Violet com um rosto ainda sonolento, afastou o lençol com um gesto de mão, suas pernas brancas e esguias esticaram-se e seus dedos de pontas rosadas, tocaram o chão frio. Ela se levantou e a camiseta com alguns botões superiores desabotoados caiu de sobre seu ombro, seu corpo fino desfilou enquanto cruzava o quarto. Ao chegar ao outro cômodo, viu Norman, seu rosto parecia exausto, enquanto agitava uma bolsa em busca de algo perdido.
— Meu senhor acordou cedo — comentou Violet, inclinando a cabeça ligeiramente ao batente da porta, observando-o com olhos monótonos.
Norman soltou um suspiro, ainda focado na bolsa. — Na verdade, dormir foi um conceito meramente teórico para mim esta noite. Não consegui dormir.
Violet deu um passo à frente, seus olhos fixos nos movimentos ansiosos de Norman. — O que, meu senhor, está procurando, exatamente?
Norman fez uma pausa, passando a mão pelo cabelo desalinhado que tapava sua visão. — Estou tentando encontrar uma anotação, ou qualquer coisa que eu tenha esquecido. É frustrante pensar em refazer tudo do zero.
De repente, ele parou, os olhos brilhando com um pouco de excitação e exaustão. — Violet, eu… eu me deparei com algo estranho. Encontrei um tipo de alfabeto, mas ele é feito só de consoantes. Não tem vogais. Já imaginou isso? — Ele riu um pouco, sacudindo a cabeça, como se tentasse organizar os pensamentos. — Quer dizer, ainda não sei para que serve. Pode ser só uma coincidência, ou pode ser algo importante… mas por enquanto, é só mais um quebra-cabeça para me manter acordado.
Norman se levantou de repente, quase tropeçando em si mesmo, enquanto corria apoiando-se nas coisas ao redor, indo ao quarto. Ao passar por Violet, ele se apoiou na parede, os olhos ainda fixos em alguma ideia que fervilhava em sua mente. Ela o seguiu, movendo-se com calma enquanto ele falava sem parar.
— Desmontei tudo para ver como as engrenagens funcionavam, já que nenhum comando de voz ou toque fazia qualquer coisa. E ao abrir… — Ele fez uma pausa, pegando uma das engrenagens e entregando-a a Violet. — Veja só. Tem letras gravadas, mas não há uma única vogal. É como… sei lá, eu não conheço essas estruturas. Ainda não sei o que significa, mas, se estiver certo, pode ser uma forma para que o usuário designe uma função para o objeto, desde que ele organize as engrenagens. E isso é muito interessante.
Norman parou por um momento, respirando fundo, tentando organizar os pensamentos que fluíam rápido demais. — Claro, pode ser que eu esteja apenas vendo coisas, mas essa ideia de um alfabeto sem vogais, criar coisas… é fascinante, não acha?
— É tão interessante para essa senhorita quanto catar feijão.
Norman observou atentamente a boca dela, como se esperasse que o sarcasmo escorresse pelas laterais como um fluido.
— Aprecio sua sinceridade — disse Norman, conseguindo soltar uma risada leve, quase como um suspiro de alívio.
Violet respondeu curvando-se, colocando uma mão no peito e a outra estendida para trás, enquanto o pé esquerdo se posicionava atrás do direito. Uma reverência perfeitamente executada.
Ao erguer a cabeça, os olhos apagados de Violet pousaram sobre Norman, aquele garoto de cabelos pretos e corpo tão frágil que parecia prestes a se desmanchar ao menor sopro de vento, como uma precária pirâmide de cartas.
— O que foi? — perguntou Norman, irritado com o olhar fixo dela.
— Precisamos descer, ou vamos perder o café da manhã — respondeu Violet, já se aproximando desfilando. Sem qualquer pedido, começou a desabotoar os botões da roupa de Norman.
— O que você está fazendo? — Norman a olhou, surpreso, os olhos semicerrados, como se ela tivesse enlouquecido.
— Essa senhorita não pode permitir que seu senhor desça ao salão desta forma.
— O que há de errado com as minhas roupas? — Norman retrucou, olhando para si mesmo. — Melhor, deixa que eu mesmo faço isso — disse, sem esperar resposta. Ele se afastou para ir ao banheiro, movendo-se como um bêbado, apoiando-se nas paredes para não tropeçar em suas pernas.
