cadeira perto da lareira, segurando um livro que estava quase caindo no chão.
Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Suspirei e bati na superfície de madeira repetidamente, até o homem acordar e me receber com uma expressão raivosa.
“O que caralh-” Antes mesmo que pudesse reclamar de mim, uma pequena nuvem de escuridão entrou pelo seu nariz e o derrubou no chão.
Passei por cima de seu corpo desacordado e fechei a porta, escondendo tudo que eu faria do mundo.
Não havia muitas coisas lá, então procurei no segundo andar, onde só havia caixas empoeiradas e bugigangas inúteis.
O andar inteiro era um único cômodo abandonado e pegadas na poeira do chão me levaram até um baú cercado por quadros de arte brancos e rasgados.
Para minha sorte, o mapa estava lá, envolto por um nó de fios escuros.
‘Isso vai ser bem útil.’ Pensei ao sair cuidadosamente pela porta da frente. Ninguém parecia ter me visto, então fui embora após arrastar o líder da vila até a cadeira e fechar a porta.
Guardei o mapa dentro da minha camisa e voltei para a cabana de Quiara e Frank enquanto encarava o céu.
Olhar para as estrelas agora me remetia aos olhos de Stella. Sua íris prateada, repleta de minúsculos pontos brilhantes e amarelos, a tornava especial entre todos os humanos que já conheci.
Entretanto, um grito ecoou pelas árvores e me alcançou quando estava saindo da vila. Eu reconheci o grito, pertencia à caçadora, isso me fez correr como uma besta.
“Assassina!” A voz de Quiara gritou quando entrei na cabana apressadamente.
A cena que vi foi horrível.
Frank estava empalado pela garganta, nu e de cabeça para baixo, em um espinho de gelo de cinco metros de altura.
No segundo andar eu fiz contato visual com Stella, que cobria a boca em pânico e derramava lágrimas.
“O que aconteceu?!” Gritei ao entrar e chegar perto do cadáver. Parecia um acidente, tirando a parte do grande espinho de gelo que apenas Stella lá poderia criar.
Não obtive respostas, então rapidamente subi pela escada e encontrei Stella em posição fetal. “O que houve?” Indaguei, agarrando seus ombros.
“Eu… Eu.. Matei ele…” A garota revelou enquanto chorava. “Ele apareceu do nada… Pelado, tentando me tocar… Foi sem querer… Eu empurrei ele da beirada e quando vi aquilo aconteceu!”
Nada, absolutamente nada no mundo inteiro poderia explicar ou se comparar ao tamanho ódio que senti naquele momento.
Aquele homem teve a maior sorte da história de ter morrido antes que eu chegasse.
“Mataram meu marido com poderes demoníacos! Me ajudem!” Quiara gritou depois de sair pela porta da frente e correr para longe.
Envolvi Caedes em magia de vento e segurei Stella no meu colo antes de pular do sótão e correr para fora.
Nos curtos segundos que se passaram, inúmeros aldeões de Vonlet haviam se reunido ao longe enquanto Quiara implorava em seus pés.
“Magos assassinos! Os forasteiros são magos!” Gritou em desespero.
Fiquei parado na frente da cabana, observando todos aparecerem com ferramentas e tochas.
“Ei.” Falei para Stella, que estava em pânico por ter matado pela primeira vez.
“…” Ela não respondeu, apenas me olhou com seus olhos tristes.
“Espere um pouco e feche os olhos.” Avisei ao colocá-la em cima de Penumbra. “Tampe os ouvidos também.”
A garota pareceu querer me impedir, mas me obedeceu quando eu sorri para ela.
Então me virei para o monte revoltado de camponeses. Havia dezenas de pessoas, inclusive algumas crianças atirando pedras em mim.
“Se para vocês Stella é um demônio… Imagino o que eu serei.” Falei friamente ao brandir Caedes.
Aquele seria o dia que uma vila inteira sumiria.
