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Era como estar em uma redoma. 

Jiten devorava o desjejum quase sem mastigar. Pão escuro, um tanto de manteiga com ervas, dois ovos que se derretiam sobre o pão e um punhado de carne seca. Um jarro com leite e mel para descer tudo. Mesmo que ali comesse muito melhor do que quando em Bushimusuko, não parecia o suficiente para satisfazê-lo. 

Seus olhos ficavam grudados na comida, tentando não olhar tanto para cima. Wulan o observava, seus olhos pareciam maiores, talvez porque tinham um brilho de energia matutina. A garota sorria para ele e o deixava um tanto mais corado do que deveria. 

— Onde estão seus pais? — Perguntou o rapaz, dentro dele ainda tinha aquela ansiedade por poder ouvir o que eles tinham a dizer.

— Foram à floresta verificar o limite. 

— Nunca me explicaram como isso funciona, você sabe? — Indagou e rasgou um naco de pão com os dentes. 

Wulan assentiu com a cabeça. O rosto dela ficou um pouco mais sério. 

— Minha mãe nunca quis dividir os segredos dela com qualquer mugenjin. Ela diz que eu não deveria também. 

Jiten refletiu enquanto fazia descer o pedaço de pão garganta a baixo com uma golada de leite com mel. Renji sempre o ensinou a ser desconfiado com os outros. Não contar o que pensa ou o que quer fazer. A vida em silêncio é uma virtude, ele dizia, tal qual os monges também falavam. 

Até aquele momento, mantinha aquele cuidado mais por observação aos ensinamentos dele. Agora, que estava sendo caçado pelo lorde e por alguma criatura macabra da noite, podia entender o motivo pelo qual alguns eram tão desconfiados em relação aos estranhos. Não justificava ainda, para si, porque eram tão desconfiados em relação a ele. 

— Não sei você, mas isso me incomoda um pouco. — Jiten falou, desviando o olhar da comida em direção à porta. Podia ver no vão entre o batente e a madeira da porta a luz do sol quase esverdeada pela floresta ao redor. 

— O quê? 

— Parece que sempre estão me escondendo alguma coisa. Desde sempre. 

— Os adultos têm seus segredos. 

Jiten sorriu, balançando a cabeça negativamente, bebeu mais um gole apressadamente.

— Eu não sou mais criança e você… você sempre foi diferente. 

— Eles não me dizem tudo. 

— Dizem mais do que estou acostumado a ouvir. Renji sempre me disse para ficar vivo, para treinar incessantemente, para estar atento, para observar os animais, para tentar manter contato com as pessoas, mas nunca lhes revelar mais do que deveria e por aí posso ir por um dia inteiro. — O garoto se ajeitou na banqueta em que estava sentado. — Nunca quis me explicar exatamente o porquê. Um pastor de ovelhas não precisa saber empunhar uma espada, não?

Wulan desviou o olhar e pegou algumas amoras de um cesto em cima da mesa. Ela deu de ombros, mastigando nervosamente os frutos. 

— Você sabe — confrontou-a, seus olhos agora não saíam dela e era a vez dela fugir dele. 

— Não sei tudo. 

— Me diga o que sabe — pediu, afastou a comida de perto de si, mesmo que ainda sentisse um tanto de fome. 

— Você deve saber quase o mesmo tanto que eu. A família da sua mãe era importante e isso acaba sendo de valor na política dos lordes. 

— Wulan, por favor. — Jiten suplicou, de alguma forma, preferia conversar com ela sobre esses assuntos do que saber diretamente de Bjarka. 

A conexão entre os dois era tão antiga quanto as memórias que Jiten tinha de si. Muitas vezes Renji o levou ali para visitá-los e os dois sempre ficavam juntos enquanto os adultos conversavam. Wulan tinha aquele jeito mais bruto, muito mais parecida com o que interpretaram como garoto do que com uma garota, principalmente durante a infância. 

Agora, ela já era muito mais uma mulher e escondia por detrás dos olhos um tanto de maturidade que ele não pudera acompanhar. A mãe dela fora a tutora e a guia da garota, ensinando-a seus segredos e com certeza compartilharam já o que havia em Jiten que poderia estar ocasionando o que vivia agora. 

