Selecione o tipo de erro abaixo

Capítulo 10 — Conciliábulo

Não se lembrava quando a dor tinha parado.

Os olhos abriram e ainda estava escuro. Ficou parado, sem saber se já podia se mover. Sentia que precisava de permissão para isso. Seu corpo jazia aprisionado por grilhões invisíveis, tal qual o flagelo que lhe açoitou.  

Os olhos foram os primeiros transgressores. Os primeiros a quebrar os grilhões para encontrar uma fonte de luz. Achou-a. Uma porta entreaberta deixava vazar um feixe de luz para dentro de seu quarto. 

A luz era uma faixa sobre seu corpo. Notou-o ali. Então teve consciência que ainda estava inteiro e que não havia sido destroçado como sua mente o fez entender. Só então, se deu conta de que a dor de fato havia cessado. 

Foi quando seu coração acelerou e ele começou a mover os músculos. Dessa vez tudo veio de um sobressalto. Não havia limitações verdadeiras para seus braços e pernas, então, eles os dobrou, um a um. Pôde sentir o fino lençol de linho sobre a pele e a aspereza da esteira de palha sob ele. 

Sentou-se. Olhando suas mãos e dobrando os dedos, como se a sensação de ter poder sobre eles fosse algo completamente novo. 

A luz se ampliou. A porta havia sido aberta e diante dela uma silhueta curvada para frente. 

— Bom que já acordou.

A voz era de Renji. Grave, cansada, mas ainda assim, contente. O velho se apressou para pegar uma lamparina e Jiten baixou os olhos para evitar a luminosidade. Parecia ter dormido por uma eternidade e ainda assim estava exausto.

Mesmo assim, não tinha sono algum. A última coisa que queria era fechar os olhos novamente. Não sabia se sentia gratidão por estar vivo, mas em algum lugar dentro dele, estava feliz por não morrer. 

Permaneceu em silêncio. Mesmo quando notou que Renji não era o único ali, mas havia outros camponeses. Figuras que ele conhecia como aliados do velho ou pessoas que sempre compravam e vendiam para ele. Mesmo assim, jamais os esperaria dentro de casa. 

Os convidados foram entrando no quarto. Neste momento não eram mais do que silhuetas escuras que aos poucos tomavam formas definidas. Alguns deles se encostaram, nas paredes, uma mulher andou até Jiten. O marinheiro dono da casa arranjou um banco para se sentar.

— O rapaz está bem? — um dos homens perguntou. 

Este Jiten conhecia. Era um dos trabalhadores do estaleiro. Um homem com uma enorme cicatriz no antebraço e com uma das pálpebras mais caída que a outra. Deveria ser dez ou quinze anos mais jovem que Renji, mas seu olhar e feições eram muito mais amargas. 

— O que sente, Jiten? — quem o indagou dessa vez foi uma mulher. 

Era a esposa do ferreiro que morava a duas ruas dali. Cabelos loiros encaracolados nas pontas, rugas emoldurando seus olhos e mãos bem calejadas. Tinha um pescoço longo, decorado com um colar com pingente dourado. Ela alisou as laterais do rosto de Jiten e o rapaz percebeu nisso algum apego maternal, mas nada em seu coração reagiu. 

O jovem tratou de buscar respostas para a pergunta. Examinou as próprias mãos, braços e pernas. Apalpou o dorso. Procurava ferimentos, hematomas ou tentava identificar algum resquício da terrível rigidez muscular que o paralisou. 

Nada.

Era como se nunca tivesse acontecido. 

Alguma coisa aconteceu. Tinha que ter acontecido. 

— Estou bem, senhora Neelima. — foi o que disse. Nisso, testou também sua voz e sua boca. Conseguia falar, mesmo que a voz parecesse um pouco rouca. 

Um suspiro de alívio preencheu a sala. Parecia que já era muita coisa. 

— Eu sabia que quando ele trouxe aquele homem de Wucheng ele tinha algum objetivo. Nada de bom vem da capital. — o homem com a cicatriz falou, sua voz carregada de desprezo. 

— Coube ao pobre menino confirmar. É mesmo um filósofo, como você suspeitava, Renji. — Surgiu uma terceira voz, essa era mais nasalada que as demais, um tanto que rouca. 

O dono da voz era um homem de meia-idade, armado com uma adaga no cinto e aparatos de couro pelo corpo. Os cabelos eram encaracolados e caíam ao redor de um rosto redondo Se Jiten estivesse mesmo lembrado de seu nome, era de Shingake, o responsável pelo maior abatedouro da cidade. 

— Um filósofo. Tão longe ao norte. — a mulher falou, seus olhos abaixaram em direção ao chão e não subiram por algum tempo.

— É o Arqueado. Ele quer dominar o rio. — disse o açougueiro. 

— Não sabemos o que o lorde quer, muito menos nosso Imperador. — Renji foi assertivo na resposta. Quis, talvez, eliminar suposições. 

— O Dogma não é praticado só por filósofos. Pode ser um charlatão. — Neelima disse, ainda com os olhos para baixo. Mesmo mirados ao chão, eles ainda percorriam de um canto a outro, incapazes de manter o foco.

— É um filósofo. — uma vez mais Renji disse algo de maneira assertiva. — Não sei dos planos do lorde. O que me importa é que machucou o menino. Não havia necessidade daquilo por uma ovelha. 

Jiten comprimiu os olhos. Lembrando das pupilas douradas do conselheiro Nobu e da dor que sentiu. Sua respiração ficou mais pesada. Se lembrou da bota de couro nobre, da escadaria para o assento do lorde e da dor. 

