Selecione o tipo de erro abaixo

Flocos de neve caiam sem parar na colina. Arfando, Tobi puxava um veado que havia acabado de abater por uma corda atrelada ao pescoço do animal. O veado não era tão grande, mas continuava pesado para uma criança de nove anos.

Suas roupas de pele eram grossas, e seu cabelo escuro estava quase na altura dos ombros. Por onde passou havia deixado um rastro de neve. Vez ou outras suas botas de pele escorregavam na neve, mas aquilo não o impediu de chegar até em casa.

Parou na soleira e tirou a corda do ombro. Foi até o veado e o puxou pelos chifres, subindo com ele na soleira. Apoiou as mãos nos joelhos e abriu a porta de casa, encontrando as outras crianças muito bem agasalhadas.

Bill e o pequeno Gerrard foram até Tobi, o ajudando a colocar o veado dentro da residência e o arrastando até a cozinha.

— Não devia ter trago isso, vamos partir em breve. — Disse Meg sentada de pernas cruzadas em um canto. Afiava uma faca com rispidez enquanto encarava o irmão adotivo — Não teremos tempo de comer ele todo.

— Não é para comermos aqui, é para levarmos.

A residência parecia vazia. Havia várias mochilas feitas de couro de vaca bem cheias próximas à porta. Cada uma das crianças havia juntado o que lhe convinha ou achava que era importante levar consigo.

A maioria delas aguardava Lina retornar, e ela retornou, tão bem agasalhada quanto as crianças. Fechou a porta atrás dela e jogou o capuz para trás esfregando as mãos.

— Consegui quatro cavalos. — disse Lina tirando as luvas — Já estão todos prontos?

— Peguei um veado para a viagem. — disse Tobi erguendo o braço.

— Ótimo! Vou pedir para Eilika fatiá-lo antes de irmos. Antes da viagem preciso que todos vocês se alimentem. Atravessaremos ermos infestados de monstros, bandidos e sabe-se lá mais o que. — Ela olhou para a Elfa Negra, Nailah e Melyssa — Conseguem preparar sopa para todos?

Ambas assentiram.

— Perfeito, fiquem aqui, volto logo!

Ela desceu o capuz até os olhos e abriu a porta novamente, sentindo a brisa gélida no rosto. Após saber que Colin estava vivo e bem, Lina planejava ir encontrá-lo, mas não agora. Uma visita repentina duas noites atrás a deixou assustada.

Enquanto todos dormiam, ela sentiu uma presença do lado de fora da casa. Saiu com as roupas do corpo direto para uma tempestade que acontecia do lado de fora.

Assim que abriu a porta, viu um homem trajado de preto da cabeça aos pés a encarando. Celeste estava a posta com o arco enorme apontado para aquele homem.

Espremendo os olhos, Lina pôde ver quem ele era e ficou um pouco atônita com a revelação.

— Lumur?

A nevasca lentamente diminuiu, até o vento agressivo desaparecer por completo. Ela não entendeu como ele estava vivo e tão pouco como ele conseguiu encontrá-la.

— Irmã, que bom te ver. — O cabelo negro dele estava na altura de seus ombros, mas sua expressão arrogante continuava a mesma — Está cuidando de crianças agora? Nunca pensei que tinha vocação para ser mãe.

Lina apoiou a mão na cintura para puxar sua espada, mas ela não estava ali. Após engolir o seco, Lina desceu os degraus da soleira, e seus pés descalços encontraram a neve.

— Como você… — ela engoliu o seco novamente. Uma parte de si ainda temia o irmão mais velho — Como escapou de Ultan?

Ele colocou as mãos para trás e abriu um sorriso de canto.

— Eu já sabia do ataque, e sabia que se continuasse lá, os caídos me matariam. Soube que Loaus e Liena não sobreviveram ao ataque, sabia disso?

Lina franziu os lábios. Ela suspeitava, mas não queria acreditar. Uma parte dela pensava que estavam com Colin.

— Por que está aqui?

Lumur estendeu a mão para a irmã.

