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No  inverno de 1747, diante de dezenas de milhares de pessoas, havia uma grande estrutura feita de madeira bruta de 8 metros de altura. Sobre ela, estavam reunidas figuras de alto escalão do Exército Imperial de Elenea, testemunhando a execução do estrategista supremo em campo de batalha; talvez o maior que a humanidade já conhecera: o homem responsável pelas vitórias que engrandeceram o Grande Império.

A atmosfera gélida do inverno transformava cada respiração em pequenas nuvens de vapor que pairavam no ar, fazendo os presentes tremerem não apenas pelo frio, mas também pela expectativa.

O estrategista era aclamado, entretanto, também temido por todos os grandes generais inimigos. Contava-se que, mesmo em situações de aparente derrota no campo de batalha, sua liderança poderia reverter o destino a seu favor. 

Porém, lá estava ele, com o rosto surrado, hematomas verdes e roxos por todo o corpo, pequenas feridas maltratadas cheias de pus e sangue abertas em seus ombros e braços.

A multidão murmurava, compartilhando histórias de batalhas vencidas pela sagacidade dele. Os olhares de admiração e receios se entrelaçavam, tecendo um véu das mais improváveis sensações.

 Dificilmente se podia reconhecer o grandioso homem de outrora por trás daquela figura. Suas roupas, anteriormente feitas com o tecido mais precioso vindo diretamente das terras do norte, agora estavam reduzidas a trapos sujos e maltrapilhos.

 No entanto, o que mais impressionava não era sua aparência deplorável, mas sim seu semblante sereno. A única coisa que traía essa calma em seu rosto eram seus olhos, vazios e cheios de dor. 

Ao fundo, elevava-se um suntuoso assento, cuidadosamente enfeitado com púrpura e ouro, representando as cores distintivas da bandeira do Império Elenea.  Este trono, à par do que adornava o Palácio de Virgínia, emanava uma aura de esplendor.

Sentada com elegância sobre o trono, uma mulher de aparência divina, cruzava as pernas com graciosidade, suas curvas suaves destacadas pelo vestido de cor cinza prateado. O decote em V acentuava a beleza que, em circunstâncias normais, deixaria qualquer observador com água na boca.

Sua cabeça repousava sobre uma das mãos, o rosto de beleza sem igual passou para um distorcido semblante zombeteiro, como se achasse aquela situação a coisa mais engraçada do mundo. 

Ao seu lado, havia um homem de idade com várias medalhas em seu peito, um busto que o uniforme vermelho mal conseguia conter. Seu rosto era como o de um soldado endurecido pela guerra.  

Ele fez um movimento como se quisesse falar algo perto da orelha da imperatriz; ela o escutou e assentiu com uma das mãos. Ele fez uma saudação típica militar, virou-se, desceu os degraus e foi em direção ao centro.  

Lá estava um cubo flutuante com um pequeno brilho amarelo dourado no meio. Aquilo era um amplificador de voz. O homem de idade limpou a garganta e, com grande timbre, gritou: 

 — Glória ao Império!  

Logo, seguindo de ímpeto, os soldados deram início a uma sinfonia de guerra, o som metálico de escudos colidindo ressoando como um estrondo distante, enquanto o impacto dos pés no solo reverberava como batidas ritmadas de um coração bélico. A população, em um frenesi coletivo, uniu suas vozes em um coro ensurdecedor, criando uma agitação que se espalhou por todos ali presente:  

— Glória ao Império e à Grande Imperatriz Marie V. Elenea. — Continuaram assim por uns minutos até que o homem, com um gesto de mão, fez todos voltarem à mesma rigidez, até mesmo a população.   

Ele, com um rosto satisfeito, prosseguiu com o discurso:  

— Estamos reunidos aqui para testemunhar a execução do ex-estrategista de guerra, Giliard Vitoiesk. Essa pessoa, um monstro na guerra, personificação da inteligência e desgraça dos inimigos; de fato eram muitos apelidos. No entanto, apesar de sua grandiosidade, esse indivíduo resolveu virar suas presas para as mãos de seus donos.

— Ele desencadeou o fogo voraz que consumiu cidades e vilarejos inteiros, um inferno ardente que iluminava o caminho de destruição por onde passava. Seus homens, como espectros cruéis, sem piedade ceifaram vidas e semearam o horror, deixando um rastro de morte e desespero. — O semblante do militar velho  metamorfoseou-se em uma careta carregada de uma ira profunda, quase tangível.