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Violet acompanhou Norman até o salão. Os seguranças, grandes o suficiente para serem confundidos com móveis, levantaram-se como autômatos, prontos para seguir o garoto esguio e a jovem de maneiras elegantes e voz baixa.
Desceram as escadas, com Norman resmungando baixinho sobre a necessidade de escolta. Ele olhou por cima do ombro, o rosto franzido de desconforto, e com um gesto rápido pediu que ficassem a uma distância mais “suportável.” Os brutamontes acataram, mas, claro, sem pressa – porque intimidar à distância era uma arte que requer paciência.
Ao entrarem no salão, a cena era… provinciana. Paredes brancas, quase como se alguém tivesse desistido da decoração no meio do caminho, grandes janelas tentando compensar a falta de personalidade do espaço. As mesas redondas, cobertas por panos brancos, ofereciam a todos os presentes uma visão nada entusiasmante. Homens e mulheres vestiam trajes formais. E havia crianças. Muitas. As crianças, claro, estavam ocupadas com suas escavações nasais, como se estivessem em busca de um tesouro perdido.
As conversas ao redor do salão eram um espetáculo à parte, ou melhor, uma lamentável comédia. Um deles abaixando o jornal e balançando a cabeça como um profeta do apocalipse, exclamou:
— Esse mundo realmente já não é o mesmo. Onde vamos parar com tanta violência? Rebeldes malditos! Por que não aceitam que aquele vagabundo cometeu todos aqueles crimes?
Uma moça, ao lado, limando as unhas, respondeu sem nem levantar os olhos:
— E quando não foi assim?
A indignação do homem subiu um nível.
— Só espero que esse tipo de gente não chegue por aqui… Eu tenho parentes em cidades grandes, e isso está tomando proporções perigosas. Minha irmã disse que suas filhas nem conseguem dormir por causa do medo desses anti-imperialistas, ou facção Iesk, como estão chamando agora.
— Vocês não sabem de nada — interrompeu outro, colocando a cartola sobre a mesa, enquanto tirava os pelinhos do terno. — Ouvi dizer que em cada metro dos vários quilômetros de estrada até a capital, há um iesk crucificado.
Como se estivesse oferecendo um toque de humor negro, um senhor gordo, cujo cinto parecia estar à beira de um colapso, riu alto:
— Poise, chamam qualquer um que não seja do Império de bárbaro, mas olhem só… somos nós que temos um jeito peculiar de matar!
Norman e Violet passaram por esses indivíduos sem ao menos disfarçar o tédio. Violet nem piscou.
As expressões no rosto dela frequentemente variavam entre o desprezo e nojo.
Mas algo começou a incomodar Norman: a presença constante dos brutamontes. Ele virou-se para eles, franzindo o cenho como se estivesse pedindo algo tão simples quanto ‘três metros de distância, por favor.’
De repente, ele avistou o piano. Seus olhos brilharam, como os de alguém que, ao menos por alguns minutos, poderia escapar daquele círculo social.
Ele moveu-se, apressado e manco até o banco, ajustando-o para sua altura. Violet, suspirou, e então voltou-se para mesa e começou a cortar pedaços de bolo e biscoitinhos.
Os dedos de Norman, finos, começaram a deslizar pelas teclas, uma introdução tímida, que de imediato chamou a atenção das crianças. As pequenas bestas já se preparavam para zombar do garoto que “queria chamar atenção”. Seus sorrisos maliciosos já denunciavam o que viria a seguir.
Mas Norman não parecia se importar, tocando a melodia que seu pai havia composto para sua mãe no dia do casamento. Algo bom — aquelas doces memórias que, claro, só serviriam para lembrar o quão longe de qualquer coisa significativa ele estava agora.
Serviam apenas para o fazer lembrar das palavras de Arthur.
Enquanto isso, os cubos flutuantes de cor amarelada, que amplificavam o som do piano de forma artificialmente perfeita, garantiam que até o último ouvinte no salão pudesse ouvir cada nota. Cada melodia chegava com precisão quase irritante, como se estivesse sussurrando no ouvido das pessoas, sugerindo: “Ei, prestem atenção, porque isso aqui é melhor do que qualquer coisa que vocês já ouviram.”