— Vim chamar você para se juntar a mim. Consegui um cargo alto no império do sul. O imperador não é tão esperto, logo aquela nação será minha, uma nação maior que a do papai se tratando de território. — Ele deu três passos a frente — O império do Sul faz fronteira com o Centro-Leste, e olha que ironia, fazemos fronteira justamente com o território do Colin. O chamam de carniceiro agora. Soube que se casou com uma mulher ardilosa e entraram em guerra contra o pontífice. Enquanto eles se digladiam, eu espero pacientemente até que os dois lados estejam enfraquecidos o bastante para destruir os dois com um único golpe. Vim chamá-la para fazer parte disso.

Aquele era mais um motivo para ela não se juntar a ele. As crianças já estavam animadas com a possibilidade de ver seu pai adotivo, e os ideais de Lumur sempre foram megalomaníacos e um tanto distorcidos. 

— Me responda uma coisa — disse ela — Você ajudou os caídos na invasão, não ajudou?

Ele assentiu.

— Sim, mas as coisas não saíram como planejado, para ser sincero, foi melhor que a encomenda. Nada esteve tão favorável para mim em toda minha vida.

Lina cerrou o punho e ficou em posição de combate. Seus olhos furiosos encaravam o irmão.

— Nossos irmãos, papai… Você ajudou a matá-los e mesmo assim, vem aqui como se nada tivesse acontecido?!

Lumur deu de ombros.

— Quer que eu chore? O mundo sempre foi regido pelos fortes, os fracos apenas são engolidos desde o começo da história. Os gêmeos, papai, eles eram fracos, mas eu e você somos diferentes. Estamos vivos, certo?

Mana densa começou a exalar de Lina.

— Como pode falar assim da própria família?

— Não choro pelos mortos, eles já se foram, não são mais importantes. O presente, sim, é importante, assim como o futuro, um futuro que eu já vislumbro.

Lina dobrou os joelhos e se preparou para avançar.

— Eu nunca me juntaria a você, nunca!

Lumur abriu um sorriso de canto.

— Era isso que eu queria ouvir. — Ele apontou o dedo para Lina — Colin, você, esses pirralhos, vou destruir tudo que ficar no meu caminho. Vejo você no campo de batalha, bastarda.

Clack!

Lina abriu os olhos, ofegante. Olhou para os lados e viu as crianças dormindo calmamente. A nevasca ainda caía agressiva do lado de fora. Ela afastou uma mecha de cabelo para trás da orelha e apoiou a mão no rosto.

“Magia Onírica?” Ela jogou a coberta de lado. Para se assegurar, andou até a porta, não vendo mais ninguém. A fechou e deu um longo suspiro. “Porque Lumur me disse todas aquelas coisas? Merda, preciso ir ao centro-Leste o mais rápido possível!”

Após este ocorrido, Lina organizou tudo para a viagem, mandando Celeste e Eilika darem uma olhada nas redondezas, traçando rotas mais seguras possíveis. Viajar com crianças seria complicado, ainda mais uma viagem longa como a que fariam.

Ao menos ela estava decidida a fazer isso. Ela e Lumur sempre foram rivais, e desde pequena, Lina sempre soube que cedo ou tarde eles acabariam enfrentando um ao outro até a morte.


A porta da choupana se abriu, e Ibras entrou carregando uma sacola de frutas. Fechou a porta com o pé e, com o indicador, esfregou um orbe ao lado da porta, o ascendendo.

Era um lugar vazio e empoeirado.

O experimento 33 estava enrolada em uma coberta no canto. As maçãs em seu rosto haviam sumido, e ela havia ganho um pouco de peso.

Ibras enfiou a mão dentro da sacola e jogou uma maçã para ela, que começou a devorá-la sem pensar duas vezes.

— Devia comer mais devagar para não engasgar. — Ele se sentou no chão, encostando-se na porta. Retirou um caderno de bolso do interior do paletó e também uma caneta. Apoiou o caderno na coxa e começou a escrever sem parar.

Curiosa, o experimento 33 terminou de mastigar e indagou:

— O que tanto escreve aí? — Sua voz era jovial e firme.

— Estou em missão. — Ele abanou o caderno — Isso é minha garantia.

