Alice percorria com apreensão as movimentadas ruas de Etterbachen, lançando olhares frequentes para trás para se certificar de que nem Vítor, nem Herman a estavam seguindo. Apesar de sua constante vigilância, não percebeu a presença da figura encapuzada nos telhados, que a observava atentamente desde o momento em que saiu do esconderijo.
A primavera transformava as ruas de Etterbachen em um cenário agitado, com a retomada das as atividades de mineração nas montanhas ao norte, por isso centenas de navios desciam o rio Rhein carregados de carvão e minério de ferro. Outra atividade importante também se iniciava na primavera, a agricultura.
O mercado de Etterbachen, fundamental para a sobrevivência da cidade, estava particularmente lotado naquele dia. A chegada de um carregamento de minério de ferro para as siderúrgicas locais era a motivadora daquela agitação.
Isso era devido à alta demanda por armaduras para os heróis, os únicos que ainda preferiam essa tecnologia antiga. Nos últimos meses, centenas de heróis haviam chegado a Testfeld, prontos para combater a décima terceira calamidade.
Durante a fuga de Alice no movimentado centro da metrópole, no meio da agitação da multidão explorando lojas e barracas, ela foi abordada por uma adolescente de quatorze ou quinze anos. A garota mantinha uma pequena mesa e banca discretas entre tantas outras, mas capturava a atenção de Alice.
— Olá, como posso ajudar? — cumprimentou a jovem com um sorriso. Os olhos verdes esmeralda que possuía conseguiam hipnotizavam qualquer um — Talvez você queira uma leitura de sorte?
— Obrigada — respondeu Alice, devolvendo o sorriso. — Estou com pressa no momento, talvez outro dia?
— Posso te ajudar, não pode fugir para sempre. — Sorriu e mostrou uma pequena bola de cristal em cima da mesa.
— Como? — indagou Alice, confusa com a afirmação da jovem. — Mesmo que eu quisesse, não tenho dinheiro para pagar.
— Ah… — Suspirou desapontada. — Tudo bem, eu aceito outras coisas como pagamento, como comida.
Alice se comoveu com pena. Sentiu simpatia pela garota, entretanto, antes de falar qualquer coisa, viu algo que a deixou preocupada. Do outro lado da rua, Otaviano andava com alguns heróis ao seu lado. Quatro deles eram brutamontes enormes, cada um com uma arma diferente. E ainda havia um quinto, o mais diferente do grupo.
Esse quinto herói vestia o uniforme branco da guilda dos Dragões do Sol, seus cabelos eram loiros e iam até o pescoço, enormes olheiras estavam estampadas em ambos os olhos. Ele caminhava lado a lado a Otaviano, enquanto os outros vinham atrás deles.
— Desculpe, mas realmente tenho que ir… — falou Alice, para se afastar na direção oposta do grupo.
— Boa sorte! — Expressou a jovem com um grande sorriso no rosto.
Alice apressou o passo, apenas para ver Zoe com duas garotas paradas na frente de uma loja de roupas. Zoe estava sem as suas esferas, segurando apenas um cajado branco na mão esquerda e com a direita apontava para um vestido na vitrine.
As duas garotas com ela eram idênticas, ambos com pele escura e longos cabelos pretos cacheados. Diferentemente de Zoe, elas estavam uniformizadas para a batalha, a primeira com uma espada na bainha e a segunda com uma aljava nas costas.
— Meu Deus! — exclamou Alice em voz alta ao vê-las. — Tenho que pensar em um plano, tenho que pensar em um plano. — Começou a repetir.
Começou a caminhar a passos lentos, para não chamar atenção de ninguém. Entrou em um dos becos paralelos, para evitar ambos os grupos. Porém, ainda mantinha uma visão parcial da rua, especialmente da pequena mesa da adolescente.
E lá estava Otaviano, dialogando com a jovem, enquanto seus companheiros vasculhavam o centro. O herói da guilda dos Dragões do Sol permaneceu ao lado dele, de braços cruzados ao escutar a conversa.
— Sei que ela passou por aqui — dizia Otaviano para a garota. — Escute-me, eu sou um herói, você pode confiar em mim. Foi a culpada pelo incêndio ontem perto do rio, e também é uma aliada de Erobern.
