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No fundo daquela adega, a parede ao fundo estava preenchida com aquela arte, enquanto as paredes laterais tinham vários barris armazenados. O ar estava impregnado de umidade, e o aroma de madeira envelhecida envolvia todo o ambiente..

A luz dos cristais amarelos, por algum motivo, havia perdido parte de sua vivacidade, sendo mantida por pequenos cabos de aço ligados ao teto. Dave tinha a impressão de que a luminosidade estava oscilando, indo de um estado mais fraco para um mais intenso.

— Em seu estado natural, o cérebro humano é incrivelmente eficiente em construir modelos. Durante o sono, chamamos isso de sonhar; quando estamos acordados, de imaginação; e, quando a realidade se torna excessivamente vívida, de alucinação… — explicou Heitor, enquanto dava pequenos petelecos na seringa para eliminar as bolhas de ar, seu tom de voz calmo e controlado, típico da nobreza aristocrática.

Para o tenente Dave, parecia haver várias versões de Heitor ao seu redor, e sua mente estava em confusão. Ele ouvia as palavras do homem à sua frente, mas de uma forma estranha, como se estivessem em uma caverna escura e a voz de Heitor ecoasse em sua própria cabeça. Embora não se sentisse fisicamente preso, seu corpo estava pesado e difícil de controlar.

— Voltando à pergunta anterior: Como está se sentindo, Tenente Dave?

— Eu me sinto como se estivesse esquecido de algo importante, minha cabeça doi… Onde estamos mesmo? Há quanto tempo… quanto tempo estamos nisso? — o tenente cobriu os olhos com o antebraço — Poderia fazer a luz parar de piscar?

— Perda de noção de tempo é normal em situações de estresse. Portanto, tente relaxar um pouco. Estamos prestes a fazer uma… digamos assim: experiência. Mas antes que você durma, quero que lembre-se da nossa conversa anterior, quero que se lembre do que eu te disse durante a nossa sessão de terapia… — disse Heitor enquanto inseria a agulha no braço do Tenente Dave, olhando para ele com um olhar penetrante. — Mas não precisa ficar com medo, eu serei o seu guia.

Dave não sentiu a picada da agulha em seu braço, mas a dor veio quando o remédio foi injetado.

A voz de Heitor soava novamente, mas era mais como um amontoado de sons dissonantes do que uma voz propriamente dita. Para piorar, Dave não conseguia ver o rosto dele; era como se fosse um eclipse, uma sombra entre Heitor e a luminária que continuava a piscar.

O que o tenente não esperava era que a voz que ouvira antes não era do Corbeau, mas sim do capitão Winston, que estava apoiado em uma parede, observando tudo. 

O tenente ficou como se fosse um telespectador de sua própria vida. Não conseguia se mexer nem falar; ao menos, não sentia que podia.

Heitor, sem desviar os olhos do tenente, sentou-se novamente na poltrona enquanto explicava:

— Você já ouviu falar da luz estroboscópica?

Winston, como era de se esperar, negou.

— Na neuropsicologia, uma das primeiras coisas que aprendemos é que a exposição à luz estroboscópica pode induzir mudanças na atividade cerebral. Claro, para propósitos diferentes da coerção psíquica.

O Tenente Dave, mesmo em seu estado semi-consciente, conseguiu captar algumas palavras trocadas entre os dois Heitores.

Heitor abaixou os olhos e retirou as luvas, que saíram com um som de estalo. Em seguida, ajeitou as pernas uma sobre a outra e solicitou ao capitão que lesse o relatório das atividades do tenente.

O capitão puxou a pasta que sempre carregava debaixo do braço e começou a relatar dia após dia o que havia registrado sobre Dave desde o desaparecimento de Norman. O tenente era o sexto na lista de possíveis infiltrados do Império dentro de sua família. Além de Dave, havia outros cinco que haviam sido descartados da mesma maneira que ele seria, se tudo corresse conforme o planejado.

— Durante três anos, não tivemos motivo algum para desconfiar do Tenente Dave. A verdade é que ele é um grande amigo meu, e se fosse um espião, eu acho que saberia… Mas o senhor não está aqui para ouvir minha opinião. Um adendo, acho presumível assumir que esses dados podem estar incompletos; tenho muitas pessoas para investigar, é humanamente impossível saber o que elas fazem o dia todo. 

 Winston retirou um cigarro do bolso, hesitante. Apesar de se sentir um pouco desconfortável em fazer isso, era seu dever trazer o jovem mestre de volta. Com um suspiro, acendeu o cigarro, deixando a fumaça subir lentamente enquanto ponderava sobre os próximos passos da investigação.

