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As crianças estavam todas quietinhas, a expectativa era enorme. Até Hassan estava ficando ansioso, fazia tempo que não lia aquela história. Ele limpou a garganta e abriu o livro, finalmente, começando a leitura:

— Há muito tempo, os deuses fizeram o lance e4…

— Desculpe interromper papai, mas o que é esse “lance e4”?— perguntou a menina, enquanto com o rosto tímido alisava o tecido da saia com os dedos.

— Esse é um dos lances de abertura no xadrez. Isso significa que o peão do rei branco avança duas casas para a frente, indo da casa e2 para a casa e4, entendeu? — respondeu Hassan.

— Ela entendeu papai, continua a ler, por favor — disse Guli.

— No início do mundo, os deuses passaram a profecia que surgiria um herói. E assim foi, o herói foi encontrado em uma vila pequena e afastada, ele foi convocado pelo rei daquela civilização. O herói entrou no castelo e se ajoelhou diante do rei, jurando lealdade.

— Agora vá, parta para uma viagem e destrua todos os monstros e pegue os cristais dentro do peito deles — bradou ordens o rei.

— Eca — expressou Laysla.

— É, que nojo — Guli concordou, colocando a língua para fora, como se fosse vomitar.

— Vocês vão deixar eu contar ou não? — reclamou Hassan.

Os pequenos abaixaram a cabeça em uníssono em sinal de desculpas. O homem vendo aquilo, limpou mais uma vez a garganta e novamente se pôs a ler.

— O herói lutou contra o monstro chamado Oliver: luta, luta, bate, bate, tira o cristal.

— O herói queria a paz, ele gostaria de paz, sim paz… ele lutou, lutou, andou, vagou, e encontrou o monstro Lisa: luta, luta, bate, bate, tira o cristal.

— O herói queria a paz, ele gostaria de paz, sim paz… ele lutou, lutou, andou, vagou, e encontrou o monstro Thomas: luta, luta, bate, bate, tira o cristal.

Depois de ter contado sobre as lutas do heroi, Hassan mostrou as imagens do livro para as crianças.

— Mas não importava quantos monstros ele destruísse, sempre tinha mais e mais e mais. Caçar os monstros sempre o fazia se sentir mal…— Hassan desacelerou a leitura apenas para ver os rostinhos todos com os olhos presos nele. Com expressões de indagação, para o homem que já esteve do outro lado era clara a pergunta que se passava na cabecinha deles: “Porque o herói está sofrendo?” O beduíno, porém ,não queria causar muito suspense pondo-se a ler novamente:

— no começo era apenas uma simples dor de cabeça, porém foi se tornando cada vez mais recorrente as dores de cabeça, cansado disso. Partiu atrás de uma solução para o seu problema e o herói foi até uma bruxa, que revelou que ele estava sobre um feitiço dos deuses. —Hassan colocou o livro sobre suas coxas e como se tivesse mexendo a colher em uma caldeirão falou:

—Repita junto comigo— as crianças se animaram, inclusive Norman— Cada passo parece que estou me aprofundando na escuridão.

— Cada passo parece que estou me aprofundando na escuridão— repetiram movendo as mãos como se estivessem movendo a colher no caldeirão.

—E a tentação de desistir torna-se um sussurro sedutor. Este mundo é perverso… a cada instante, a cada instante, tenta me devorar.

—E a tentação de desistir torna-se um sussurro sedutor. Este mundo é perverso… a cada instante, a cada instante, tenta me devorar — todas as crianças terminaram de entoar o canto da bruxa rindo.

Hassan então pegou o livro novamente e leu:

— Senhor herói, o feitiço está quebrado. Acho que agora você deve lembrar em suas novas memórias que na verdade não existia monstro. Você estava destruindo pessoas reais e pegando os corações delas e não cristais —a bruxa riu.

— O herói saiu desnorteado da casa da bruxa, chorando como uma criança, ele saiu correndo da casa da bruxa.

— Pobre herói — comentou Guli.

— O que vai acontecer com ele? Ele não tem culpa, ele não sabia — disse Laysla ficando em pé, não conseguindo conter os ânimos.

