Ponto de vista de; Theo De Lawrence
A morte sempre caminhou a par de mim. Para ser sincero, nunca desejei aquele poder que possui noutra vida, mas busquei a vida em que vivi. Deixe-me à mercê de um monstro que tornou-me em um demônio, onde fui transformado num homem desconexo da realidade. Um homem preso em vidro. Qualquer movimento resultaria na morte de alguém, por isso estava tão cheio de si. Orgulhoso, egoísta, arrogante, às vezes nem olhava nos olhos de terceiros.
“Para que tanto poder, se no fim eu cedi a morte?” Lembro de ter resmungando algo assim antes de partir rumo a minha segunda chance. Para ser sincero, nunca desejei algo após a morte.
Eu não queria o famoso Paraíso, apenas uma tela preta; um descanso eterno onde nada existiria, como o universo em seu primórdio mais puro.
No entanto, o ser acima do universo caiu aqui; como um anjo caído que sujara suas asas com o sangue de quem merecia, jogado pelo destino em um chão onde fui puxado pelas mãos de quem matei, ou que da morte fui culpado.
É assim que me sinto agora.
Desde que desmaiei naquela caverna do djinn, vaguei pelo meu plano espiritual buscando entender sobre o meu despertar. Porém, sempre que penso em utilizar meu poder, me sinto atrelado a algo. Outrora, ouvi de Camille, minha mãe, que quando morremos existe uma alternativa para aqueles que negam sua ida para o outro lado; suas almas se tornam sombras — no literal. Agora, eu encaro essas sombras.
Pessoas a quem deixei morrer por puro capricho, ou eu mesmo matei noutra vida. Quem não pude salvar como o senhor Michel… Seus braços emergem do chão e me agarram, prendendo minha mente no próprio fim.
Esse é o fardo de aceitar quem sou. O fardo que neguei por tantos anos…
Encarando esse fato, senti o vento bater e levar meus cabelos para trás. No meio da plantação de trigo, cujo cobria meu plano espiritual naquele momento, deixei o sopro do norte bater em meu rosto e permiti uma pergunta afogar-me; por que deixei isso acontecer?
A sensação atual é bela e eu poderia ter sentido isso antes.
Um mundo colorido; vivo; forte; brilhante… A perfeição que antes julguei. Assim como todos da minha idade, enxergava o mundo como um lugar podre. Mas ele não é… Podre são que aceitam a ausência do bem em suas vidas, o mundo não está corrompido apenas nossas visões que se permitiram distanciar da pureza absoluta.
Como eu pude abdicar dessa visão? A visão perfeita do único homem realmente amaldiçoado.
Não consigo acreditar no pensamento irracional que cultivei durante anos, mas, me pressionar sobre isso não mudará minha mente para o futuro. Preciso aceitar, não negar. Não mais…
Minha ambientação mental evoluiu absurdamente se comparado com antes. Quando entrei aqui a primeira vez estava uma turbulência com tsunamis, tempestades e monstros marinhos. Meus maiores pesadelos habitavam um mundo conturbado; minha própria mente.
Porém, junto do conhecimento veio um mar raso e calmo, acompanhado por um céu turquesa que jamais irei esquecer. Agora é o meu paraíso. O céu é lindo, digno de uma primavera; os campos de trigo que me rodeiam ao horizonte refletem a luz por sua superfície, enquanto balançam pelo vento incomum. Se eu pudesse viver neste local pela eternidade eu faria, mas existe um mundo ao qual não posso ignorar lá fora.
Aproveitei aquela brisa durante alguns minutos, pensando sobre qualquer coisa que revisitasse. Infelizmente aquela energia durou somente esses minutos.
— Virou bagunça, foi? — perguntei olhando para o vento, sabendo exatamente da presença que me acompanhava.
— O quê? — retrucou Alunne, caminhando pela plantação de trigo. Virei-me de perfil para vê-la.
— Vocês podem entrar e sair a hora que quiserem? É assim, agora?
Ela riu gentilmente.