— Um único ato fez minhas suspeitas recaírem sobre ele, foi quando Norman desapareceu. Como todos nós sabemos, o tenente Dave acompanhou Norman até a biblioteca, mas retornou sem ele. Segundo sua versão, quando terminou de pagar os livros, o garoto já não estava mais por perto. Verificamos essa história com a bibliotecária, que confirmou que o tenente havia estado lá e realmente comprado um livro… — fechou a pasta, enquanto passava suas declarações finais:

— Na academia militar, somos treinados para seguir nossos instintos… Os deuses me perdoem, mas meus instintos gritam que há algo de errado com Dave. Eu não sei dizer o que é, mas ele é o sexto na lista de suspeitos. Além disso, fora o incidente com Norman, não tenho nada relevante para falar dele. Durante a semana, ele acorda às 6h, limpa seu coturno, prepara o café da manhã, dá exercícios aos soldados, almoça, limpa sua arma, e assim continua toda semana.

Heitor apoiou o rosto sobre a mão, pensativo, respondeu:

— Eu já lhe expliquei uma vez, mas é sempre prudente relembrar algumas coisas. O Império empregava uma forma de lavagem cerebral… Em nossa própria espécie, sabemos que olhares evasivos, mãos suadas e voz rouca são indícios do estresse que acompanha o conhecimento consciente de uma tentativa de enganação. Ao se tornarem inconscientes de sua própria enganação, os mentirosos ocultam esses sinais do observador, podendo mentir sem o nervosismo que normalmente acompanha a falsidade— Heitor suspirou com a resignação da idade.

— A maioria das pessoas não percebe o que realmente convence alguém de que estão contando a verdade. Todo mentiroso habilidoso, pelo menos os melhores, seja instintivamente ou por experiência própria, entende isso muito bem. Como minha amiga escritora disse uma vez: ‘É o detalhe que nos assegura que um escritor está no controle e não caçoa de nós’. Essa observação é igualmente válida quando se trata de mentiras. É o detalhe único que envolve e seduz todos os ouvintes, tornando a falsidade aparentemente verossímil

— Uma coisa que eu não entendi na primeira vez que ouvi essa explicação é como essas pessoas ainda conseguem colher informações sem se dar conta disso. Não só isso, mas também como as enviam para seus superiores? — Winston coçou o queixo. 

O tenente grunhiu, incomodado com o barulho ao seu redor. Embora compreendesse que estavam discutindo algo sério, não conseguia discernir exatamente o quê. Aquela luz forte o estava enlouquecendo.

— É uma pergunta interessante, porém bastante simples de responder. Aliás, há uma maneira bem interessante de abordá-la. Lembra do ditado popular dos povos britânicos?

— Desculpe, mas acho que o senhor terá que ser mais específico. Há tantos — disse Winston tragando o cigarro.

— “Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade”. Eles não percebem que estão fazendo algo fraudulento porque aquilo é tão natural para eles quanto dormir ou trocar de roupas.

— Isso é tão absurdo, mas por que isso não é usado como arma de guerra? Quero dizer, já deve ser utilizado, mas por que não formar um exército de soldados para os quais é tão natural seguir ordens que nunca desobedeceriam ou recuariam? Seria um exército de moral infinita.

— Tentaram, mas não deu certo. Forjar soldados sempre exigiu muito tempo, e torná-los máquinas de matar levaria ainda mais. Mas algo fundamental fez esse experimento falhar: as emoções humanas. Não existia um método único que fizesse cada criança agir da mesma forma; em alguns casos, os resultados eram melhores, em outros, piores. Sim — Heitor concordou com a expressão de nojo do capitão. 

— O experimento era feito primeiro em crianças, afinal, acreditava-se que elas tinham uma mente mais maleável. Se falhasse nelas, não teria como funcionar nos adultos.

O tenente começou a convulsionar, choques elétricos pareciam atravessar o seu corpo. Não ouvia mais nada.

Por outro lado, tanto Heitor quanto o homem que o acompanhava pareciam indiferentes a isso. Heitor estava imerso em sua explicação, uma característica compartilhada por todos os estudiosos. Quando surgia a oportunidade de discutir sobre seu interesse, as pessoas ao redor se viam compelidas a tampar os ouvidos, pois sabiam que não parariam até ter exibido toda a beleza de seu objeto de estudo.

— Interessante, não é? — Heitor comentou.