— Entretanto, sua insaciável sede de poder transcendeu a mera carnificina. Como um ser inescrupuloso, ele mergulhou nas profundezas da depravação, a moralidade dele já estava por inteira esvaída. Em uma busca movida pela ânsia de eternidade, ele se entregou a abominações científicas, trilhando um caminho que conduzia a sacrifícios grotescos. — Em uma interpretação teatral, seus lábios superiores curvaram-se para cima, como se estivesse comendo merda.

 O homem fez uma pequena pausa, deixando suas palavras pesarem mais. Um sorriso maldoso apareceu em seu rosto, mas logo desapareceu tão rapidamente quanto surgiu. 

— Milhares de inocentes, crianças e bebês indefesos, foram oferecidos como cobaias em rituais nefastos, suas vidas ceifadas em nome de uma busca desumana pela imortalidade. Células-tronco, a essência da vida, tornaram-se ferramentas perversas nas mãos deste déspota, utilizadas para manter a chama da juventude acesa, enquanto o sofrimento se estrugia em cada grito não ouvido. — Cada palavra que saia da boca do velho homem era acentuada com desprezo, o nojo percorria o seu rosto.

— Este relato vai além da loucura; é uma narrativa de horrores. Suas ações abomináveis não só devastaram paisagens, — neste momento, sua voz alcançava cada vez tons menores, quase como um sussurro — deixando-as em cinzas e escombros, mas também cravaram-se em nossas mentes como uma cicatriz de cesariana, uma lembrança brutal e indelével de barbárie.

— Nesta hora, esperamos que o sangue de suas vítimas cesse de gritar justiça, pois ela finalmente chegou. A lei finalmente será cumprida, não será branda, mesmo com os poderosos.

A imperatriz arrumou o cabelo para trás da orelha, ela quase conseguia escutar o “e fim” do discurso do homem, seguido de um fechar de cortinas com uma salva de palmas.

Ao ouvirem isso, por outro lado, entre a multidão, puderam-se ouvir choros. Muitos que estavam na ali eram das cidades atacadas que migraram para a capital Virgínia. Alguns gritavam:  

— Monstro! Maldito! Como pôde!? Eram crianças! Minhas filhas foram queimadas na minha frente por soldados. — Mas, logo, as vozes divergentes cessaram e um único coral pôde ser ouvido:

— Morte! Morte! Morte! — Como um enxame, os cidadãos socavam o ar.  

O homem, vendo aquilo, se agradou: “Logo tudo vai estar terminado”, ele sorriu por dentro com esse pensamento. 

Giliard permanecia na execução com o rosto abaixado, uma máscara de pedra que não esboçava nenhuma reação visível diante das palavras inflamadas do General Klaus.

Nesse ínterim, foi notificado por um soldado: 

 — General Klaus, os preparativos para a execução estão todos prontos. A segurança foi reforçada, medidas de prevenção foram preparadas. Estamos prontos para prosseguir, somente aguardando suas ordens, senhor.

O General assentiu com a cabeça e mandou que prosseguissem. Os soldados foram em direção ao prisioneiro, levantaram as correntes, forçando assim o transgressor a erguer-se. Com os pés desnudos, sobre o piso molhado da neve, escorregou-se sobre seu próprio corpo.

Os soldados franziram os cenhos aborrecidos, interpretaram a queda como uma tentativa de atrasar a execução.

O homem caído colocou suas mão no chão se apoiando, tentou se levantar, mas foi surpreendido com um chute na costela. Ele resistiu a vontade de gritar de dor, mais um chute, dessa vez, em suas costas, outro, outro e mais outro em sua barriga, fazendo-o jorrar sangue pela boca. O tenente-coronel, Haime, líder do esquadrão de cavalaria Lancelot, interrompeu os agressores:

— Talvez os senhores sejam, na verdade, justiceiros, não? Já chega disso, levem-no para o local de execução.

 Agitados, eles o levaram em direção a uma enorme haste de metal. Lá estava preparado o lugar onde seria enforcado Giliard.

Recolocando o cachimbo na boca, sentou-se e soltou uma fumaça preta, discretamente lançando um olhar para a imperatriz. A imperatriz estalou a língua com a interrupção da apresentação que se desenrolava em sua frente.

 Em nenhum momento, o povo deixou de cantar fervorosamente o cântico de morte. Entre os milhares na multidão, uma mulher de olhos caramelos com o rosto coberto por um capuz, com uma das mãos na boca, como se não conseguisse acreditar no que estava acontecendo diante de seus olhos, ela chorava vertiginosamente. Em sua outra mão, segurava a pequena mãozinha de uma criança de 9 anos.

