Selecione o tipo de erro abaixo

— Por que acha que eu te entregaria aos imperialistas? Ou ao seu senhor? Se os seus “pais” realmente cometeram os atos dos quais são acusados, isso é um problema exclusivamente deles. Não é justo que uma criança pague pelos erros dos pais, isso não seria justo para elas.

Quando o homem terminou de falar, um grande vento soprou, levantando as folhas da árvore e bagunçando os cabelos do menino. Mas ainda assim, seus olhos estavam como que vidrados, em um daqueles momentos em que se olha para um objeto, mas não se foca nele.

O objeto em questão era um suporte de ferro que carregava o saco de soro, o qual, como os ponteiros de um relógio, pontualmente deixava cair uma gota que era absorvida por um tubo transparente até chegar no braço do garoto.

“Você é exatamente como eu imaginei, senhor Hassan. Sinceramente, há algo de belo nas pessoas boas, elas são semelhantes à bela prataria, usadas somente para as visitas mais dignas. A melhor porcelana, eu admiro elas, pois sei que não importa quanto me esforce, minhas ações nunca parecem totalmente verdadeiras como as delas”, Norman pensou enquanto seus dedos se abriram como uma tesoura, deixando cair mais uma pétala.

“Eu sou um belo… um belo de um garoto doente”, Norman deixou escapar um leve sorriso. Seus olhos brilham com um toque de diversão, mas ele rapidamente volta a sua expressão de criança tímida, como se estivesse apenas brincando consigo mesmo por um momento.

Hassan falou em voz baixa para o garoto ao seu lado, sem perceber que este estava imerso em seus próprios pensamentos:

— Cabe aos adultos proteger as crianças, preservar sua inocência e permitir que sejam felizes — murmurou, virando o rosto para Norman e encontrando seus olhos azuis celestes. — Às vezes, desejamos que as crianças ajam como adultos, pois parece mais fácil entendê-las assim, mas esquecemos o quão doloroso e até cruel esse processo pode ser para elas.

Hassan seguiu com os olhos a trajetória da última pétala da flor, que foi arrancada e caiu no chão. Ela dançava e girava até o seu caminho ao chão, antes de pousar delicadamente ao lado da trilha de formigas que seguia seu percurso ali.

— Agradeço pela sua sinceridade, Norman.

— Senhor Hassan, eu também tenho algumas perguntas. O senhor se incomodaria se eu… — Norman hesitou por um momento.

Mas ao perceber sua hesitação, o beduíno colocou gentilmente a mão em seu ombro, oferecendo apoio.

— De maneira alguma, é justo depois de eu ter pedido para você contar algo que ainda deve te fazer muito mal. Vamos, pode mandar quantas você quiser! — Hassan disse com um sorriso reconfortante, daqueles que somente um pai poderia fazer, enquanto Norman encolheu os ombros, parecendo um pouco envergonhado. Mas mesmo hesitante, perguntou: 

— Por que o senhor usa um vestido?

— O quê? — Puxou a roupa e olhou engraçado para o menino, o garoto sempre parecia ser tão maduro, mas olha essa pergunta. Ele com certeza ainda era uma criança.— Isso não é um vestido, é um thobe — mostrou as mangas da roupa com orgulho com o brasão da sua casa. 

Os olhos do garoto se iluminaram com curiosidade, como se tivesse descoberto um tesouro escondido.

“Que coisa admirável”, pensou Hassan, encantado com a capacidade do garoto de se surpreender com algo tão simples.

— Ahh, entendi. As pessoas do império não costumam usar thobes e também têm a pele mais pálida, exceto um pouco as pessoas do sul, mas a do senhor é diferente.

Norman deixou escapar, percebendo seu erro depois. Geralmente, pessoas pobres nasciam e morriam onde haviam sido criadas, o que significava que, a menos que fossem educadas, não teriam conhecimento sobre os hábitos, etnias, religiões ou crenças, nada da subcultura de seu país.

Poderia parecer simples, mas o império de Elenea tinha proporções continentais. Então, uma criança saber sobre isso poderia ser estranho, ou o mais preocupante, levantar suspeitas.

Olhou para Hassan desconfiado, seu cérebro congelou ao notar o homem fazendo uma expressão estranha. Não congelou de não funcionar mais, e sim de focar em sua situação e pensar em uma solução.

Algo deveria estar errado com aquele raciocínio. Sim, pensou o garoto, há algo de errado, afinal não estavam tão distantes do sul. Caso Hassan o perguntasse não seria difícil argumentar contra, seu suposto pai era um homem de negócios seria impossível nunca ter visto um sulista, mesmo eles tendo a fama de odiarem o norte e não quererem pisar lá mesmo que fossem pagos.