O pequeno gênio, mal percebia os olhares zombeteiros e as conversas mesquinhas ao seu redor. Nem percebeu também a entrada do homem de grande estatura.
Utilizando uma casaca de pele que envolvia seus ombros com a cabeça de um lobo, os olhos fixos e vazios . Ele caminhava com uma bengala, mas seu corpo gigantesco sugeria que o acessório era mais estilo do que necessidade. Ao seu lado, uma mulher de cabelos pretos, segurando uma pilha de papéis, seguia com passos, mas sem desviar a atenção da figura ao seu lado. O brasão gravado na luva branca do homem era reconhecido o suficiente para que alguns imediatamente baixassem os olhos, escondendo-se por trás de seus cardápios. Outros simplesmente congelaram no lugar, como presas diante de um predador.
No outro lado do salão, a garçonete, que antes limpava o balcão com dedicação, foi empurrada pela gerente, claramente apavorada, para atender o homem. Cabelos claros, pele pálida, e um tremor mal disfarçado nas mãos da gerente.
Enquanto ela voltava com a bandeja cuidadosamente equilibrada, uma das pequenas criaturas travessas, disfarçadas de crianças, estendeu o pé e semicerrou os olhos. O resto aconteceu muito rápido: o tropeço inevitável, a bandeja escorregando de suas mãos, os pratos e xícaras se estilhaçando na mesa do homem, café escorrendo e porcelanas quebradas em um caos barulhento.
O salão ficou em silêncio, aquele silêncio desconfortável que só surge quando todos estão loucos para rir, mas morrem de medo de serem os primeiros. A garçonete, desorientada e com as mãos cortadas pelos cacos de porcelana, caiu de joelhos, já pedindo perdão antes mesmo de o primeiro caco parar de rolar.
— Meu senhor, eu peço perdão, eu sou uma mulher tola e desastrada. Por favor, perdoe-me — balbuciou, sua testa tocando o chão enquanto o sangue pingava delicadamente no tapete.
O homem, por sua vez, não moveu um músculo, exceto um pequeno sorriso que se formou enquanto ele raspava o dedo na cobertura da sobremesa que estava sobre a mesa. Pegando um pedaço de bolo que caíra, ele o colocou na boca lentamente, saboreando.
— Está muito bom — murmurou, com a tranquilidade de alguém que acabara de receber um café perfeitamente servido. Sem pressa o sorriso foi se ampliando-se enquanto ele se agachava ao lado da garçonete, calmamente ajeitando o vestido dela ,como se estivesse arrumando uma boneca em vez de uma mulher machucada. Puxou um lenço de dentro do terno, limpando o sangue das mãos dela com delicadeza.
Depois de terminar sua pequena obra de caridade, ele ergueu-se, girando sobre os calcanhares e caminhando até o garoto travesso, agora encolhido nos braços da mãe. A mulher o segurava com força.
O homem abaixou-se até ficar ao nível do garoto, o sorriso ainda presente.
— Eu achei muito divertido o que você fez — disse ele, com a voz suave e quase carinhosa, o que só fez a criança arregalar ainda mais os olhos.
— Sério? — A incredulidade na voz do menino era engraçado para o homem.
— Ah, sim, sem dúvida — respondeu ele, assentindo lentamente. — Veja só isso aqui — continuou, erguendo a manga do terno para mostrar uma cicatriz que serpenteava pelo antebraço. — Consegui da mesma forma que você fez com aquela moça ali. Só que, digamos, foi muito mais… dramático. — Ele soltou uma risadinha e se levantou de repente, como se o tédio o tivesse atingido. Abriu os braços, olhando em volta para o salão que agora o encarava tementes do poder que ele tinha.
— Onde está a música? Me deem espaço, estou feliz e quero dançar! — exclamou ele, os olhos apertados.
— Vossa senhoria, por favor… — A mãe do garoto, desesperada, implorou, puxando a roupa dele. — Puna a mim, não a ele! Eu peço, por favor, ele é só uma criança!
Ele a olhou de cima a baixo, avaliando-a. Falando:
— Vejamos o que eu posso fazer.
Então, com uma expressão pensativa, virou-se para o público, com tom cômico.