— Calma. Deixa eu continuar: — Quando a bruxa quebrou o feitiço, também foi desfeito para os demais cidadãos do reino, o rei, bravo, mandou caçar o monstro.

— Sim, caçar o herói, vingar as vítimas do herói — ordenou o rei.

— E então, e então, diga, diga — a menina falou quase devorando as unhas.

—O herói fugiu, mas o povo o perseguiu. O herói foi cercado, diante dele havia apenas um precipício.

— O povo deu um passo: — Ele não é um heroi é um assassino.

— O herói, olhou o precipício.

— O povo deu um passo: — Ele não é um herói é um assassino.

— O precipício, olhou o herói.

— O precipício o chamou.

— O herói encarou o precipício.

— O precipício era um espelho e refletiu um demônio.

— O herói sentiu medo.

— O precipício o confortou.

— O herói admirou o precipício.

— O precipício não o ocupava.

— Eu sou você, e você sou eu. Deixe minha trevas te envolver.

— O herói pulou para o precipício.

— O precipício o acolheu.

Quando Hassan terminou de falar e fechou o livro, as crianças estavam em choque, exceto Norman, aquele era o seu livro favorito ele o conhecia de capa a capa.

— O que vocês acharam? —perguntou Hassan.

—Ele morreu?— Laysla disse em um tom triste.

— É um final aberto, não sabemos.

— O herói era do mal?— perguntou Norman apenas para não ficar de fora.

— Acredito que ele estava fazendo apenas o que acreditava ser o certo. Mas esse final me intriga até hoje, o que a autora quis dizer? Eu tenho lá minha teorias, porém quero que cada um de vocês pensem sobre o seu próprio final para essa história.

— Posso ver o livro, senhor Hassan?— Norman perguntou.

Hassan entregou o livro, enquanto se movia para perto do queijo de cabra e cortava ele em vários pedaços pequenos.

Norman leu mentalmente: “Verdade: A prova que os deuses jogam de Yasmin Vitoiesk” o menino alisou a capa do livro, sentiu sua mente ficar pesada.

Norman se viu imerso em um turbilhão de pensamentos enquanto folheava seu livro favorito. Sua expressão contorcida refletia a tormenta de suas reflexões internas.

“Por mais que esse seja o meu livro favorito, não gosto desse começo dele”, ele murmurou para si mesmo, apertando o braço da cadeira com força. “Parece que eu não passo de algo insignificante, incapaz de escolher até a mais pequena das escolhas. Se isso for verdade, haveria apenas destino e sem escolhas possíveis. Me enjoa a ideia que nascemos e morremos apenas para perpetuar a espécie, nem um sentido a mais?”

Uma voz semelhante à sua, com um tom baixo e jeito pausado de falar, surgiu em sua mente, desafiando seus pensamentos. “Por centenas de anos os demônios reinaram na terra, suas histórias são contadas até os dias de hoje. Seguindo esse fato, como diabos, pode dizer que a vida não tem significado? Há algo de mais simplório do que o poder?”

Norman respondeu com um tom sarcástico, suas palavras carregadas de desdém. “Você vê as pessoas como sendo simples demais, por isso não consegue ver a beleza que há nelas. Se apegar ao poder é o mesmo que dizer que vivemos apenas para alcançar um lugar mais alto e no final, pra que?”

A voz persistiu, lançando uma proposta tentadora que ecoou na mente de Norman. “O tempo não para. Você sabe disso, conhece essa máxima. Mas um outro ditado popular afirma: ‘Para toda regra, tem uma exceção. Nós somos a exceção à regra, aqueles que podem quebrar a autoridade da morte sobre a vida. Se você não quer vingar o papai, faça pela mamãe. Na verdade, podemos nunca perder ela, nunca sentir a dor da morte de novo batendo em nossa porta. Guerras, fomes, tristeza, solidão, tudo isso só existe porque a vida nunca venceu da morte.

Norman permaneceu em silêncio, absorvendo as palavras e as possibilidades que elas sugeriam. A ideia de nunca perder novamente era algo realmente tentadora.

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