Rasp! Rasp! Rasp!
Karol observou em silêncio a partir da cabeceira da cama, enquanto seu marido folheava folha após folha de um livro, sentado à frente de uma pequena escrivaninha de madeira.
Sua expressão era complicada, enquanto observava a pilha de outros livros ao lado, que ele havia ‘terminado’, enquanto continuava, incessantemente, lendo página por página sem parar por um único instante.
Não só isso, como vez ou outra, movia os dedos no ar, como se estivesse escrevendo algo invisível.
“Fernando, tem certeza que está bem?” perguntou, levemente preocupada.
Desde a partida de Archie e Louise no dia anterior, o rapaz havia se isolado com a justificativa de ‘estudar’, abandonando todas as questões do Batalhão Zero, permanecendo apenas folheando diversos livros, sem nunca parar em um único.
Sabendo o quanto seu marido se importava com os outros, apesar de tentar não demonstrar, imaginou que o acontecimento de antes tivesse o afetado profundamente.
Pausando por um momento o que estava fazendo, Fernando virou-se em direção a sua esposa, com alguma confusão em seu rosto.
“Eu estou realmente bem, não precisa se preocupar. Apenas preciso estudar algumas coisas.” disse, tentando forçar um sorriso em seu rosto. “Vá, seu Esquadrão deve estar te esperando.”
Karol não parecia muito convencida com sua resposta, entretanto, por mais que quisesse ficar ao lado de Fernando, sabia que tinha suas obrigações como Cabo. Mesmo que ninguém fosse criticá-la caso delegasse o dia de treinamento a Anane para ficar com seu amado, como esposa do Tenente ela sentia que precisava dar o exemplo.
“Tudo bem, então…” disse, começando a vestir sua armadura.
Pouco tempo depois, terminando de se preparar, olhou para seu marido. “Se precisar de algo, me mande uma mensagem, ok?” Após dizer isso, saiu.
Fernando olhou para a porta que acabara de ser fechada, suspirando consigo mesmo ao vê-la tão preocupada com ele.
A verdade é que mesmo que a partida de Archie e Louise tivesse o afetado, não era ao ponto de deixá-lo deprimido, ele estava realmente focado em adquirir conhecimento. O prazo que Wedsnagauer lhe deu para estudar o livro de Runas estava acabando.
Movendo seus dedos com fluidez tentou copiar a Runa Central de Armazenamento. O símbolo, a primeira vista, não parecia ser muito complicado, sendo uma espécie de M, sobreposto por um K, porém, não era tão simples. Pelo que estava descrito no livro de ‘Runas Básicas, o caminho para o inexplorado’ de autoria de seu professor, o desenho de cada Runa deveria ser milimetricamente preciso, qualquer risco ou traço errado causaria uma falha do processo, o que exigia não só uma boa memória, como uma boa coordenação motora, para acertar o traçado perfeitamente.
Para qualquer pessoa normal, memorizar esse tipo de coisa seria algo absurdamente difícil, mas para Fernando, que possuía uma espécie de memória eidética, reter informações era simplesmente sua especialidade.
Apesar de parecer algo extremamente incrível, ele sabia que não era tão impressionante assim. Mesmo que sua memória eidética o ajudasse a absorver e conservar conhecimento com muita facilidade num curto espaço de tempo, ela só funcionava em coisas escritas, acontecimentos e informações do dia-a-dia não se fixavam em sua mente da mesma forma. Além disso, embora ele conseguisse guardar informações visualizadas por um breve instante, se não as usasse com frequência, seriam eventualmente esquecidas, apagando-se pouco a pouco de suas memórias.
De certa forma, sem a prática constante do que havia aprendido, sua memória era algo de curto prazo, o que havia o ajudado tremendamente no vestibular da universidade quando estava na Terra, mas, no fim, ele ainda era Humano e não uma máquina, então, após alguns dias, as coisas memorizadas começariam a ser esquecidas se não fossem revisadas, além disso, se tentasse armazenar muitas informações de uma vez em sua cabeça, algumas delas seriam eventualmente perdidas no processo. Ou pelo menos, era isso que deveria ocorrer normalmente.
O que está acontecendo comigo? pensou, incrédulo.
Na realidade, Fernando tinha memorizado o livro de Runas Básicas de Wedsnagauer em poucas horas no primeiro dia, o que já era algo esperado por ele. Após isso, focou-se em devorar alguns dos livros que havia conseguido do acervo da Guilda Valorosos, bem como da Guilda que anteriormente ocupava o prédio em que estavam e outros diversos.
Inicialmente ele planejou ler tudo que encontrasse a respeito de Runas, Matrizes, assim como conceitos básicos sobre a economia de Avalon e de materiais raros. Se ele não tivesse ficado sabendo do real valor do sangue e da carne de Delgnor e, por um descuido, revelasse o que possuía na frente de pessoas poderosas como Zado, quem sabe que tipo de fim trágico ele teria? Ele sentia que Ferman deveria ao menos tê-lo informado corretamente a respeito dos perigos de seu presente!