— Garantia de quê?

— De que o homem para quem trabalho não machuque minha família.

Ela assentiu e mordeu mais um pedaço da maçã.

— Garota, devíamos escolher um nome para você.

— Mas eu tenho um nome. — disse de boca cheia.

— Experimento 33 não é um nome. — Ibras bateu a caneta no queixo duas vezes enquanto pensava — Que tal Heilee? É um nome élfico. Não sei o que significa, mas conheci uma Heilee quando eu era mais jovem. — Ele abriu um sorriso de canto — Era uma boa mulher.

Ibras anotou mais algumas coisas e se ergueu.

— Verificarei o perímetro, volto já, Heilee.

— Heilee… — ela murmurou — Senhor Ibras, já estamos perto da sua casa?

— Ainda não. O território do pontífice é bem grande, mas estamos seguros aqui. Volto já.

Ibras saiu, e Heilee segurou o caroço da maçã. Aplicou um pouco de mana e a maçã se reconstituiu lentamente. Ela começou a mastigar novamente.

Fazia semanas que Ibras havia libertado o experimento 33 de seu cativeiro. Foi difícil se esconder por tanto tempo com uma garota enferma, sua sorte foi que Heilee se recuperou rápido.

A choupana que estavam ficava isolada, afastada de tudo e todos no meio de uma floresta. Com a chegada do inverno, as árvores estavam sem folhas, e isso deu um tom macabro ao lugar. Até os transeuntes que iam para a capital do pontífice comercializar, ignoravam tudo ao redor. Florestas eram o lar de assassinos hediondos, ainda mais em tempos como aquele.

Entediada, Heilee se ergueu, ainda com o cobertor enrolado sobre seu corpo. Caminhou até a porta e assim que fora tocar a maçaneta, sentiu um calafrio na espinha.

Boom!

A porta de madeira explodiu a jogando para trás junto a pedaços de madeira. Ela os afastou, enxergando Ibras de pé, de costas para ela, segurando duas adagas. Do lado de fora do enorme buraco era possível ver um homem loiro vestindo uma batina com as mãos para trás.

Ao seu lado estavam dois belos homens. Suas asas, seu rosto atraente, davam a eles um toque angelical.

— Heilee! — Chamou Ibras em um berro — Consegue se levantar?

— S-Sim!

Rian abriu um sorriso de canto e deu dois passos à frente.

— Um usuário do silêncio, por isso demorei tanto para encontrá-lo. — Rian encarou Heilee — Acredito que você está com algo que pertence a nós.

Um dos anjos bateu as asas e avançou contra Ibras. Sua velocidade foi tamanha, que zuniu no ar, levantando poeira com a arrancada.

Crash!

Ibras cerrou os dentes quando sentiu que seu braço esquerdo havia sido destruído ao tentar bloquear aquele ataque. Os olhos de Heilee arregalaram, e antes do anjo retornar, Ibras a pegou pela cintura, a segurando debaixo do braço.

Rian apontou com o queixo e o outro anjo esticou as duas mãos, conjurando um enorme círculo mágico. Mana elétrica celeste foi concentrada ali, e um poderoso raio foi disparado.

Cabrum!

O avassalador poder transformou as árvores em seu caminho em pó, deixando uma cicatriz naquela floresta. O chão estava queimando, parecia lava de tão quente.

— Não devem ter ido longe. Continuem o procurando.

As criaturas bateram as asas e desapareceram.

Ibras havia corrido o mais longe que conseguiu. Seu braço destruído sangrava demasiadamente, e havia usado parte de seu corpo para proteger Heilee da morte, queimando parte do rosto e do tórax. Usou toda mana que conseguiu e correu para longe ficando a favor do vento. Assim que desativou sua árvore, caiu no chão junto a Heilee.

Apavorada, Heilee olhou o estado grave que ele se encontrava. Parte do crânio de sua cabeça estava exposto, assim como suas costelas. Ela não se conteve e começou a chorar desesperadamente, não podia se sentir mais culpada. Ibras foi a primeira pessoa que a tratou com gentileza, e após algumas semanas ela se apegou ao mercenário.