— Sim. Você me deixou entrar, para me fazer sair, irá durar bastante. — Quando me dei por conta, ela já estava a par de mim. Se jogando em minhas costas e abraçando-me maternalmente, continuou a falar: — Posso fazer o que quiser contigo.
Temi por um instante, pois sabia que era um fato. Decidi ceder a Alunne devido aos pedidos constantes de Luanne e Selina. Graças a isso, meu elo com a celestial da lua aumentou, nos tornamos íntimos, sem que realmente sejamos. Ainda assim, temo no que ela pode me tornar.
Camille sempre me contou sobre muitos dos deuses e seus seguidores, nunca acabou bem para os mortais…
— Tenho uma dúvida quanto a isso… O oráculo no mosteiro da lua, entregou-me a lua de sangue. O que isso significa?
Ela me soltou momentaneamente. Seus toques sempre me fazem lembrar de alguma sensação, cujo não consigo compreender…
Por fim, ela cruzou os braços em sua lombar e caminhou pelo trigo.
— Minha raiva. Cada lua na ordem significa um sentimento meu. Lua azul; a calmaria, lua verde; minha sabedoria, a lua, que domina Luanne, simboliza meu poder etéreo. Porém, a lua de sangue não poderia ser outra senão a minha raiva.
— De quê? Do que vocês podem ter raiva?
— Deve estar se referindo aos celestiais, correto? Bom… Existem dimensões que causam uma maior dor de cabeça.
— Não convenceu…
Alunne gargalhou.
— Não tente achar explicações que te convençam sobre as ações dos divinos. Você só vai enlouquecer.
— Já estou louco.
Um silêncio constrangedor tomou o clima. Com toda certeza Alunne não sentiu o mesmo que eu, mas, eu fiquei constrangido naquele momento. Não consigo explicar o motivo, apenas fiquei.
— Você não terá que lutar contra demônios externos, e sim internos — disse Alunne, vivendo a brisa do meu plano espiritual.
— Eu sou meu maior inimigo, né? — retruquei, entendendo seu contexto. Por isso fiquei cabisbaixo perante a deusa.
— Não, Theo. Você é o seu único inimigo; não existem adversários, somente o que aparece no espelho.
No fundo, eu sabia que ela tinha razão. Mas não queria absorver aquele pensamento, afinal, é muito mais fácil jogar o peso do próprio fracasso em alguém do que em si próprio. Ainda que eu tenha toda essa experiência de vida acumulada, pareço ser tão… imaturo. Talvez seja algum mau humano fingir ser adulto.
Olhando para ela, conseguia ver nitidamente sua preocupação comigo. Era novidade, nunca pensei que deuses fossem agir dessa maneira tão humana. Porém, no fundo de tudo, eu sei que Alunne apenas tem suas preocupações por algo que está planejando para mim. Amaldiçoam aos demônios, mas se esquecem dos anjos… Era o que eu pesava sobre eles.
— Suas bênçãos… Quando vou tê-las?
— Hum? Mas já? Você é interesseiro, né?
— Você também me quer por interesse próprio, não finja alarde.
Ela sorriu.
— Já que entrou no assunto, tenho três presentes para você; um meu, outro de Araav e um de Boreas.
— Boreas? — Despertei atentamente. Como Alunne saberia? Alguns segundos depois me lembrei de Luanne, provavelmente elas se comunicaram.
— Sim, Luanne me contou tudinho. Como você está num local em que Boreas não atinge, deixarei isso contigo também.
Estendendo o braço para o lado, ela causou um tremor do solo até o céu. Junto de seu braço que subia ao ar, uma torre se estruturou no meu plano espiritual. Pude sentir uma dor tremenda na minha alma e mente, como se um poder tentasse me invadir. Os ventos tornaram-se turbulentos, saltando e vazando para todos os pontos cardeais enquanto se estranharam pelo infinito da minha mente.
No fim do tremor, uma torre que rasgou os céus se ergueu. Estruturada, no geral, por pedras vulcânicas de tons cinza-claro e janelas arqueadas simetricamente distanciadas. Pilares seguindo o estilo coríntia marcavam a porta de três metros, acompanhada por uma mana intensa que transbordou de dentro para fora.