Norman quis gritar por ter cometido um erro tão bobo, sentiu vontade até mesmo vontade de xingar, coisa que odiava, mas não o fez, não quebraria um dos seus mandamentos pessoais: “Somente homens que não sabem expressar o que sentem, praguejam”. Achava uma profunda falta de educação, nem mesmo praguejou contra a péssima alfabetização da população.

Porém seus pensamentos se dissiparam ao ouvir o homem ao seu lado falar:

— É algo engraçado isso. Não sou do império. Meu povo por muitos anos viveu no deserto, mas após a grande guerra civil no império… Tudo mudou depois disso.

— O que aconteceu com o seu povo? — perguntou o garoto curioso, seu fascínio por conhecimento ultrapassava até mesmo os limiares físicos do seu corpo.

Da copa da árvore, alguns raios atravessavam as folhas densas iluminando os pelos pretos do braço de Hassan que estava cruzados:

 — O imperador Carlos I impôs sua autoridade, nomeando um jovem prodígio como comandante do exército. Isso trouxe estabilidade política ao império, permitindo que Elenea concentrasse seus recursos na expansão militar e econômica. No entanto, também trouxe consequências dolorosas para nós…  Como posso explicar isso para uma criança, deixe-me ver —  Hassan posou com uma cara pensativa.

“Ok, isso foi um tanto anticlimático. Meu pai riria de mim por pensar tanto ao ponto de soar como um paranoico”, pensou Norman, sentindo um alívio bem-vindo. Seus ombros tensos relaxaram contra o encosto da cadeira de rodas. Ele inspirou profundamente, sentindo o bom ar de estar vivo, mas sem deixar de prestar a devida atenção ao beduíno.

— No deserto, havia várias tribos com suas rivalidades e diferenças. Aquele desgraçado… — Hassan limpou a garganta, lembrando que estava falando com uma criança. — O Vitoiesk soube explorar essas divisões a seu favor.

— O que ele fez?

— Tínhamos vantagens em números e recursos, como elefantes de guerra, mas não nos unimos contra o inimigo comum. O monstro da guerra, como ficou conhecido depois dessa batalha, se aliou a tribos rivais e usou de táticas sujas para desorientar nossas forças, como o barulho contra os elefantes. Antes da batalha final, meu avô recebeu uma carta do invasor: “Sou a força de ocupação, o câncer dessa terra. Renda-se enquanto ainda tem dignidade.” Nosso povo sucumbiu diante da tomada de território. Fomos levados para longe, para estas terras de montanha, distantes de nossa terra natal.

O menino pareceu franzir a testa em dúvida. Hassan pôde perceber nos gestos dos dedos do garoto que ele queria perguntar, mas estava se retraindo. Levando isso em consideração, Hassan optou por uma abordagem diferente para exemplificar.

— Sabe, é como dominós. Se alguém empurra o primeiro, todos os outros caem um atrás do outro. Não é necessário forçar cada dominó individualmente, pois o movimento se propaga naturalmente através deles. Entende a analogia? Mesmo ele tendo um exército menor, não lutou com todos ao mesmo tempo.

Norman continuou com a mesma careta, o que Hassan não esperava é que Norman não estava com aquela expressão por conta de não ter entendido, mas pelo homem estar contando uma das mais bem sucedidas vitórias de seu pai.

O homem suspirou, percebendo que, no fim das contas, a criança não precisava entender totalmente a história de seu povo, principalmente quando envolvia guerra. Era um assunto pesado demais para um jovem. Então, ele decidiu mudar de assunto, procurando algo mais apropriado e de maior interesse para Norman.

— Tem algo que eu poderia fazer por você?

Norman olhou animado para o homem, seus olhos azuis brilhavam intensamente, as sobrancelhas arqueadas em surpresa. Sua expressão mudou tão rapidamente quanto um cavalo puro-sangue britânico percorre mil metros.

— Sério, eu posso pedir o que eu quiser? — Norman perguntou,. Sem nem pestanejar, ele disse, salivando: — Eu gostaria de comer galinha assada com molho de cranberry. Sempre vi meus irmãos comendo isso e sempre quis experimentar.

Hassan estava com um sorriso peculiar no rosto, uma expressão que esperava qualquer coisa, menos um pedido por um prato de comida.

“Eu não acredito nisso”, riu consigo mesmo o beduíno.

— Eu estava me referindo… — ele não pôde segurar a risada nos lábios, o que fez o menino corar levemente de vergonha. — Se eu poderia ajudá-lo a tornar a ver sua mãe.

Norman estava tão surpreso quanto alguém que encontra uma quantidade exorbitante de dinheiro na rua.

Naquele ponto, o soro que estava recebendo no braço já havia acabado, mas o suporte ainda tinha utilidade. Serviu como uma espécie de muleta para Norman tentar se pôr de joelhos, porém foi um fracasso. O menino caiu no chão aos pés do homem.

Rapidamente, Hassan o acolheu em seus braços com uma expressão confusa.