Um impacto contra o chão o assustou e fez olhar para seu mestre. Renji batera com sua muleta no solo. 

— Fique aqui, garoto. — ordenou o velho. 

Era como se o mestre tivesse sido capaz de ler seus pensamentos e saber o que ele sentia. O homem tinha um olhar sério, uma determinação estampada no rosto, como um marinheiro diante de um mar revolto deveria ter. 

Jiten se lembrou dos ensinamentos e praticou a respiração. Sentiu seus pulmões se encherem e o contato de tudo com seu corpo. Sentiu os cheiros, ouviu os sons, percebeu o sabor azedo na boca e tentou permanecer ali. 

— Ele está nos vigiando. Está vigiando Jiten. — anunciou o velho. 

O rapaz sentiu o olhar dele. Tentava manter sua mente vazia e seu coração livre do medo que o havia assombrado dentro da fortaleza. Não conseguia entender por qual motivo o lorde teria despertado tanto interesse por ele.

O sangue. É claro. 

— Com esses olhos. Demorou para perceber. Nunca foi seguro mantê-lo aqui. Deveríamos tê-lo mandado para o tio. — Neelima falou, seus olhos finalmente se levantando para fitar o velho. Deveria ser uma discussão antiga.

Jiten nunca quis conhecer seu tio. Na verdade, era seu tio-avô. Ele havia matado os irmãos de sua mãe, logo Jiten não tinha tio algum. Era burrice enviá-lo para aquele homem, mesmo um menino sabia daquilo.

— Chega disso. O tio dele nem mesmo tem os olhos de Yanmoshen. É um impostor de merda. — o homem com a cicatriz falou e torceu o nariz com nojo. 

— Esse assunto não é nosso, Renji. O menino aqui só corre perigo. — A esposa do ferreiro parecia agora ter encontrado alguma determinação para defender seu ponto.

Um manto de silêncio pairou sobre eles. Jiten sentiu aquele incômodo de sempre retornar. A sensação de estar sendo observado. Mesmo a respiração não podia impedir isso. O rapaz olhou ao redor, viu que todos fitavam Renji, aguardando sua resposta. 

O velho se mantinha concentrado com algum pensamento profundo, seu rosto voltado para uma das paredes. 

— Você não é mais criança, Jiten. Abra sua boca. — O açougueiro tomou a decisão de apelar para o garoto. 

Jiten foi pego de surpresa. Procurou uma fuga nos rostos daqueles que o cercavam. Todos, com exceção de seu mestre, tinham os olhos nele. Seu rosto se voltou, então, ao chão. 

A afirmação de Shingake poderia ser real, mas diante da necessidade daquela decisão, Jiten se sentia uma criança. Não sabia como lidar com o poder e a ameaça do lorde. Especialmente, depois do que havia visto e sentido em sua presença. 

Fugir seria a decisão correta, mas mesmo que fosse, como poderia se virar sozinho. Como lidaria com pessoas novas? Como arranjaria o que comer e onde trabalhar? Quem o treinaria para alcançar o objetivo que tanto desejava?

 Mais uma vez, sentiu medo. 

Este medo era composto de uma parte diferente da alma de Jiten. Uma que antes não havia sido atingida pela tortura do conselheiro Nobu. Esta parte de sua alma foi aquela presente nos dias após a morte de sua família. Surgida da incerteza que gera o luto. 

Como seguir a vida daqui para a frente?

O velho marinheiro Renji havia solucionado suas dúvidas. Mais uma vez, no entanto, os presentes ali pensavam em formas de jogá-lo naquele dilema. Queriam forçá-lo mais uma vez à perda. 

A cabeça balançou em resposta. Um instinto quase infantil. Contudo, logo notaria que a resposta tinha que ser verbalizada para que ele conseguisse se livrar dela. Seus olhos procuraram mais uma vez o rosto de seu mestre. Encontraram nele a intransponibilidade de uma falésia. 

— Olhe, Renji. O menino está traumatizado. Ele não pode ficar aqui. — Neelima afirmou, sua mão estendida na direção de Jiten. — A espada e ele precisam partir. Precisam ir em direção ao norte, mais longe do sul possível. O Unmeiko o encontrará, quando for a hora. 

Os outros convidados começaram a debater. As vozes se misturaram e o tom foi subindo, cada um em resposta ao outro. Nenhum deles estava de acordo com coisa alguma. 

— Chega disso. — a voz de Renji ressoou firme e encorpada. Era a voz de um capitão dando instruções em um navio. Uma expressão de uma força que ficou adormecida no passado. — Vou pensar e conversar com Jiten. O garoto acabou de acordar, não está em condição de entender essa situação, muito menos tomar uma decisão. É isso.

— Renji, por favor…

— Eu disse que já chega, Neelima. — O velho a fitou e com um impulso de energia ele se levantou em um único movimento. — Vão para as suas casas antes que amanheça.

Os convidados trataram de sair pouco depois. Tendo trocado algumas últimas palavras com o anfitrião. 

Jiten ficou observando um por um atravessar a entrada da casa e desaparecer na madrugada escura. Dentro dele um turbilhão de pensamentos chacoalhava seu crânio para tentar se expressar. Uma tempestade em busca de coesão. 

Um pouco como a dor, foi só quando todo o barulho cessou que Jiten percebeu o profundo silêncio. 

Picture of Olá, eu sou ODA!

Olá, eu sou ODA!

Comentem e avaliem o capítulo! Se quiser me apoiar de alguma forma, entre em nosso Discord para conversarmos!

Clique aqui para entrar em nosso Discord ➥