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Vítor abriu os olhos, como se despertasse de um sono profundo. Estava em pé e caminhava em direção a uma luz branca… Atravessou o feixe luminoso e começou a ouvir vozes, pessoas conversando ao longe. A claridade ofuscante logo se dissipou, revelando o local onde Vítor se encontrava.

Estava no meio de um grande pátio ao ar livre, o piso era feito por bonitos mosaicos de padrão geométrico. Havia também uma grande multidão, bem espaçada, em sua maioria jovens com até vinte anos de trajes modernos. Todos murmuravam entre si, perguntavam onde estavam e ninguém sabia a resposta. Todavia, Vítor sabia. Estavam na Cidade Celestial, a cidade dos Deuses.

“Que dor de cabeça… Odeio quando acordo de ressaca”, pensou Vítor, enquanto observava os outros heróis ao seu redor.

— Traidor! — gritou uma voz feminina no meio da multidão.

Uma garota de estatura média, com cabelos pretos lisos que caíam até o peito, avançava em direção a ele. Ela empurrava e esbarrava em quem estivesse em seu caminho. Vítor a reconheceu: era Lilia, membro de sua antiga guilda, os “Dragões do Sol”.

— Lilia? O que faz aqui? — perguntou ele, confuso, surpreso por ela reconhecê-lo.

— Traidor! — repetiu Lilia, tentando esbofeteá-lo.

— Ei, calma aí. — Vítor esquivou-se, inclinando o corpo para trás.

— Você matou Axel, matou todos eles! — Ela gritava para que todos ouvissem, atraindo a atenção da multidão.

— Como assim? — Vítor segurou os braços de Lilia, questionando-a com ceticismo. Não pela acusação em si, mas pela memória de Lilia. — Entramos em um novo ciclo… você não deveria ter memórias do ciclo anterior.

Lilia se debatia, para se soltar de Vítor.

— Vá para o inferno! — O tapa que ela tanto esperava foi acertado com toda força no rosto dele.

A bochecha de Vítor ficou vermelha e quente. Seu impulso era revidar, mas ele se conteve, pensando nas consequências. Sabia que, se tocasse nela, a multidão se voltaria contra ele… e bem, Vítor ainda não havia recuperado todos os seus poderes do ciclo anterior.

— Qual o motivo dessa confusão? — Duas mulheres de asas, vestidas com pesadas armaduras medievais, se aproximaram, destacando-se claramente da multidão; não eram heróis.

— Ele… ele… traiu todos, ele matou muitos da minha guilda, ele violentou uma amiga minha, sua lista de crimes é enorme, justiça deve ser feita! — Lilia começou a gritar para as guardas e para todos que pudessem ouvir.

— Isso é verdade? — perguntaram as mulheres.

— Em parte… mas não posso ser condenado por atos da minha vida passada. — Vítor sorriu insolente para Lilia, saboreando o sentimento momentâneo de impunidade.

— Vida passada? Como ousa dizer isso, quando ontem mesmo você matou Axel? — retrucou Lilia.

— Agora a vaca foi pro brejo. — Vítor soltou um longo suspiro. — Senhoras e senhores, agora é a hora da minha saída teatral! 

Ele girou as mãos, contudo, para sua surpresa, nada aconteceu. Seus poderes haviam desaparecido. Todos o olharam como se ele fosse louco.

— É… não deu certo! — Vítor empurrou as guardas, derrubando-os, e disparou em fuga.

— Peguem-no! Agarrem-no! — gritaram elas, lutando para se levantar, atrapalhados pelo peso das armaduras.

Vítor correu com todas as suas forças.

— Você não vai escapar! — Lilia gritou, correndo atrás dele.

Ele conseguiu ir longe, todavia de repente tropeçou e caiu de cara no chão. Atordoado pela queda, levantou-se devagar, percebendo que um garoto havia colocado o pé em sua frente.

— Uriel, não esperava te encontrar tão cedo — disse, reconhecendo o jovem, com seu típico tom de deboche.

Uriel, líder da guilda dos Dragões do Sol, o único acima de Vítor na hierarquia. Um jovem de cerca de dezoito anos, de aparência atlética, olhos cor de mel e cabelos loiros muito claros, quase brancos.

— E quem é você? — respondeu Uriel, com sua voz séria.

Vítor não respondeu; apenas manteve um sorriso malicioso. “Então, ele não sabe quem sou… Estamos mesmo no quadragésimo segundo ciclo. Como diabos Lilia manteve a memória? E justo do último ciclo, quando decidi trair a guilda e me aliar a Erobern”, pensava Vítor, enquanto encarava Uriel por um longo tempo.

— Uriel! Finalmente você apareceu! — Lilia abraçou o garoto, sentindo-se segura nos braços dele.

— Ele não lembra de você, vadia — ofendeu Vítor, já em posição de luta, enquanto diversos heróis faziam um círculo e o cercavam.

Uriel olhou para ela, claramente desconfortável com o súbito abraço de uma estranha. Lilia abriu a boca para dizer algo, mas antes que pudesse, os dois guardas da Cidade Celestial a colocaram em um sono profundo ao tocarem nela.

— Obrigado, essa maluca deve ter se confundido com alguém da vida passada dela. — Vítor soltou um suspiro de alívio. — Acho melhor… 

Não conseguiu completar sua frase, as duas mulheres também o colocaram para dormir.


Vítor despertou em uma cela, um cômodo fechado com apenas uma pequena abertura: uma minúscula janela na parede, por onde entrava a única luz do sol. Estava deitado em uma cama suja, vestido com roupas brancas, os trajes de baixo de uma armadura. O cheiro de mofo impregnava o ar, e as paredes eram de tijolos de pedra, unidos por uma argamassa amarelada. Nas paredes, havia diversos escritos, marcas deixadas por prisioneiros anteriores.