— Por que fez isso? Você não pode andar ainda. Não deveria nem se esforçar — repreendeu Hassan com um tom rígido.

— Não me senti digno de permanecer na altura dos olhos do meu senhor, como se estivéssemos em pé de igualdade. Por isso me joguei ao chão. Forço as minhas pernas a se dobrarem, mas são servas rebeldes. Este humilde camponês, filho de John Müller, bastardo resultante de um dos ataques de seu pai a uma serva, deseja fazer-lhe mais dois pedidos.

O beduíno assentiu para que o garoto continuasse, mas não antes de o colocar na cadeira novamente, limpando o pijama hospitalar vermelho do garoto.

“Você me parece um bom pai, senhor Hassan”, pensou Norman, que por algum motivo, talvez nem ele mesmo soubesse dizer, olhou para o céu.

— Acho que vou deixar eles para mais tarde — disse Norman, abaixando os olhos e apontando com o rosto para os recém-chegados.

Hassan então viu ao longe seus dois filhos se aproximando… a pequena vinha correndo na frente enquanto o mais velho vinha caminhando carregando um grande livro.

— Papai, papai… pa… — a menina se engasgou com a própria saliva enquanto puxava desesperadamente o ar com a boca aberta e a língua para fora.

Logo depois, Guli, o mais velho, apareceu com uma expressão carrancuda, como se seu dia estivesse sendo péssimo. Ele olhou de soslaio para Norman, meio ressentido por ver seu pai todo envolvido com outra criança.

Ele lançou um olhar para sua irmã e murmurou enquanto se sentava no chão gramado, cruzando as pernas e entregando ao pai o livro ilustrado:

— Eu disse para ela não correr, mas ela não me escutou…

— Eu já estou bem, tá? — disse a menina, endireitando as costas e inflando o peito, mas ao notar seu irmão rindo dela, fez um bico e sentou-se no chão ao lado da cadeira de rodas de Norman.

Ela estendeu um pequeno pano no chão e colocou o queijo de cabra que trouxera junto com uma faca sobre ele.

— É bom te ver tão animada de manhã, senhorita Laysla — disse Norman, cumprimentando-a com os olhos.

A menina apenas se escondeu atrás de seus joelhos. Era a terceira vez que o via. Na primeira vez, ele estava até dormindo; na segunda, ouviu sua voz pela primeira vez. Tinha uma voz baixa e falava devagar. Ela gostava disso, sinceramente. Além dos olhos, não tinha nada de especial nele. Seu rosto não era bonito nem feio. Era o tipo de pessoa que passaria despercebida em uma multidão, além de ser baixinho. Seus cabelos pretos até poderiam ser macios, mas não eram nada fora do comum das pessoas do Norte.

Sua mãe, Sarah, o visitava muitas vezes com Hassan. Parecia que ela ficava mais contente toda vez que falava com ele. Mas em relação aos próprios sentimentos, sentia pena dele. Queria chamá-lo para brincar, mas seu pai disse que ele não podia. Ela não conseguia entender por que não podia brincar depois que melhorasse. Em sua cabeça, pensava que, sempre que tinha um arranhão no joelho, bastavam alguns dias e logo poderia voltar a brincar.

Hassan limpou a garganta, tentando chamar a atenção dos pequenos por um momento.

— Eu sei que vocês estão ansiosos para ouvir a história que prometi, mas preciso tratar de assuntos importantes.

Seus dois filhos protestaram veementemente.

— Não é justo, você prometeu! — a menina denunciou.

O menino balançou a cabeça, cruzando os braços.

— Que feio, pai. Você sempre diz que um homem deve honrar sua palavra.

— Mas é realmente importante…

A menina, seguindo o exemplo do irmão, também cruzou os braços, sua voz carregada de desaprovação.

— Você sempre diz que dar desculpas é coisa de covardes que não querem arcar com as consequências. Está dando uma desculpa dessas? — Ela então assumiu um tom mais autoritário, imitando a mãe: — Sem mais delongas! Eu quero essa história ainda hoje. Não me faça repetir, rapazinho!

Mesmo contra sua vontade, o beduíno teve que admitir que a imitação era idêntica à sua esposa. Ele ergueu as mãos em sinal de rendição. Aquela era uma derrota arrasadora; tudo o que podia fazer era tentar conter os danos.

Apesar de ter sido recentemente adquirido, o livro tinha uma capa velha e as pontas estavam sujas. Mas o que importava era seu conteúdo. Hassan alisou a capa com uma das mãos, sorrindo ao ler o título em voz alta:

— Verdade: A prova que os deuses jogam.

Picture of Olá, eu sou Kaua Paulino!

Olá, eu sou Kaua Paulino!

Comentem e avaliem o capítulo! Se quiser me apoiar de alguma forma, entre em nosso Discord para conversarmos!

Clique aqui para entrar em nosso Discord ➥