Fernando não estava disposto a morrer pela sua ignorância, então precisava consumir desesperadamente o máximo de conhecimento possível. Mesmo que ele não conseguisse guardar todas essas informações em sua cabeça para sempre, tinha que pelo menos lembrar-se vagamente da existência delas.
Enquanto fazia isso, pensou em, ocasionalmente, rever o livro de Runas Básicas quando sentisse que estava esquecendo, no entanto, para sua surpresa, ele já estava no vigésimo livro seguido, e as informações sobre as Runas, bem como tudo o que leu a seguir, ainda estavam completamente frescas em sua memória, quase como se tivesse acabado de lê-las!
Cada traço, cada palavra, cada mínima informação, estavam incrustadas em sua mente, se quisesse, ele poderia soletrá-las sem dificuldade, o que o deixou abismado.
Mesmo que sua memória eidética lhe desse uma vantagem a curto prazo, ela tinha muitas limitações, nesse ponto, após tantos livros lidos, as informações já deveriam ter começado a ficar embaçadas em suas memórias.
O jovem rapaz pensou que talvez seu cérebro estivesse sedento por conhecimento e por isso tudo estava tão claro em sua mente, já que desde que chegou em Avalon, ele só teve a oportunidade de ler cerca de uma dúzia de livros, mas, ao pensar com cuidado, percebeu algo.
Seja o Livro Guia do Mago Aprendiz, o livro de Herbologia, o livro do Caçador de Monstros ou os outros menos relevantes que havia lido ou folheado brevemente, ao focar-se um pouco, simplesmente lembrava-se de todos eles!
“Impossível!” disse, abismado. Já havia passado muito tempo desde que havia consumido esses livros, não deveria lembrar-se com tanta clareza.
Enquanto pensava nisso, recordou-se de algo que Gallia lhe disse há muito tempo. O mana não só era usado para combate, mas também para fortalecer e melhorar o corpo. Mesmo um Mago, que nunca havia treinado em combate antes, ao praticar e melhorar sua magia, eventualmente teria uma melhora em seu Físico.
Com esse raciocínio em mente, o jovem rapaz finalmente entendeu.
O mana é realmente incrível, ele não só melhora o corpo, afetando o físico e os sentidos, como até mesmo amplia talentos naturais que teoricamente não teria como melhorar! Se é assim, então…
Enquanto pensava nisso, seu coração começou a palpitar, numa mistura de agitação e ansiosidade, seu lado ‘nerd’, que tinha sido jogado para o fundo de seus pensamentos há muito tempo, parecia estar desesperadamente pedindo para sair nesse momento.
Se sua memória eidética tivesse realmente sido melhorada graças ao mana, fazendo-o recordar-se de coisas por um período extremamente longo, então a principal falha dela havia sido, de certa forma, ‘consertada’. Sendo assim, contanto que tivesse tempo suficiente, ele não poderia se tornar uma espécie de biblioteca ambulante ao ler livros suficientes?
Só de pensar nisso, um sorriso de animação abriu-se em seu rosto.
Naquela noite, o prazo de estudos dado por Wedsnagauer terminou, e Fernando, assim como Emily, haviam se reunido em frente ao armazém do velho homem.
Ao ver o rapaz, que se isolou nos últimos dois dias, a pequena ruiva franziu a testa, sem saber o que dizer.
“Aquele pateta com cabelo de tigela do Archie fez a escolha dele, não precisa pensar muito nisso, ele apenas é idiota demais. Além disso, eles devem ficar bem ao estarem longe da guerra.”
Ouvindo isso, o jovem pálido ergueu uma sobrancelha, surpreso, já que essa era uma ação fora do normal por parte dela.
“Por acaso está tentando me consolar?” perguntou, de forma apática.
O rosto da garota ficou levemente vermelho, enquanto inflava sua bochecha, irritada.
“Consolar minha bunda! Só tô comentando!”
Apesar de receber uma resposta ranzinza, Fernando não ficou irritado, pelo contrário, deu um leve sorriso ao ver a pequena ruiva sendo ela mesma.
“Como Ronald está?” perguntou, ignorando as palavras anteriores dela.
Vendo que o jovem pálido não insistiu em provocá-la, acalmou-se.
“Achei que ele iria ficar mais chateado já que eram um pouco próximos, mas incrivelmente, ele só disse que espera que os dois encontrem um bom lugar para viverem e tenham uma vida longa.”
Inicialmente Fernando estava preocupado de que a partida de Archie e Louise pudesse afetar negativamente os membros centrais do Batalhão Zero. Mas ao ouvir isso, tranquilizou-se.
“Entendo.” respondeu, com uma expressão pensativa.
Vendo seu rosto calmo, Emily pensou em dizer algo, mas, antes que pudesse, a porta do armazém foi aberta.
“Oh, parece que meus dois alunos finalmente chegaram.” A voz de Wedsnagauer soou, quando o velho apareceu na porta, com um sorriso jubiloso. “Entrem, entrem.”
