No império do Sul, os habitantes estavam acostumados com o rigoroso frio, pois o gelado clima fazia parte de suas vidas. Em um pequeno vilarejo afastado, habitado por poucas pessoas, os moradores encontravam formas engenhosas de lidar com o clima adverso. Utilizando a magia, eles criavam estufas artificiais, proporcionando um ambiente mais ameno e confortável para si mesmos.
Enquanto as crianças se divertiam em meio à neve, participando de uma alegre guerra de bolas de neve, os rapazes se dedicavam a aquecer suas fornalhas para forjar espadas que seriam vendidas nas vilas vizinhas. Já as mulheres, em sua maioria acompanhadas por suas filhas, cuidavam do gado nos celeiros aquecidos, além de colher leite para comercializar nas proximidades.
Naquela vila pequena e isolada, uma característica única e marcante chamava a atenção: todos os habitantes possuíam cabelos alaranjados, semelhantes ao tom do céu em um fim de tarde. Eram uma minoria étnica que escolhera viver em isolamento nas montanhas, dedicando-se à adoração de um Deus guerreiro, que exaltava a força acima de tudo. No entanto, a realidade daquela comunidade ia além dessas aparências.
Embora o culto ao Deus guerreiro fosse importante, os moradores da vila valorizavam igualmente a comunhão entre si, o companheirismo e a união, criando um ambiente onde todos se tratavam como uma grande família.
Na soleira de uma casa, um garoto de aproximadamente dez anos observava entediado seus irmãos mais novos se divertindo com a neve. Apesar de desfrutar de uma vida confortável, o garoto sentia um tédio profundo em relação à rotina monótona que levava. Viver aquela vida desprovida de emoção, com as mesmas pessoas e as mesmas atividades diárias, já que apenas os adultos tinham permissão para sair do vilarejo, não lhe trazia satisfação ou entusiasmo.
— Por que não vai até lá brincar com elas? — perguntou a mãe do garoto segurando uma cesta com roupas sujas. — Acabará morrendo de tédio se ficar aí.
O garoto inchou as bochechas e suspirou, coçando os cabelos alaranjados.
— Isso é coisa de criança, mamãe… papai devia me levar até fora do vilarejo com ele, já sou um homem!
A mulher, de sorriso gentil e um longo cabelo alaranjado envolvido por uma trança, segurou a cesta em uma das mãos e afagou o cabelo do garoto.
— Claro, o meu homenzinho! — disse com um sorriso. — Já que é um homem, pode ir até a floresta pegar alguns troncos que seu pai cortou mais cedo perto da grande pedra? Se tiver muito pesado, pode deixar que te ajudo.
— Como se carregar alguns troncos fosse problema para mim! — Ele saiu da varanda empolgado. — Já volto!
Pof!
Uma bola de neve atingiu sua nuca.
— Irmão! Vem brincar com a gente! — disse um garoto empolgado. — Aposto que dessa vez ganho de você!
Ele limpou a neve da nuca.
— Isso é coisa para criança, sou um homem agora.
Pof!
Mais uma bola foi lançada em sua direção, mas ele conseguiu defender-se com o ante braço!
— Mentiroso! — O garoto mais novo preparava outra bola de neve. — O papai disse que homens tem cabelo no saco, e você não tem!
Nervoso e vermelho, ele apontou o indicador para o irmão.
— Saiba que começou a crescer!
Virando as costas, ele foi em direção à floresta enquanto seus irmãos continuaram tentando acertá-lo com bola de neve, mas sem sucesso.
[…]
Na densa floresta, o garoto deparou-se com os troncos cuidadosamente cortados por seu pai. Para sua sorte, eram troncos de tamanho moderado, perfeitos para a tarefa que parecia aguardar sua intervenção. Em meio à excitação de escapar da rotina monótona, o garoto empenhou-se em juntar os troncos e amarrá-los ao trenó.
Determinado a reproduzir os nós habilmente feitos por seu pai, ele concentrou sua mente na tarefa. Contudo, assim que julgou ter finalizado o nó, viu-o desfazer-se diante de seus olhos, os troncos dispersando-se pelo chão.
— Porcaria! — esbravejou chutando um dos troncos.
Acalmando-se, ele fez todo processo novamente, dessa vez com mais calma.
Ele dedicou-se a cada detalhe com minuciosa atenção. Consciente de que a qualidade era mais importante que a velocidade, ele fez um nó preciso e aguardou alguns segundos, desejando intensamente que aquele nó permanecesse firme, sem se desfazer como o anterior.
— Beleza! Agora é hora de voltar!
Agarrou as cordas com firmeza, ajustando-as sobre seu ombro, e inclinou o corpo para trás, convocando toda a sua força para mover o pesado trenó. O esforço aplicado resultou em um progresso mínimo, com o trenó deslocando-se apenas alguns centímetros pelo solo gélido.
Entretanto, no momento seguinte, um som abrupto irrompeu no ar:
Poft!
Com um deslize repentino, seus sapatos não resistiram à tração escorregadia do terreno e ele perdeu o equilíbrio, desabando no chão com um estrondo.
O impacto violento desfez o nó meticulosamente amarrado, espalhando os troncos de árvore em uma desordem caótica ao seu redor.
— Que inferno!
— Hihi!
Ele olhou para trás após escutar a risada.
