Mergulhou na água da banheira, e num instante, todos os pensamentos se apagaram, deixando a mente como no vácuo do espaço. Fechou os olhos, saboreando a morna invasão da água sobre a pele.
Com a mente exaurida, fugiu para o refúgio habitual, aquele canto onde os pensamentos vão para morrer. Não que os matasse exatamente — apenas os tornava mais feios, mais distantes, o suficiente para que a solidão parecesse um luxo.
Na sombria mansão Viotoiesk, um garoto de cabelos simetricamente penteados estava parado, envolto em um sobretudo preto que quase roçava as botas galochas que lhe chegavam aos joelhos. Pálido como o ambiente ao redor, ele observava o mundo cinza através da chuva incessante. As gotas, ao tocarem o chão, pareciam hesitar, ricocheteando como se brincassem de “o chão é lava” , até que, por fim, se uniam numa poça crescente.
Norman, com seus olhos cansados, com grandes olheiras, observava Arthur através da porta de vidro. Empurrou-a, permitindo que a brisa carregasse pequenas gotas de chuva até o rosto dele.
Com um recuo de um passo para trás, Arthur virou-se e encontrou-se cara a cara com Norman.
— O que acha? — Arthur começou, a ironia pingando de suas palavras como a chuva diante deles. — Meu mundo está caindo aos pedaços. Como se isso fosse novidade, claro. Um dia ensolarado aqui é mais raro que otimismo.
— Temo que isso tenha muito a ver comigo. Mas uma pergunta, se me permite… — disse Norman, com uma formalidade forçada.
— “Se me permite”? — Arthur soltou uma risada seca, abrindo os braços como se estivesse prestes a entregar o prêmio de “melhor piada do ano.” — Você é o mestre deste mundo infeliz, e ainda assim me pergunta se pode falar?
Norman, em uma tentativa de disfarçar a leve diversão que escapou em um meio sorriso, apertou a bengala em mãos e respondeu:
—Eu somente queria um amigo, é tão errado assim querer ter alguém? Na verdade, não precisa responder… — Norman desviou o olhar, sentindo-se estúpido por ter perguntado e recuou..
Após as palavras de Norman, Arthur o fitou com olhos suspeitos, como se estivesse ponderando se aquilo não passava de uma provocação mal disfarçada. Seus olhos estreitaram-se por um breve momento, e a resposta que Norman esperava se transformou em uma reflexão cínica, onde ele parecia pesar cada possibilidade antes de dar qualquer resposta.
Na demora da resposta, o vento continuava a açoitar os rostos deles.
— Quando alguém ousou escalar as paredes que eu ergui, eu ofereci uma solução… — disse, meditante Arthur.
— Você tinha falado em escapar. Isso é ingratidão!
— Liberdade — corrigiu Arthur, pondo uma das mão no bolso. — Ah, sim. Liberdade… e fui rotulado como louco e sanguinário. Mas, adivinhe, o que eu previ aconteceu.
— Ótimo. Pessimismo de primeira classe.
— Realismo — Arthur rebateu, um sorriso torto se formando nos lábios enquanto seus olhos se fixaram no jardim branco. — Sou um analista da realidade, meu caro. Apenas interpreto os dados fornecidos.
Arthur desceu o pequeno lance de degraus e caminhou até uma poça. A água estagnada ondulava suavemente sob seus passos. Ele agachou-se, arrancando uma flor branca, que instantaneamente se tingiu de vermelho, o caule se cobrindo de espinhos afiados. Um perfume doce e enjoativo escapou da flor, desafiando a chuva a dispersá-lo.
Norman, observava seu irmão gêmeo com curiosidade, desceu os degraus.
— Você me esqueceu e já não somos como antes. Tenta mostrar gratidão pelos outros, mas nem sequer tem coragem de lhes contar quem realmente é. No fundo, você é ingrato e esqueceu quem te protegeu de todo aquele mal que tivemos que fazer para sobreviver. — As palavras de Arthur eram como um soco, uma dose amarga de uma verdade que Norman tentava ignorar. — Fui eu quem te cobriu com minhas asas. Mas agora, somos estranhos dividindo o mesmo corpo. Por que você parou de brincar comigo? Eu sou somente útil quando você precisa fazer coisas feias? Eu fiz tudo pela sobrevivência… Quem se importa se algumas vadias tiveram que morrer para isso?
— Eu me importo.
Arthur riu, zombando de Norman e apontando o dedo para ele. — Ora, se importa mesmo? Quantas vezes você sonhou em mutilar elas de novo? Quantas vezes você sonhou arrependido por ter dado uma morte rápida com aquela explosão, “mereciam sofrer mais, mereciam sofrer mais”?