— Você não vai ficar aqui. Seu mestre não te mandou para você se esconder. 

Jiten engoliu em seco. Por um momento, precisou fechar os olhos e tentar repassar na memória as coisas que aconteceram nos últimos dias. Ainda estava ferido, seu corpo machucado pelo combate que tivera na floresta. Ainda sentia aquele incômodo profundo com a lembrança de seus colegas no campo que foram massacrados sem nenhuma piedade. 

Antes disso, ainda, a lembrança da tortura do lorde e da discussão na casa de Renji antes de sua partida. Os aldeões que conspiravam na calada da noite e o clima de tensão que estava por todo o vilarejo. 

— Então o que eu estou fazendo aqui?

— Está se recuperando, porque se feriu, não tem outra escolha a não ser ficar. 

— E o que deveria estar fazendo aqui então. 

— Esperando. Eles disseram que tem alguém vindo para encontrar você. Minha mãe também acha que Renji esperou demais e não fez o trabalho direito com você. — A garota pareceu resignada. Ela falava por um impulso de lealdade para com Jiten, mas, ao mesmo tempo, não parecia segura de fazer o certo. 

— E então? 

— Então o quê? 

— Quem é? Quem está vindo me encontrar?

 Wulan se levantou e começou a tirar as coisas da mesa. 

— Você deveria perguntar para minha mãe — falou com a cara fechada.

Jiten se levantou em resposta e deu a volta na mesa. A garota tentou ignorá-lo, mas cedeu com um suspiro. 

— É alguém do norte. Não sei quem é. — A garota empilhou as vasilhas que precisavam ser lavadas. Ela suspirou mais uma vez, irritada. — Estou falando a verdade. Agora me deixa quieta. 

— Não estou só te perturbando. Está tudo uma bagunça e eu só quero entender o porquê.

— Tudo sempre esteve uma bagunça. Você só é burro demais. Aquele vilarejo era imundo e… Não tem pelo que chorar. Você agora vai poder ir para longe, vai poder ter uma vida diferente, quem sabe pode virar um kumokai como tanto queria. 

Jiten se afastou alguns passos. Virou as costas para ela e procurou nas janelas por um sinal do que acontecia lá fora. Não sabia quanto tempo fazia que Bjarka e Khanh tinham partido, mas queria que chegassem de uma vez. 

— Está irritada comigo? 

Wulan segurou as vasilhas nos braços e começou a caminhar para fora, abrindo a porta com uma certa dificuldade e olhando feio para Jiten quando ele fez menção de ajudá-la. A garota parecia imersa em um silêncio que remoía algum sentimento. 

— Isso é por eu insistir? Você não consegue me entender?

Jiten a seguiu, mas era difícil caminhar. Sua perna esquerda ainda estava bastante dolorida e mesmo para se apoiar completamente ereto era difícil com a dor no flanco que sentia. Mesmo que se recuperasse mais rápido, não era o suficiente para garantir que não sentiria dor. 

— Você não entende que não gosto de falar segredos que não são meus? Para de me encher. O que custa você esperar eles chegarem e fazer suas perguntas para eles? 

— Eu confio em você. Prefiro que você me fale. 

Wulan assentiu com a cabeça e se sentou ao lado do poço. A garota verificou o balde e então o baixou para que trouxesse água para cima. Com força nos braços, içou o balde de volta para cima e então verteu a água em uma bacia grande. 

Jiten ficou ao lado dela, talvez porque ainda esperava que ela falasse alguma coisa. Era possível ouvir o canto de muitos pássaros na floresta e o vento recheava ainda mais o silêncio com o farfalhar de milhares de folhas. Os animais criados ali na clareira também produziam seus próprios sons, tudo como uma verdadeira redoma de um sentimento de calmaria. 

— Eu te disse o que eu sei — começou a garota, a cabeça baixa para começar a lavar as vasilhas. — Você vai embora. Vai viajar para o norte e para onde não me disseram. Não querem que eu te siga. 

Jiten assentiu com a cabeça, pensando no que aquilo poderia significar. 