Essas pessoas eram respectivamente Yasmin Vitoiesk, a esposa do prisioneiro, e seu filho Norman Vitoiesk. 

O garoto de cabelos pretos olhava a estrutura imponente e via seu pai, sempre gentil, com rosto sempre calmo de alguém que nada poderia abalar. Seu pai, que costumava contar histórias para ele antes de dormir, o mesmo pai que o levava para biblioteca fazer o que mais gostava: ler e se imaginar dentro das histórias — agora, detido, prestes a ser executado, acusado de crimes tão hediondos que apenas pensar nisso o fazia sentir náuseas.  

Apesar de ser jovem, sempre foi alguém muito elogiado por sua inteligência e maturidade. Ele era uma criança pura, não ingênua. Norman compreendia perfeitamente as acusações que pesavam sobre seu pai. 

Os questionamentos começaram a surgir em sua mente: “Será que aqueles momentos que passei com meu pai foram realmente reais? Meu pai poderia mesmo ser esse monstro?” No entanto, algo dentro dele recusava-se a sequer pensar nisso. Parecia uma traição à memória do pai afetuoso e gentil, que o ensinava a enxergar o mundo de maneira ampla e a amar o conhecimento.

A ideia de manchar a imagem do pai com tais pensamentos era o suficiente para fazer todo o seu jovem corpo tremer. Mesmo ouvindo as palavras do militar acusador, Norman não conseguia acreditar em uma só palavra. Era difícil aceitar que o homem que lhe ensinara tanto pudesse ser visto como um monstro.

Seus olhos ficaram marejados de lágrimas, pensou:  “Então por que meu pai está sendo acusado dessas coisas?”

 O garoto somente saiu de seu estupor quando sua mãe apertou sua mão mais fortemente e sussurrou com uma voz quebrada: 

 — Guarde bem esse momento, Norman, como uma testemunha da crueldade que a vida nos impõe. O momento em que a injustiça toma o centro do palco, faz sua apresentação e despeja sua maldade sobre nós. 

 Norman sentiu a dor nas palavras dela, mas não havia compreendido o que sua mãe queria dizer, todavia não a questionou.  

Ela prosseguiu: 

 — Seu pai, a pessoa que eu amei e amo com toda a minha alma, dedicou sua vida para proteger o bem de nosso povo. Jamais se deixou envolver em maquinações políticas, recusando-se a causar qualquer mal à população em troca de moedas de ouro. Mas, apesar disso, agora… 

 Ela lutou para falar, lágrimas escorriam por seu rosto, tornando muito difícil continuar. Enquanto isso, sua mente era inundada com lembranças de todos os momentos felizes que passou ao lado do marido, ele tinha sido a sua rocha de salvação, seu único amor. Tudo o que ela desejava naquele momento era encontrar uma maneira de aliviar a própria dor, agora que seu marido estava prestes a ser executado. No entanto, a presença da criança ao seu lado a impulsionou à frente.  

Limpando as lágrimas e olhando agora com um olhar firme para seu filho, continuou a falar com determinação:

 — ele está sendo alterado em um ser diabólico, sua imagem sujada pelas mentiras da nobreza. Por isso, meu filho, lembre-se disso. Pois agora nosso nome será motivo de desgraça. Mas, um dia, a verdade vai ser revelada. Não esqueça a dor que estão infligindo a você agora… somente o passado nos dá força necessária para seguir em frente no futuro. 

 O jovem Norman estava com o rosto estupefato; seu mundo estava prestes a desabar. Seus pés, que já não tinham firmeza, não conseguiram sustentar o peso do seu próprio corpo. Seus joelhos ralaram no chão, mas ele não se importou, a dor que estava sentindo dentro de si era muito maior, lágrimas corriam como um rio sobre seu rosto. Quando sua mãe lhe ajudou a levantar, a multidão já havia parado com seu clamor. 

   General Klaus, vestindo um uniforme vermelho que mal conseguia conter seu grande busto, declarou: 

— Finalmente chegou o momento que todos aguardavam. 

 Enquanto o General proferia suas palavras, dois robustos soldados permaneciam próximos ao prisioneiro, ajustando um nó especial conhecido como nó de forca e amarrando-o na extremidade da corda. A corda foi posicionada ao redor do pescoço do condenado. 

Concluída essa etapa, os dois soldados deixaram a plataforma e se dirigiram a uma alavanca, sinalizando para que o general desse as ordens.  

Klaus, que até então evitara o olhar direto para Giliard, virou-se e proferiu a máxima:  

— Prisioneiro, Vitoiesk, Giliard, alguma última palavra?