Aquilo me surpreendeu; meu plano espiritual é formado por ki e bordado com éter — minha energia nuclear. No entanto, mana? Vindo de uma construção divina? Não deveria também ser éter?
— Esse é o Horológio de Boreas — explicou ela. — Deveria vir somente quando firmarem o pacto, mas ele me permitiu trazer até ti. É constituída por cem andares repletos de criaturas anemo.
— Uma torre de testes? Como a de Athenian?
— Correto, precisamente. Porém, se trata de você conseguir manipular e controlar perfeitamente o vento. Essa torre serve para aumentar sua proficiência. No topo, você se tornará o verdadeiro portador do vento absoluto.
Pensei um pouco, ponderando as possibilidades. Até que cheguei a uma conclusão inevitável: a morte.
— Criaturas míticas, né? Com certeza não estarei no nível. — Soei frio. Nem se eu ficasse mais poderoso nos andares inferiores eu conseguiria derrotá-los.
— Por isso está em seu plano espiritual. Se morrer aqui, você irá acordar. Somente isso. Não sei como você fez, mas este lugar parece bem refinado. Acho que passou um bom tempo aqui.
Quase contei a ela minha capacidade de tornar este lugar com o tempo relativo, mas preferi esconder. Aliás, nem sei se isso é algo peculiar de mim, afinal, outros podem ter essa mesma capacidade e revelar isso com felicidade iria me fazer passar por idiota.
Ponderei um pouco melhor se deveria seguir naquele momento ou esperar um pouco mais. Eu não sabia ao certo o que iria me aguardar, isso me causava ansiedade e inquietude. Os próximos minutos; a incerteza no futuro, sempre me causou esse comportamento mesmo em outra vida.
Mas decidi recuar no fim. Me senti admirado pela mana, e também intimidado. Não era o momento certo, não ainda.
— Bom, tenho que ir — disse Alunne. — Sou onipresente, mas prefiro ficar na lua. Estou conversando com Luanne neste momento, inclusive. Ela disse que vai alertar o seu pai sobre a situação. Enfim, fique bem, meu filho.
Alunne, a celestial da lua, se despediu abraçando-me por trás. Seu contato físico trouxe a resposta para as minhas sensações em sua visita.
— Você…
Me virei buscando-na, mas ela já havia desaparecido.
Agora fazia sentido…
Uma memória do início dessa vida revisitou, na noite em que nasci abaixo de uma lua carmesim. Minha visão ainda estava turva e limitada, mas podia vê-la; a pele pálida como a lua, olhos negros e cabelos de mesma intensidade.
Era ela… Alunne havia me visitado no dia do meu nascimento…
Mas, por quê?
— Theo! — exclamou, uma voz invadindo meus tímpanos diretamente. — Theo!
Meu corpo físico chacoalhou abruptamente, sendo balançado por uma mão leve e forte. Abri meus olhos lentamente e os fechei numa velocidade superior; a luz bateu na minha retina de uma forma intensa e rápida. Mesmo em tons leves, aquela luz azul me cegou momentaneamente.
Uma mão me virou de lado, buscando me acordar apropriadamente. Senti uma camada grande de tecido me envolvendo dos pés à cabeça, mas não fazia sentido. Eu entrei no domínio apenas com uma manga longa preta ajustável e um pequeno jaleco amarelo. Tanto tecido me envolvendo não era coerente.
Quando me adaptei a luz e, finalmente, abri meus olhos, vi o rosto de Selina preocupada. Seus olhos pareciam com os de uma boneca; azuis como um cristal, coberta por um manto preto que escondia seu traje de caça. Vi seu desespero esvair com um suspiro ofegante.
— Que bom… — resmungou, ajudando-me a ficar sentado enquanto resgatava minha zweihänder do chão e utilizava como apoio.