— Eu não posso controlar sonhos, são involuntários — argumentou Norman.
— Não me venha com essa, nós lemos os mesmos livros, sabemos que sonhos são a manifestação do nosso desejo consciente no nosso inconsciente.
Arthur balançou a cabeça, trazendo à mente de Norman todas as vezes que as outras crianças fugiam dele, não somente elas, mas até os pais delas. Era mais fácil se esconder atrás de algumas páginas de livro.
— Amizade? Prefiro servos que não são suscetíveis a negar a minha vontade. Amigos não existem, há somente dor em relações interpessoais. Quanto aquele… Hassan, reconheço que teve o seu valor… Porém, gostaria de dizer “Eu te avisei”. De verdade, essas palavras são saborosas. Diga: “eu te avisei”. São magníficas. “Eu te avisei” — riu mais uma vez — para não se apegar a algo tão frágil…
As risadas deles sempre acabavam secamente, nenhum sorriso ou gargalhada parecia verdadeiro. Arthur ergueu a flor, apertando-a entre os dedos. — Veja como é frágil. Basta um aperto — os olhos fixos nos de Norman — para que toda essa beleza se torne… nada!
Norman sentiu o sarcasmo de Arthur perfurar como agulhas, mas não se deu ao trabalho de rebater. O silêncio era a única resposta que parecia adequada.
— Olho para você e vejo apenas um reflexo de mim. Não percebe que tudo o que tocamos morre? — A voz de Arthur era baixa e melancólica, o que fez Norman conjecturar se sua voz sempre soava assim para os outros.
Arthur jogou a flor amassada na poça, surgindo o rosto de Hassan. — Podemos ser vilões em uma história — disse Arthur, o rosto de Hassan desaparecendo e surgindo o de Violet — Mas sempre seremos herois em outras. Pare de se martirizar, não é luto, é culpa.
— Bem, não sei quando nos veremos de novo, nossos encontros são tão raros… Então deixe-me perguntar algo: Lutamos porque temos ideias diferentes? Você está lutando comigo para proteger algo? A humanidade, talvez, a mamãe? Se for pela primeira opção, deixe-me usar de todos os artifícios da retórica que conheço, permita-me defender meu ponto.
— Concedida — declarou Norman.
— Nossas ideias de fato são diferentes… Mas vou pontuar algo sobre sua filosofia moralista, ela não é moral. É apenas uma forma bonita de colocar uma questão já conhecida pelas pessoas comuns. Tomemos, por exemplo, a clássica questão do dilema do bonde: salvar cinco pessoas desviando o bonde e matando uma, ou não fazer nada e permitir que o bonde mate as cinco. Esse dilema não é novo; a essência da escolha entre sacrificar um para salvar muitos está enraizada na natureza humana e em nossas interações diárias. A filosofia moralista, como eu gosto de dizer, são apenas palavras bonitas feitas para os senhores galantearem as senhoras nos bailes. Agora, se você luta contra mim para proteger a humanidade, então não somos inimigos, e sim aliados. Tudo que penso é para beneficiar a humanidade. Por exemplo: Eu disse ter construído um muro, mas esse muro só existe aqui — apontou para própria cabeça — Mas na sociedade humana, lá fora, de fato existe um muro, e de um lado existem pessoas morrendo de fome, mulheres se prostituindo por um maço de cigarro, e do outro lado do muro, uma escória vagabunda tem tudo o que precisa.
— O que você quer dizer com tudo isso? — disse Norman.
— O que eu desejo, você quer dizer, certo? O mesmo que você, paz. A minha paz traz primeiro o caos, eu admito… Mas depois apenas calma. A paz que você deseja matará quem amamos, essa é a minha opinião…Os métodos? Não importam, somente o resultado diz algo…
Antes que Norman pudesse processar completamente as palavras, um som metálico quebrou o silêncio. A porta rangeu.
Lentamente, disperso e atordoado, ele abriu os olhos.
Uma garota entrou, os olhos verdes e opacos seu jeito delicado de caminhar era quase arrogante. Seus pés descalços faziam pouco caso do frio chão de pedra, e o cabelo preto caía em duas mechas, cobrindo o que parecia ser o início de um corpo feminino, ainda em formação. Norman a observou, lento, sem pressa ou pudor, notando o leve rubor que começava a colorir suas bochechas e dedos, diferente da palidez que ela tinha quando havia a deixado. Ela parou, as mãos atrás do corpo, olhando para Norman.
— O que você está fazendo? — perguntou Norman, a voz baixa e rouca.
— Esta senhorita pensou em fazer seu mestre feliz… — disse ela, insinuosa. — Essa dama ouviu que os homens gostam de ver o corpo feminino nu.