— Ele convulsionando? — perguntou Winston.

— Por favor, não — Heitor riu energeticamente: — não sou um monstro que gosta de ver os outros sofrer.

— Então o que?

— Estou me referindo a outra coisa. Em como este mundo se resume a ideias. É a essência do dilema humano: o embate de ideias. O grande campo de batalha onde as armas são conceitos e as vítimas são as mentes. Pense bem, Winston… Tortura física, por mais eficaz que possa parecer, é inútil contra a fortaleza das ideias. Pois, se o torturarmos — Heitor apontou com o charuto para o corpo do tenente desfalecido —, ele se calaria para sempre, mas sua ideia persistiria. Como, então, desmantelar essa fortaleza invisível?

— Como? — aguardou a resposta, com certo nível de ansiedade.

— A resposta reside na própria natureza das ideias. Elas não são combatidas com violência física, mas sim com a insurgência de outras ideias, mais poderosas e persuasivas. Acredite em mim, as pessoas não têm ideias, as ideias têm as pessoas.

Os braços do tenente caíram para fora da poltrona, ele estava convulsionando menos. Winston, curioso, perguntou:

— Senhor, nos outros soldados eles não tiveram essa reação. Por que com o tenente Dave está sendo tão diferente? — apontou para o corpo.

 — Bem, a mente humana é incrivelmente complexa. Enquanto alguns soldados podem resistir ao piscar de luz, o tenente Dave reage de forma diferente. Suas conexões neuronais podem ser mais sensíveis a essas flutuações de luz, causando essa reação.

— Parece que já está na hora — disse Winston, aproximando-se da poltrona e inclinando-a suavemente, deixando assim o tenente deitado.

Heitor respirou fundo e pediu a Winston para apagar o cigarro. Em seguida, juntou as mãos e bateu uma palma, emitindo um som estranho, mas que parecia ser um comando.

O tenente permanecia indiferente a tudo o que ocorria fora de sua mente perturbada naquele momento. Sentia-se imerso em um vasto reservatório de água, com o corpo submerso até a cabeça.

Porém, mesmo debaixo d’água, conseguia enxergar como se estivesse do lado de fora, além disso, respirava com tranquilidade, não se sentindo sufocado.

Fragmentos de conversas e imagens piscavam em sua consciência, como estrelas distantes em uma noite nublada. Tentava agarrar-se a eles, mas cada tentativa parecia escapar de seus dedos. Movia-se com dificuldade, como se a água fosse desprovida de substância.

Uma voz ecoou ao longe, distorcida e irreconhecível. Dave lutava para dar sentido às palavras, sua mente turva tentando desvendar o enigma. A sensação de estar perdido em um labirinto mental o perturbava, iniciando um desespero em busca de uma saída.

“Tenente Dave, você está me ouvindo?” A voz parecia mais próxima agora, penetrando na névoa de sua mente com maior intensidade. “Você precisa se concentrar, eu sei que está aí.”

A voz pertencia a Heitor, mas Dave mal conseguia reconhecê-la. Sua mente continuava em uma espiral de confusão, cada pensamento uma batalha para alcançar a superfície.

Heitor prosseguiu: “Você sabe por que está aqui, não é, tenente? Preciso saber se posso confiar em você.” As palavras eram agonizantes, machucavam. Dave cobriu rapidamente os ouvidos, mas a voz persistia, fazendo-o encolher-se na água como um camarão, totalmente nu.

A voz tornou-se mais potente, como se quisesse fisgá-lo como um peixe. De repente, Dave percebeu que a água desaparecera, não havia mais ondas batendo contra seu corpo. Apenas a voz, deixando-o sem ar.

Quando parecia afogar-se em suas próprias ilusões, uma luz colorida como um arco-íris irrompeu, fazendo-o dar um salto quase caindo da poltrona. Segurou-se com força nos braços do móvel, puxando o ar desesperadamente. Olhou em volta, de volta à adega, a arte na parede intacta, os barris arrumados nas paredes como antes.

O tenente olhou assustado para Heitor, que não pareceu notar, pois estava com a cabeça abaixada, concentrado com um pequeno caderno e caneta em mãos. Um rosto totalmente serio, bem diferente da expressão nervosa de Dave, cujos olhos vasculhavam loucamente a sala em busca do pescador que tinha visto antes. 

— Entendo, parece que sua vida sempre foi cheia de dificuldades. Pelo que me contou você tinha um grande vício com cassinos, correto? Alguma vez isso afetou você ou sua família, mais de uma vez, de forma negativa? — perguntou o psiquiatra sem fazer questão de erguer os olhos.