Esfreguei meus olhos para acordar, e, ainda após um breve devaneio, pude enxergar uma roupa similar a de Selina; um manto, também preto, porém de três camadas; uma pequena parte vermelha, interiormente, que jazia um capuz, enquanto a segunda parte que protegia meus ombros numa ombreira branca e entalhada por ouro. Por fim, a roupa preta que me cobria completamente onde, em seu interior, mudava de cor constantemente.
— De onde veio isso? — perguntei, mesmo sabendo que Selina provavelmente não saberia da resposta.
— Eu quem iria perguntar…
Puxei o tecido, confortável, com meu braço direito e o admirei. Era realmente belo como suas cores interiores trocavam tão casual e harmonicamente.
A resposta chegou quando notei do que se tratava.
Um presente de Alunne, outro de Boreas e, por último, o de Araav… Só pode ser dele, não é?
— Araav… — comentei ao vento.
— Quê?
— Jovem Mestre! Serach! — Bastien exclamou, entrando na caverna.
Ao lado dele, apenas sete agentes caminhavam e Nihaya flutuava ao lado. Sor Jack estava com seu braço machucado, sendo arrastado por uma mulher ruiva enquanto olhava feliz para mim. Eu não estava.
Apenas oito membros além de mim e Selina?… Isso não pode ser real. Não é possível que apenas nós tenhamos sobrevivido, né? Certo?
Minha visão embaçou por um instante enquanto meu semblante se desesperou.
Bastien correu pela escada do altar até alcançar a mim e Selina.
— Não me diga que… — disse Selina, mas fora interrompida.
— Sim. Apenas nós.
Ele tentou manter a calma, mas era notório seu próprio desdém e sentimentos. Bastien podia não demonstrar, mas ele queria chorar durante os próximos dias, sozinho, sem ninguém.
Tive a certeza de que Selina me encontrou sozinha, mas o resto foi guiado por Nihaya. Este filho da puta, inclusive, era dono de um ódio que cultivei no coração.
‘É. Não chorem agora.’ disse o desgraçado.
Me levantei com ajuda de Bastien e Selina, então caminhei até ele. O encarei de baixo para cima, pois flutuava em minha frente.
— Qual o seu jogo? Está do lado de Bvoyna ou do nosso?
— Bvoyna? — murmurou Bastien.
— Esse é o nome de Cepheus, após ascender a Mephys. Tive que saber por Alunne, já que o gênio arrombado não nos contou.
— Theo, olhe a boca. — Selina tentou me reprimir, mas ignorei.
— Qual parte foi verdade, das informações que plantou em nossas mentes?
‘Todas.’
— Então você omitiu?
Seu silêncio me explicou tudo.
Nihaya suspirou e levitou até diante de mim. Um brilho azul o cobriu dos pés a cabeça, alterando seu próprio DNA e estrutura física; eu temi, os outros não. Tive medo do que ele faria, mas o restante confiou nele.
O brilho cessou rapidamente revelando uma nova aparência.
Um homem alto e robusto me encarou; seus cabelos marrons eram macios e curtos, jogados para trás onde apenas alguns fios caiam pela testa. Sua barba falhada, porém, bem cuidada, trouxe um envelhecimento juvenil para um rosto de maças bem definidas. Os olhos estreitos e castanho escuro me encararam, acompanhados pelas sobrancelhas grossas e pontiagudas, como se estivesse sempre irritado.
Ele vestia uma roupa branca coberta por uma armadura preta e entalhada por cobre, enquanto um manto era sustentado em seu peitoral por um brasão real.
— O quê? — murmurei. Todos fizeram a mesma expressão que eu, exceto Aidna.
— Posso contar quando sairmos daqui.
Nihaya chocou suas mãos e expandiu seus braços para longe, posteriormente, causando um leve impacto energético e sonoro. Seu símbolo de djinn pairou sobre o chão do altar, onde todos já se encontravam reunidos.
Uma leve cortina de energia azul pairou, despencando do buraco no teto da caverna e cobrindo a nós. Lentamente, senti meu corpo tornar-se leve e parei de sentir o chão.
O intenso e constante brilho azul se dissipou e alastrou à minha vista.