Levantou-se e foi até a porta, surpreso ao perceber que estava aberta. Com cautela, abriu-a devagar, apenas o suficiente para espiar o corredor e verificar se havia alguma vigilância, sem atrair muita atenção.

— Bom dia — cumprimentou uma voz feminina grave.

Vítor abriu a porta totalmente, já sabendo que havia sido pego. Sentada em frente a sua cela, havia uma mulher de trajes verdes elegantes, ela possuía duas grandes asas brancas com as pontas visíveis atrás de suas costas.

— Quantos dias se passaram? — questionou ele, ao olhar para trás e ver o céu pela minúscula janela.

— Pergunta incomum, normalmente eles perguntam onde estão, ou tentam fugir desesperadamente. Respondo-lhe com outra pergunta, quem é você? — Ela colocou a mão no queixo e sorriu curiosamente.

— Vítor… 

— Sua amiga quase invocou um moderador para cidade celestial. Você sabe o que é um moderador, certo?

Vítor não respondeu, apenas a encarou com seriedade.

— Moderadores são monstros invocados para punir heróis que quebram alguma regra, especialmente a que proíbe a revelação de informações pessoais de antes da reencarnação.

— Por quantos dias fiquei apagado?

— Três dias.

— Isso explica minha sede e fome… E então, quais são os próximos passos?

— Primeiro, você deve descansar e comer algo. Depois, participará do exame de classe de herói. Em seguida, seguirá para o pavilhão dos heróis, onde poderá escolher uma guilda para entrar ou criar a sua própria, se preferir. — A mulher se levantou e começou a caminhar pelo corredor. — Siga-me.

— E quanto à minha amiga? — Vítor a seguiu, observando as celas ao seu redor, a maioria vazia, e os poucos detentos estavam todos dormindo.

— Ela acordou, estava muito histérica, gritava de forma desesperada. Não tivemos escolha a não ser sedá-la novamente até que se acalme. Receamos que, ao acordar, ela tenha outro surto e comece a falar sobre a vida passada. Infelizmente, o caso dela não é raro; muitos heróis enfrentam crises recorrentes após chegarem a Testfeld.

— O que é Testfeld? — perguntou Vítor, embora já soubesse a resposta. Precisava manter a fachada de alguém sem conhecimento prévio.

— É o mundo em que você reencarnou. Você morreu em sua terra natal, e agora está aqui para nos ajudar. — A mulher sorriu ao olhar para ele. — Não se preocupe, você vai saber de tudo quando chegar ao pavilhão dos heróis. Lá, há uma exposição que explica o essencial sobre Testfeld para os heróis novatos.

Saindo da prisão, Vítor finalmente pôde observar o ambiente ao seu redor. No pátio externo, ele rapidamente percebeu onde estava: uma imensa fortaleza de pedra, esculpida na borda de um penhasco na Cidade Celestial. Dali, um mirante se estendia, oferecendo uma visão impressionante do horizonte. Ao olhar além, Vítor notou que a cidade se erguia acima das nuvens, construída de maneira mágica sobre um arquipélago de ilhas flutuantes.

Embora já tivesse visto essa paisagem inúmeras vezes, Vítor não podia deixar de se maravilhar com a grandiosidade e o esplendor da Cidade Celestial. As ruas eram pavimentadas com mármore puro, e lamparinas ornamentadas com pedras preciosas adornavam cada esquina. No céu, anjos e valquírias sobrevoavam a cidade, suas asas brilhando sob a luz do sol. Os raios solares refletiam nos prédios brancos, realçando ainda mais a beleza etérea daquele lugar, como se toda a cidade estivesse envolta em uma aura divina.

A mulher, apesar das asas, caminhou ao lado de Vítor até pararem diante de um imenso castelo branco, cuja entrada era guardada por uma colossal estátua da Deusa. Ao passarem pelos portões, adentraram o Pavilhão dos Heróis, um vasto salão destinado a acolher todos os recém-chegados em Testfeld. As paredes eram decoradas com cartazes chamativos, anunciando o alistamento em guildas recém-fundadas, e outros cartazes sobre grupos de ajuda para heróis com trauma das suas vidas passadas. 

Conforme caminhavam, Vítor notou os olhares curiosos dos outros heróis se voltando para ele. Suas roupas simples o destacavam imediatamente, marcando-o como alguém sem classe definida. Em contraste, os demais usavam armaduras ou acessórios que deixavam claro suas especializações — chapéus, faixas ornamentadas, ou cajados com caveiras nas pontas, símbolos inconfundíveis de suas respectivas classes.

Cruzaram todo o salão, passando por um espaço quase deserto. Havia uma fila praticamente vazia, contrastando com as dezenas de outras ao redor, cada uma conduzindo a pequenas salas. No momento, apenas duas dessas salas estavam abertas: uma com uma placa indicando “Em Atendimento” e a outra, completamente desocupada.

— Seja bem-vindo. Por favor, sente-se; vamos começar sua avaliação — disse um homem trajado como um clérigo, vestindo uma batina cinza, ao cumprimentar Vítor.

— Onde estão os outros? — Vítor perguntou, observando o ambiente.

— A maioria já recebeu sua classe. Restam apenas alguns poucos heróis, aqueles que precisaram ser sedados por algum motivo durante a apresentação da Deusa. Imagino que esse seja o seu caso, certo, Valquíria Alexandra? — respondeu o clérigo ao olhar para a mulher de asas.

— Exame de classe, presumo que é para descobrir qual a minha classe de herói, então quando começamos? — Vítor sorriu, sentindo a ponta dos seus dedos se transformar em névoa. 

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