— Senhor Ibras! — Com as mãos trêmulas, ela as apoiou no peito de seu amigo e respirou fundo para tentar se concentrar. Queria fazer com ele o mesmo que fazia com a maçã, mas não funcionou — P-Por que não funciona?

Ele segurou a mão de Heilee e abriu um sorriso de canto.

— Fuja daqui…

Desesperada, ela fez que não com a cabeça.

— Não vou deixar o senhor! — Mal conseguia enxergar devido às lágrimas — Sem o senhor e-eu… eu não vou conseguir…  Por favor, não me deixe, por favor!

A visão de Ibras estava ficando embaçada e ele mal conseguia ouvir o que ela estava dizendo. Não sentia medo da morte, pois, espiões como ele sempre estiveram preparados para ela. Só não pensou que viria de maneira tão repentina em lugar como esse.

— Heilee… — sua voz estava estrepitosa, como se tivesse catarro nos pulmões — Me escuta, tá? — Ela franziu os lábios e assentiu — No meu bolso esquerdo vai encontrar o meu caderno de anotações, consegue pegá-lo? — Ela fuçou no bolso dele e o pegou — Ele ainda está inteiro? — Ela assentiu — Vai ter que me dizer, não consigo mais enxergar nada…

Ela engoliu o choro.

— S-Sim, está inteiro…

— Isso é bom… sabe para qual direção está o centro-leste?

— N-Não…

— Entendi… Não falta muito para anoitecer, quando escurecer olhe para cima. A rachadura no céu irá ficar acima de uma constelação que se parece com uma lança, a siga, me entendeu?

Ajoelhada, Heilee apoiou a cabeça no peito de Ibras.

— Vem comigo, por favor…

Esforçando-se, Ibras afagou o cabelo dela.

— É tarde demais para mim hehe — Ele tossiu sangue duas vezes — Preste atenção… você deve encontrar um ducado, procure por um homem chamado Colin e entregue o caderno a ele, somente a ele, entendeu?

— S-Sim…

— Ótimo, diga a ele para tomar conta da minha família, e como um último favor, diga a ele que pedi para tomar conta de você…

Heilee estava um pouco confusa.

— Por que esse homem? Não era ele quem está ameaçando sua família? Por que pedir ajuda dele?

Ele abriu um sorriso de canto.

— O desgraçado é um homem de palavra… — Ele tossiu mais uma vez — O pontífice, as pessoas que a torturaram… Não conheço ninguém além dele que possa enfrentá-los… Não conheço ninguém tão insano quanto ele para tentar algo tão estúpido assim…

Heilee sentia que seu amigo estava dizendo a verdade, mas ela não conseguia entender esse tipo de pessoa. Por que se arriscar em algo onde a morte era certa?

— Por que me ajudou? Se o senhor sabia que era tão perigoso… por que o fez? — Ela começou a chorar novamente — Se não tivesse feito, poderia estar vivo e-

— Fiz o que achei certo. — Ibras segurou a mão dela — Você ficará indetectável por cerca de cinco horas, usarei uma magia de condição em você, depois disso é o fim pra mim. — Um círculo mágico púrpuro apareceu nas costas da mão de Heilee. — Não pare de correr por nada nesse mundo, entendeu? — Ela assentiu — Boa sorte, garota…

A mão de Ibras amoleceu, e sua respiração cessou. Heilee enxergava tudo em preto e branco, o que significava que a técnica de Ibras estava ativa. Enxugou as lágrimas com as costas da mão e deu mais uma olhada no amigo.

Aquele lugar seria seu túmulo, um lugar aonde ninguém iria visitá-lo. Seu corpo se tornaria alimento para os lobos e seus restos virariam comida para os vermes da terra. Heilee fechou os olhos dele e se ergueu. Guardou o caderno no bolso da calça e começou a correr sem parar.

Não havia tempo a perder.

Picture of Olá, eu sou o Stuart Graciano!

Olá, eu sou o Stuart Graciano!

Comentem e Avaliem o Capítulo! Se quiser me apoiar de alguma forma, entre em nosso Discord para conversarmos!

Clique aqui para entrar em nosso Discord ➥