A cabeça de Giliard permanecera baixa até então. Seus olhos, no entanto, vasculharam o mar de rostos à sua frente. Reconhecendo alguns familiares, nobres e amigos íntimos, ele vislumbrou expressões de repugnância, surpresa, indiferença e lágrimas. No entanto, nada disso tinha mais significado para ele.

 Ele olhava para a multidão como se estivesse procurando por algo ou alguém. Quando finalmente parou e seus olhos ficaram fixos em uma direção, era onde estava sua família. Só então começou a falar: 

— Não me resta muito tempo… sinto muito pela dor que eu causei a vocês. — Mudando o olhar para o céu negro. —  Cuide deles.

Giliard deu uma pequena pausa e soltou um suspiro fraco, enquanto seus olhos lacrimejavam não pela ideia da morte, mas pela impossibilidade de ver sua família novamente.  

— Adeus, queridos, eu vou primeiro. — Finalizou, soltando um sorriso de canto de lábios, um sorriso triste, afinal. 

 O General deu o sinal e o espaço onde estava Giliard se abriu, deixando seu corpo pendurado. Logo após a queda, o condenado experimentou uma reação de luta instintiva, com movimentos desesperados das pernas e dos braços, enquanto o corpo tentava resistir à asfixia. 

Alguns na multidão, originários de vilarejos pequenos e pacíficos, onde a pior transgressão era uma criança órfã roubando para matar a fome e, consequentemente, sendo punida com algumas chicotadas, nunca tinham testemunhado uma execução e não puderam evitar o choque, levando as mãos às bocas.

Outros, por outro lado, aproveitaram a oportunidade para liberar suas raivas contidas. Gritos frenéticos ecoaram quando pedras foram atiradas em direção à grande estrutura que abrigava a forca. Alguns golpes atingiram o rosto de Giliard, deixando cortes profundos, enquanto outros encontraram seu corpo, quebrando ossos e dilacerando a carne, independentemente da região atingida.

Logo, os movimentos do corpo de Giliard tornaram-se menos frequentes e, eventualmente, cessaram por completo.  

 A multidão presenciou, com um turbilhão de emoções, a execução do estrategista, variando entre furor incontrolável e um alívio pesaroso

Norman, ainda perplexo e chocado, tinha seu olhar fixo no local onde seu pai havia sido enforcado, as lágrimas continuavam a escorrer por seu rosto. Seu corpo tremia, e sua respiração tornou-se irregular, mesclando-se com a amargura da realidade crua que se desdobrava diante dele.

Sua mãe abaixou-se em seguida, abraçando-o com força, envolvendo-o como em um casulo. Lágrimas misturavam-se às dele, enquanto tentava em vão conter soluços. O firmamento de suas vidas parecia ter desabado ao seu redor.

Um lamento sufocado tomava conta de Norman depois que seu pai faleceu. No meio da bagunça emocional, algo dentro dele quebrou, deixando um vazio escuro. Norman apertava os dentes, uma frustração pulsante se enroscava em suas entranhas, um nó na garganta, um amargo gosto de despedida não dita. 

“É isso? Acabou?”, pensava Norman, sua voz interior era um sussurro entrecortado. “Não vou ver mais o papai? Eu não consigo respirar… pai… papai… me devolvam ele… eu quero ele de volta.”

No ápice do delírio, um grito rasgado escapou dos lábios de Norman, ecoando a agonia que tomava conta dele. Sem controle sobre sua própria tempestade emocional, suas unhas se cravaram nas costas da mãe, como garras afiadas buscando uma ancoragem na tempestade furiosa que assolava sua mente.

Sua mãe, mesmo ferida, permanecia abraçada a ele, um escudo contra a tormenta. O grito, as unhas cravadas, eram manifestações de uma dor tão carregada que escapava das palavras. O lamento sufocado agora encontrava um escape momentâneo na intensidade do seu grito, uma fuga desesperada.

Com o rosto ardente de rubor, o pranto ainda presente, ela prometeu:

— Eu não posso trazer de volta o seu pai, mas estou aqui para você, agora e sempre. Vamos encontrar forças um no outro para superar essa dor.

 Klaus, contemplando o horizonte de eventos, rejubilou-se com o resultado da execução, continuou com seu discurso: 

 — A pena foi cumprida, as vítimas finalmente podem descansar em eterna paz.

A multidão respondeu com murmúrios e aplausos. Era um dia sombrio para o Império de Elenea, um dia em que um herói de guerra se tornou um traidor. 

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Olá, eu sou Kaua Paulino!

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