Norman piscou, surpreso. Poucas coisas no mundo conseguiam desarmá-lo, mas ela fez isso parecer tão simples que o assustou. — Dispenso por hoje, tudo bem, Violet? — falou Norman, desviando o olhar para a água, como se aquilo fosse mais interessante do que ela.
Violet curvou-se, os movimentos deliberadamente lentos, e ajoelhou-se ao lado da banheira. Com delicadeza, puxou uma das mãos de Norman da água e começou a esfregá-la suavemente com uma bucha. Ele sentiu a tentação de retirar a mão, mas a deixou ali.
— Naquele dia… — Norman começou, sem coragem de olhar para ela. — Você queria que eu te salvasse. Fiz certo em te dizer para viver…? — Sua voz tremeu, mas não de frio. — Que arrogância a minha, erguer alguém e dizer “VIVA”, quando nem eu sei o que é isso.
Ela parou de esfregar a bucha nos braços dele, deixou-a de lado e pegou na mão dele, afastou-se e pôs sobre um joelho, abaixando a cabeça e colocando a outra mão no peito.
Norman ergueu a cabeça e a olhou, sem entender o que ela estava fazendo.
— A ideia de morrer sempre foi reconfortante para esta serva, como se ter um anjo da morte à espreita fizesse com que essa humilde ajudadora se dedicasse mais às pequenas coisas que passam rápidas demais para serem notadas. Por isso, esta dama acredita que, mesmo que não consiga cumprir a primeira ordem dada a ela, não morderá a mão de quem limpou seu rosto e lhe deu de comer.
Ela fez uma pausa, erguendo o olhar para encontrar os olhos de Norman.
— Eu, Violet, cujo nome me foi dado por Vossa Senhoria no dia em que me libertou das sombras, faço aqui meu juramento. Contanto que Vossa Senhoria não traia esta humilde serva, ela seguirá seus comandos com lealdade cega. Sendo uma serva comprada, sem linhagem ou glórias passadas, mas determinada a honrar o pacto que agora fazemos, nesta noite, do vigésimo sétimo dia, do quinto mês, do ano de nosso calendário, com todos os céus como testemunhas, juro neste momento: Se Vossa Senhoria exigir que esta serva compartilhe de sua intimidade, então ela será a presença que conforta. Se desejar que ela se torne sua mente, ela será o pensamento que antecede cada uma de suas vontades. Se precisar que seja o alicerce sobre o qual se apoia, ela será a força que nunca vacila. Todos os recursos que esta serva possui, sejam eles de corpo ou espírito, serão devotados à grandeza de Vossa Senhoria. Contanto que Vossa Senhoria der algo para ela…
Quando Norman ouviu o juramento condicional,seu rosto parecia ainda mais triste e melancólico, as olheiras em seus olhos azuis pareciam ainda mais destacáveis. Pensativo, ele retirou a mão e passou os dedos pelos cabelos dela, empurrando-os para trás da orelha, expondo aquele rosto sem expressão alguma, uma face que poderia facilmente ser comparada com a de um bicho morto.
Um sorriso, daqueles que se estendem apenas para um lado da boca, esculpiu-se na face de Norman. Um sorriso forçado e sem alegria alguma.
— O que você deseja? — perguntou Norman.
— A cabeça dos que destruíram a minha vila, que queimaram tudo o que eu conhecia…
O garoto acenou com a cabeça.
— Antes de eu lhe dar minha resposta. Quero entender algo primeiro. Antes de eu partir, minha generosidade lhe dava nojo… Volto e me jura servidão. O que houve? O que mudou?
Ela o encarou com aqueles olhos indiferentes e carentes de vida.
— Meu senhor, as respostas para seus questionamentos estão ao alcance desta serva. Durante a ausência de Vossa Senhoria, fui encarregada de cuidar de sua mãe. Ela falou muito sobre Vossa Senhoria, especialmente antes que a bebida e os remédios se tornassem companhia constante. — Ela fez uma pausa, avaliando a reação de Norman antes de continuar. — Vossa Senhoria já sobreviveu a um sequestro, e agora a mais outro…
Ela olhou ao redor, como se buscasse algo, e então voltou seu olhar penetrante para Norman.
— Os que te sequestraram, senhor, onde estão agora? Acredito que aquilo que não nos mata… Apenas não deveria ter nos dado uma segunda chance. Vossa Senhoria fez com que eles desejassem nunca ter dado essa chance. Apenas um tolo negligencia o perigo de uma presa encurralada, e somente um tolo e meio ignoraria que um filhote de leão, ainda é um leão.