Virou a cabeça várias vezes, também, procurando uma saída rápida, mas encontrou apenas o olhar inquisitivo de Heitor.

— Algum problema? — questionou ele, levantando o olhar do caderno com um leve franzir de sobrancelhas.

Dave balançou as mãos nervosamente, tentando dissipar a sensação de pânico que o envolvia.

— Não, desculpe. Apenas tive um apagão, não sei… foi esquisito. — Dave tentou sorrir, mas seus lábios tremiam ligeiramente. — Deixe para lá, não foi nada. Poderia repetir a pergunta, por favor? Acho que não ouvi direito.

Heitor assentiu, compreensivo, e refez a pergunta, ajustando algumas palavras aqui e ali para manter o sentido.

 Dave desviou o olhar para baixo, incapaz de encarar diretamente Heitor enquanto admitia suas falhas passadas. 

— Teve várias. Era sempre a mesma coisa, perdia uma e apostava mais ainda para tentar recuperar o valor. — O tenente mordeu os próprios lábios ao ponto de os fazer sangrarem— Cheguei a deixar meu filho passar fome por conta do vício. Eu sentia pena dele, por isso eu precisava apostar… Se eu ganhasse daquela vez eu poderia pagar a sua comida, mas a parte de ganhar nunca chegava e então eu sempre precisava de mais dinheiro para apostar e pagar minhas dívidas. Como você está pensando, um dia a bolsa estourou… pegaram meu filho, minha mulher, minha casa, tudo. Naquela época, eu não tinha como pagar eles, estava desempregado… foi um tempo difícil, mas graças aos deuses hoje eles estão são e salvos, estou livre desse vício há 3 anos.

— Escapar do vício em jogos de azar é como no mito de Sísifo, empurrar sua pedra até o cume apenas para vê-la rolar de volta — O Corbeau enquanto falava, tamborilou os dedos sobre o braço da poltrona. — Há três anos, como passa rápido. Agora que vejo, coincide com o tempo que você entrou para minha guarda pessoal.

— Sim, foi um ano feliz para mim. Graças ao senhor, pude pagar minha dívida e reaver minha família.

— Eu agradeço por ter me servido tão bem durante todo esses anos.

  Heitor propositalmente elogiou o tenente. Sabia que como psiquiatra, a maioria das pessoas se sentiriam mal por receber elogios não merecidos. O tenente realmente havia o servido muito bem durante anos, mas uma falha estava manchando todo o seu currículo.

Como era esperado, Dave agiu de acordo com a maioria das pessoas. Porém, não aceitou os elogios, ficando muito envergonhado no processo.

— Perdão, meu senhor, mas isso não está correto. Eu falhei quando o senhor mais precisava de mim…

— Respire fundo, Tenente. Tem algo que  você consiga se lembrar daquele dia? Algo que talvez você tenha se lembrado agora? — perguntou, enquanto escrevia no papel.

Negou com a cabeça, suspirando no processo.

Fora da mente do tenente, Heitor recitava todas as perguntas que havia feito durante a sessão do tenente, era uma forma de levar a mente de Dave para a memória desejada.

Winston cruzava os dedos para que fosse apenas, assim como os outros, uma suspeita que fosse descartável. Mas ainda queria encontrar o menino que o havia surpreendido tanto com tão pouca idade. Cada vez que não encontrava uma pista sequer era mais um passo para trás em busca do menino. Então seu coração também orava para que encontrasse uma resposta o mais rápido possível.

Se o tenente desse respostas diferentes da que deu na terapia, só havia uma resposta possível…

 No fim, buscavam agora a resposta do seu subconsciente..

— Você consegue se lembrar de algo daquele dia em que saiu com Norman para a biblioteca? Algo que você tenha feito? — A voz do Corbeau era gelada, tinha um sabor desagradável ao mencionar aquele evento.

Primeiro, cinco segundos, depois vinte, e então um minuto se arrastou sem uma resposta do tenente. Heitor repetiu a pergunta, mas o silêncio persistiu.

Winston, ao lado de seu mestre, mantinha os olhos bem abertos, fixos no corpo inerte na poltrona.  Ele observou uma única lágrima escapar pelo rosto do tenente, trilhando seu caminho solitário. Seus lábios se curvaram em um sorriso inverso antes de ele finalmente abrir a boca.

— Naquele dia, eu…

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Olá, eu sou Kaua Paulino!

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