Fernando e Emily obedeceram ao pedido, adentrando no local, mas assim que o fizeram, seus rostos mudaram.
O armazém, que antes era coberto por algumas Runas e Matrizes dispersas, agora estava completamente diferente.
“O que caralhos aconteceu aqui?” A pequena ruiva perguntou, atônita.
Desta vez, as paredes, teto, chão, tudo estava completamente repleto de Runas e Matrizes. Todos os espaços, mesmo pequenos, estavam preenchidos com inscrições.
“Ouvimos falar a respeito do armistício, o que significa que seu Batalhão vai ficar estacionado em Garância por algum tempo.” A voz de Alfie Caiman soou, vinda do canto, seu rosto estava pálido e olheiras enormes preenchiam seus olhos. “Já que é assim, resolvemos caprichar mais nesse local, afinal, é uma base que podemos usar por pelo menos alguns meses.”
“Mas é realmente necessário isso tudo?” Emily perguntou, sem palavras.
“Apenas para conter as flutuações de mana de pequenos experimentos e também para ensiná-los, o que tínhamos feito antes era suficiente, mas para trabalhar constantemente ou criar Matrizes mais poderosas, era um pouco arriscado.” Wedsnagauer disse, com uma expressão complicada.
“Matrizes mais poderosas?” Fernando questionou, sem entender. Os dois tinham planos em trabalhar em algo mais enquanto estavam em Garância?
“A verdade é que estamos começando a ficar sem fundos ou materiais…” Alfie falou, envergonhado.
Mesmo que Wedsnagauer fosse um Mestre de Runas e ele, seu assistente, também fosse alguém de um nível alto, no momento ambos não eram diferentes de mendigos. Devido a estarem vagando por Avalon por alguns anos, seus fundos foram lentamente sendo consumidos e agora estavam prestes a se esgotar. Por causa das aulas que planejaram para Fernando e Emily, eles precisavam ganhar algum dinheiro, afinal, treinar aprendizes não era algo simples ou barato.
“Caiman!” Wedsnagauer repreendeu seu assistente por falar demais. Ele não queria que suas dificuldades fossem descobertas por seus novos pupilos.
O sujeito de óculos percebeu seu erro ao ouvir a voz do velho homem, mas já era tarde demais.
“Doutor, eu…”
Fernando e Emily se entreolharam, preocupados, não imaginando que o Mestre de Runas estava com esse tipo de dificuldade.
“Não ouçam ele, não é como se as coisas estivessem tão ruins. É apenas que esse lugar não é adequado… Se as coisas ficarem realmente difíceis, tenho uma série de itens que posso vender, é que se eu tentar vender algo muito chamativo nesse fim de mundo, as pessoas vão começar a nos notar.” explicou.
Apesar das palavras do velho homem, o jovem Tenente sentiu-se incomodado. Se eles estavam precisando de algo, por que não falaram com ele?
Isso o fez lembrar-se da recente situação com Archie e Louise, eles também não haviam o procurado quando estavam passando por dificuldades. Fernando imaginou se ele parecia tão pouco confiável para as pessoas ao seu redor? Mas de repente, balançou a cabeça para si mesmo.
Não é que não sou confiável, mas talvez eu apenas esteja muito distante? pensou.
Devido ao seu jeito reservado, as pessoas pareciam ter dificuldade de se aproximar dele. Então sentiu que, em parte, isso também era sua culpa. Além disso, havia a questão pela qual ele evitava muito contato com outros, e isso era a gama de segredos que guardava.
Atualmente, Fernando tinha toneladas de Carne de Delgnor em sua Pulseira, e o sangue dessa criatura provavelmente era um dos recursos que Wedsnagauer mais precisava no momento. Mas mesmo assim, ele escondeu isso de seu professor, por receio. Se ele quisesse que as pessoas confiassem mais nele, também precisava confiar mais nas pessoas.
Com um rosto decidido, moveu o pulso e uma garrafa de vidro apareceu em sua palma.
“Professor, isso talvez te ajude.”
Ouvindo isso, assim como vendo o item aparecendo em sua mão, somado ao que Alfie havia acabado de dizer, fez Wedsnagauer ficar irritado.
“Garoto, está me tratando como um pedinte? Eu sou um Mestre de Runas, não preciso de carida-” O velho homem estava prestes a cuspir mais algumas palavras, quando foi interrompido por um aroma peculiar que invadiu suas narinas.
O cheiro familiar lhe fez pensar que estava alucinando novamente, mas quando voltou sua atenção para o frasco de vidro na mão do jovem rapaz, percebeu que estava preenchido por algum tipo de líquido vermelho.
“I-isso não poderia ser…” disse, gaguejando.
Vendo seu olhar de surpresa, Fernando não pôde evitar sorrir.
“Isso mesmo, aqui tem em torno de dois litros de Sangue de Delgnor, e isso é seu, professor.”
Tanto Wedsnagauer quanto Alfie Caiman e Emily ficaram boquiabertos com a declaração do jovem pálido.