— Você tem uma tarefa para cumprir. Herdou isso da família da sua mãe. Não é o tipo de coisa que se deveria falar assim… — a garota continuava, os olhos dela encontraram o de Jiten por um momento antes de retornar para a tarefa.

— O Unmeiko. Renji quer que eu o encontre. Por que ele não me disse?

Wulan assentiu com a cabeça. 

— Porque ele não quer. Ele nunca quis. Só que você precisa ir. Não pode fugir do trato.

Jiten estremeceu. Estava confuso não apenas por saber agora mais sobre os sentimentos de Renji do que o que ele o havia falado, mas também pela menção daquela estranha frase de seu sonho. Algo resgatado das profundezas de sua memória. 

— Que trato é esse?

— Vocês, mugenjin, chamam de Unmeiko ou qualquer coisa assim. A lenda de vocês começa com o Imperador, com histórias de conquista e vitória. Vocês idiotas só sabem aquilo que lhes interessa. — A garota suspirou, separou as vasilhas limpas e então se recostou na pequena mureta do poço. — Nós, do Povo Antigo, chamamos ele de O Primeiro Rei. Sabemos que ele retorna, mas seu retorno sempre é anunciado de duas formas. Você deve ter uma ideia…

— A espada da minha mãe. 

— A lenda é que um trato foi feito com o Portador da Espada e com o Portador da Máscara. Os dois podem encontrá-lo e anunciar seu retorno. Esse direito deriva do sangue.

— São duas linhagens, então.

— O que eu sei da lenda acaba aí. Tem toda a história dos Yanmoshen, mas você deve saber um tanto disso melhor que eu. 

Jiten encolheu os ombros. A realidade era que sabia muito pouco sobre qualquer coisa que não fosse a história de seu vilarejo nos últimos dez anos. A política e todos os desdobramentos que aconteceram no passado eram para ele um mistério.

Renji nunca quis que ele estudasse demais essas coisas. Quem sabe, tivesse receio de que ele ficasse curioso demais e viajasse sozinho por aí. O garoto não havia escutado a versão do Povo Antigo sobre a lenda, apenas as histórias do Imperador, sempre extremamente fantasiosas. 

O quanto daquilo era verdade e não fantasia, agora parecia um mistério. Havia sido perseguido por espíritos e por mortos-vivos dentro da floresta. Todas as lendas poderiam ser verdade. 

— Então, eu sou obrigado a achar o Unmeiko por causa desse trato. 

— ‘Ninguém pode fugir do trato’ — exclamou a garota com uma voz muito mais grossa, imitando alguma fala de seus pais. — É tudo o que sei. 

— E se eu fugir? Me esconder aqui. 

Wulan ficou encarando o chão por alguns momentos. A garota fez um biquinho com os lábios enquanto pensava. Ela, então, deu de ombros. 

— Vai acontecer o mesmo que aconteceu no vilarejo. 

Jiten então fechou os olhos. A resposta era mais dolorosa do que poderia imaginar. A ideia de desastres ao acaso, o mistério que o cercava, tudo parecia mais aprazível agora do que saber daquilo. 

— O ataque. As ovelhas. Os garotos. Eles morreram. Foi culpa minha. 

— Não. Não faz isso. 

Jiten começou a sentir o coração acelerando. O sentimento de que alguma coisa estava apertando seu peito, como uma mão gelada fechada ao redor do coração. Podia sentir esfriar a parte de trás de sua nuca e uma vertigem se apoderou dele. 

— Não tem como saber o que foi. É uma lenda. Uma história. — Wulan se levantou e ficou de frente para ele, segurando seus ombros. — Não seja um idiota.  

— Eu ‘tô bem — mentiu e afastou Wulan, se levantando ainda um pouco tonto. Quase não podia sentir mais as dores do corpo, porque se sentia profundamente mal por tudo o que acontecera. Era como se o coração tivesse sido amarrado a uma âncora e jogado na Bruma Congelada. — Eu vou descansar. Preciso me recuperar logo. 

Muita coisa foi feita para protegê-lo e mantê-lo longe da verdade. Podia se sentir seguro, despreocupado, naquela clareira em meio a floresta. Só que agora, ele sabia um tanto mais do que deveria. 

A redoma que o protegia agora tinha uma rachadura.  

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