— Não acho justo que os pais paguem pelos erros dos filhos… Mas, e se… — Ele pausou, deixando a ansiedade da mulher aos pés dele subir. — O que vocês acham, hein? Quem merece ser punido: essa encantadora dama ou o pequeno diabinho aqui? Levantem uma mão para o garoto, duas para a mãe. Vamos, participem!
O salão hesitou por um momento, mas logo as mãos começaram a se levantar, algumas relutantes, outras com mais entusiasmo do que o necessário. Um homem gordo e careca murmurou:
— Ele é só uma criança…
Enquanto uma mulher, abanicando-se como se o calor tivesse de repente aumentado, sussurrou para a amiga ao lado:
— Culpa da mãe, não educou direito. Levantem as duas, é justo.
— Se fosse meu filho, eu nem teria me proposto a defender. Gente sem pulso, francamente — resmungou alguém ao fundo, com superioridade.
O homem observou tudo com evidente satisfação, como se fosse o anfitrião de uma grande piada da qual todos ali faziam parte, menos ele.
Sem perder tempo, o homem começou a caminhar em direção a Norman, seus passos firmes reverberaram pelo salão. Instantaneamente, os homens de Norman avançaram, prontos para bloquear o caminho. No entanto, antes que se aproximassem, Violet, sem pressa, chegou ao lado do garoto. Com um gesto suave, ela ajeitou o colarinho dele, algo mínimo, apenas distraída com um detalhe insignificante. Seus olhos, no entanto, vagaram brevemente pelas janelas. Algo para fazer os guardas seguirem o seu olhar.
Os brutamontes pararam, seguindo o olhar de Violet, e notaram as armas pesadas dos soldados lá fora. Entenderam a mensagem e se mantiveram prontos. Sem qualquer alarde, Violet deu um passo discreto para trás, como quem não vê razão para interromper o que já estava em andamento.
Quando se aproximou do piano, sem pressa, ele tocou algumas teclas, criando uma melodia breve, e inclinou-se para o garoto. Quando o homem tocou algumas teclas, um pequeno sussurro atravessou as mesas. As xícaras de café pararam a meio caminho da boca de alguns.
— Conhece essa?
Norman acenou com a cabeça timidamente.
— Ok, me mostre.
A musica no começo era suave, mas o homem não parava de suspirar.
— Consegue fazer melhor ou isso é tudo? Toque mais rápido…
Norman, ajustando seu ritmo, tocou mais rápido.
— Mais rápido! — ordenou.
Norman, manteve o foco, seus dedos voando sobre o piano.
— Mais! — exigiu, aproximando-se.
No entanto, algo inesperado aconteceu. O homem começou a se balançar ao som da melodia, os dedos batendo levemente no ar, se permitindo gostar do que ouvia. O sorriso que brotou em seu rosto foi de quem estava se divertindo mais do que esperava.
— Arh! — gemeu.— Sim, isso é música…
De repente, ele tocou algumas teclas ao lado de Norman, fazendo o garoto parar por um segundo. O homem riu baixinho, como se tivesse acabado de encontrar um brinquedo novo.
— Me dê espaço — o comando veio com um tom casual
O menino deslizou um pouco no banco, e antes que pudesse reagir, o homem sentou-se ao lado dele, e ambas tocavam e estavam se divertindo com o duelo. Mas então, o homem interrompeu o ritmo ficando mais lento e então abriu a boca, proferindo uma proposta.
— Você até que toca bem, para um plebeu…— riu-se— É um desperdício de talento ficar nessa cidade pequena. Gostaria de viajar comigo?
Norman, também teclando mais lentamente, lançou um olhar de canto, e deu uma leve risada.
— Meu senhor, também não toca mal — falou devolvendo o sarcasmo. —Mas tenho que recusar, com todo respeito.
Houve um breve murmúrio entre os presentes, surpresos com a audácia do garoto. O homem, no entanto, não pareceu ofendido.
O negro de casaca continuou tocando por alguns segundos antes de se inclinar ligeiramente, como em uma reverência, mas sem interromper o sorriso satisfeito.
— Eu entendo. — A voz do homem era firme, mas carregava uma estranha serenidade. — Mantenha esse ritmo…
Levantou-se indo em direção a mãe do garoto e a pegando pela cintura.