Ela se aproximou um pouco mais, movendo-se com uma suavidade quase felina. Estendendo a mão,os dedos limparam as mechas molhadas que caiam sobre a testa dele e deslizaram lentamente, indo parar na nuca dele. O toque era firme, mas não agressivo, como se testasse os dons que foram dados em essência para as mulheres, sedução.
— Sou o quebra-cabeça que Vossa Senhoria se propôs a montar — sussurrou ela, a voz baixa e carregada de uma ironia sutil.
Norman sentiu um arrepio percorrer sua espinha com o toque e as palavras dela. Ele fechou os olhos por um breve instante.
Norman levantou-se com um movimento deliberado, apoiando-se na parede fria atrás dele. Com um suspiro, envolveu-se em uma toalha, deixando que a água pingasse lentamente de seu corpo. Ele se abaixou para pegar o equipamento que deveria envolver sua perna, os dedos enrugados e trêmulos.
— Tem razão, eu disse, “montar”, e não destruir mais.
Enquanto isso, Violet permanecia ajoelhada, completamente imóvel, como se cada fibra de seu ser estivesse presa
Antes de sair e bater a porta, Norman se virou, a mão já na maçaneta.
— Há algo mais, algo que você está errada sobre mim… — Ele hesitou por um momento — Nunca matei ninguém e não desejo fazer isso. Tudo o que quero é viver em paz com minha mãe… e você pode vir conosco, se quiser.
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Norman estava sentado, analisando os circuitos complexos da bengala que Hassan lhe dera. Seus olhos se estreitaram em concentração, enquanto ele tentava decifrar os confusos padrões. Puxou alguns livros que sua mãe não havia levado, folheando as páginas rapidamente, mas nada parecia realmente útil. Com um suspiro frustrado, empurrou a cadeira para longe da mesa, retirou o monóculo e massageou as têmporas doloridas.
Com as mãos cobrindo o rosto, Norman tentava visualizar o circuito ativo dentro de sua mente, imaginando as engrenagens em uma visualização tridimensional. Até o momento, não conseguira ativar as engrenagens, mas, pelo padrão dos circuitos, ele poderia tentar deduzir como funcionavam.
O aroma suave de óleo de lavanda interrompeu seus pensamentos. Violet entrou no quarto, usando apenas uma camisa de manga longa que deixava suas pernas brancas à mostra. Seus movimentos eram graciosos enquanto se dirigia à cama, sentando-se e esticando uma perna antes de pegar um pequeno livro debaixo do travesseiro e começar a ler.
Notando que Norman a observava, Violet inclinou a cabeça para o lado, como um cachorrinho confuso.
— Meu senhor, deseja algo?
Norman, pensativo e disposto a testar algo, perguntou:
— Você já comeu lasanha?
— Esta serva nunca o fez, meu senhor.
— Entendo. — Norman pegou a bengala que estava sobre a mesa e a usou para se levantar. Caminhou até a porta, retirou a corrente e a abriu apenas o suficiente para falar com um dos guardas que estavam de plantão. Cochichou algo e voltou ao seu assento, anotando o que havia descoberto sobre as engrenagens, embora ainda fosse pouco. No dia seguinte, planejava começar uma série de testes para descobrir a disposição e as funções de cada engrenagem.
Passado um tempo, ouviu-se um “Toc, Toc” na porta. Norman pegou uma travessa, sentou-se no tapete no meio do quarto e colocou a forma com a lasanha na mesa de centro. Serviu dois pratos, um de frente para o outro.
— Lasanha é um prato feito de camadas de massa, molho de carne ou vegetais, molho bechamel e bastante queijo derretido — disse Norman, cortando um pedaço perfeitamente quadrado e colocando no prato de Violet. — Coma um pouco e me diga o que acha — ele sorriu gentilmente.
Ela desceu da cama com a leveza de uma pombinha pousando. Seus olhos, ainda mais foscos no quarto pouco iluminado, observavam a lasanha com curiosidade. Violet pegou o garfo e a faca com delicadeza.
Norman a observou cortar a lasanha sem desmanchar as camadas e usar os talheres conforme a etiqueta exigia.
“Parece que minha mãe realmente andou ensinando ela na minha ausência”, pensou Norman, contente.
Ao levar o pedaço à boca, as pupilas de Violet dilataram e suas mãos tremeram levemente, quase imperceptivelmente.
— Não está bom? — perguntou Norman, preocupado.
— Não… Está dama nunca provou algo parecido… Sim, é realmente muito, muito bom — respondeu ela, levantando o rosto com uma lasca de brilho ínfima de vida nos olhos.
Norman, com um sorriso caloroso, arrumou uma mecha de cabelo que caía à frente do rosto dela, colocando-a delicadamente atrás da orelha.
— Que bom! — disse ele, sentindo-se contente por compartilhar aquele momento com ela.