— Desculpe, mas não a conheço… — A jovem gaguejava, incapaz de manter o olhar em Otaviano, que com ambas as mãos sobre a mesa, observava de cima para baixo com sua imponente estatura. — Espero que a encontre.
— Luciolla, tem certeza da sua afirmação? — questionou Otaviano ao colega.
— Meus vaga-lumes não mentem — respondeu o homem, com um inseto na ponta do dedo. — Tenho certeza de ver Alice conversando com ela.
— Temos uma pequena mentirosa então. — Otaviano a agarrou pelo pescoço e a levantou no ar. — Preciso escutar a verdade, ou você apoia Erobern? Não preciso dizer qual a punição por trair a humanidade.
— Deixa ela em paz! — gritou Alice. Ao observar a situação de longe, não conseguiu se conter; uma inocente não deveria ser ferida naquela situação.
— Assim será feito… — Otaviano soltou a garota no chão, que caiu de joelhos, com lágrimas nos olhos.
Otaviano caminhou até Alice, ela tremia parada, com as mãos estendidas, prontas para lançar sua chama caso o homem se aproximasse demais. Luciolla apenas observava a cena, ele fechava os olhos por um grande período e depois os abria com pequenos bocejos regulares.
— Você fugiu, Uriel não ficou contente… — falava Otaviano com as mãos para cima ao se aproximar dela. — Ele está disposto a esquecer tudo, você só precisa vir comigo e me dizer onde esta Erobern.
— Nunca vou voltar para aquele esgoto! — exclamou ela ao cuspir no rosto de Otaviano.
Otaviano ficou sério e passou o dedo na face, removendo a saliva da sua bochecha.
— Agora passamos do limite do aceitável… — Otaviano levantou o braço contra Alice, que o encarava no fundo dos olhos, com o cabelo vermelho dela balançando com a brisa suave que atravessava a cidade.
Otaviano a teria esbofeteado caso uma grande gritaria não se iniciasse no mercado naquele instante. Ele olhou para os lados, tentando entender o que estava acontecendo. Dois corpos dos seus companheiros brutamontes foram jogados ao seu lado, criando buracos nos paralelepípedos da rua.
— Que tal mexer com alguém do seu tamanho? — provocou uma figura encapuzada com trajes negros, sujo com o sangue dos heróis.
— Quem é você? Criatura vil e sem empatia. — Otaviano desviou sua atenção de Alice e focou no novo oponente. Seus dois companheiros foram estripados, e a rua banhou-se com as estranhas deles.
A figura o encarou com os seus olhos vermelhos e se chegou mais perto dele.
— Por que não adivinha, docinho? — indagou o desconhecido com uma voz feminina.
— Que confusão é essa? — perguntou Zoe, que havia acabado de sair da loja com as suas duas amigas, com as sacolas de compras em mãos.
Dois tiros secos no ar interromperam a resposta. Os outros dois guarda-costas de Otaviano desabaram no chão, no meio da multidão que fugia.
— Me diga, por que alguém forte como você teria capangas? — Vítor caminhava ao lado de Herman, que empunhava pistolas em ambas as mãos. No alto, Mávros sobrevoava o local.
— Reunião de família, que maravilha — disse Herman com uma voz cansada ao apontar as armas.
Apenas onze pessoas restavam permaneceram na rua apesar da confusão, e elas eram em sua maioria as catalisadoras do ocorrido. A figura encapuzada encarava Otaviano face à face, com os dois corpos ao lado deles. Lucciola estava sentado no meio-fio ao lado da adolescente escondida debaixo da mesa de adivinhação. Zoe e suas duas amigas ficaram paradas na frente da loja de roupas com as compras nas mãos, enquanto Alice do outro lado da rua tentava escapar sem alarde. E quanto a Herman e Vítor, eles estavam na esquina, com a névoa negra os rodeando. Mávros no céu observava tudo, pronto para avisar seus colegas, caso reforços chegassem.
Herman gargalhou por um momento pela situação e então ficou com o rosto sério, para desafiar a todos:
— Mostrem o seu melhor heróis…