— Quem está aí? — Ele enfiou a mão no bolso, pegando um canivete minúsculo.
Uma garota da mesma idade saiu de trás de uma árvore, ela estava de cabelo solto e usava roupas grossas como agasalho.
— Liv?! — Ele começou a apanhar os troncos um por um novamente. — Ainda continua me seguindo?
Com um movimento suave, ela colocou as mãos cuidadosamente atrás das costas. Seus olhos esverdeados irradiavam um brilho intenso, enquanto ela se aproximava do seu amigo com uma expressão de expectativa e camaradagem.
— Fazendo coisa de “homem”, de novo? — Ela abaixou-se ajudando o amigo a apanhar os troncos.
— Devia voltar, isso não é serviço para menina.
A garota fez beicinho e bateu com um graveto na cabeça dele.
— Aii! Por que fez isso?
— Devia agradecer quando alguém se oferece para ajudar!
— Mas eu não pedi ajuda…
Slat!
— Aii! Por que bateu de novo?
— Silêncio! Vamos juntar os troncos e voltar, logo escurecerá, e a floresta não é segura a noite.
Foi a vez de ele fazer beicinho, aceitando a ajuda em silêncio.
[…]
Juntaram os troncos, amarraram perfeitamente e, com Liv segurando uma corda e o garoto outra, conseguiram fazer o trenó sair do lugar.
Liv olhava para o amigo vez ou outra.
— Svein…
Ele a encarou.
— O quê?
— Por que quer tanto deixar a vila?
— Você não quer? Não tem nada aqui.
Ela deu de ombros.
— Meu pai disse que o mundo fora da vila é perigoso, e tudo que você ama está aqui, não está? Seus pais, seus irmãos… seus amigos…
Svein assentiu.
— Você tem razão, mas meu pai também me conta sobre como é o mundo lá fora. — Os olhos dele encheram-se de empolgação. — Dragões, Orcs, fadas, Elfos e seres com a pele escura assim como o cabelo, não quer ver isso? Castelos tão altos que chegam até as montanhas, desertos escaldantes e um mar cristalino, isso não é empolgante?!
Liv desviou o olhar, imaginando todas aquelas coisas.
A empolgação de Svein a contagiou, e um sorriso despretensioso brotou em seu rosto.
— Sim, é!
— Liv! Quando a gente ficar adulto, vou me tornar um aventureiro, e vou te levar comigo!
Enrubescendo as bochechas, ela desviou o olhar.
— Tá…
— Confia em mim. Será incrível!
Ela retribuiu o sorriso com outro sorriso contagiante.
— Tenho certeza que vai!
A escuridão da noite já havia se instalado, envolvendo a floresta em uma aura sombria. Foi então que um clarão misterioso capturou a atenção de Svein, roubando seus pensamentos. Seus olhos se fixaram na distância, onde uma luz intensa pulsava.
— Fogo? — sussurrou Svein, sua voz carregada de preocupação. — É na vila!
Sem hesitar, ele soltou a corda que segurava e lançou-se em uma corrida desesperada através da densa vegetação da floresta. Seu coração batia acelerado, impulsionando cada passo enquanto ele buscava chegar à vila o mais rápido possível.
— Svein! Espera! — exclamou Liv, também abandonando a corda e correndo atrás dele. — Droga! Não me deixe sozinha!
Com a mão protegendo o rosto dos galhos que se entrelaçavam em seu caminho, o garoto avançou impetuosamente pela floresta, determinado a alcançar a vila em chamas.
A ansiedade o dominava.
Quando finalmente emergiu da vegetação, aterrissou em um cenário apocalíptico. Homens vestidos com capas escuras conduziam mulheres para uma caravana sinistra, enquanto o cheiro de sangue impregnava o ar, deixando Svein nauseado. Corpos dilacerados jaziam pelo chão, incluindo os de outros garotos.
Em meio a esse caos, Liv emergiu da mata, seus olhos arregalados refletindo a visão infernal diante deles.
— S-Svein… i-isso é um ataque? — Liv balbuciou, sua voz trêmula e carregada de medo.
“Minha mãe e meus irmãos!” O pensamento desesperado ecoou na mente de Svein, impulsionando-o com uma onda de adrenalina.
Ele correu desenfreadamente em direção à sua casa, atravessando uma paisagem macabra de inúmeros cadáveres estripados, testemunhas brutais de uma violência indescritível.
Enquanto avançava, os gritos de socorro de mulheres e crianças ressoavam em seus ouvidos, misturados com as risadas cruéis dos invasores.
Finalmente, ele chegou à sua casa, encontrando a porta escancarada como uma boca sinistra. Seu coração parecia querer escapar do peito, pulsando descompassado. Sem hesitar, ele cruzou o umbral e avançou direto para a sala, a respiração acelerada, preparado para a cena que iria se deparar.
Haviam cinco homens no recinto, uma cena horrível e repugnante que deixou Svein atônito. Sua mãe, um símbolo de amor e proteção, estava ali, com as roupas rasgadas e sendo violada por três dos invasores. Seu rosto estava desfigurado, os olhos vazios de esperança, e seu corpo marcado pelas marcas brutais daquela violência inominável.
No canto da sala, seu pai estava nu, impotente, com os braços amarrados e privado de sua dignidade. Suas genitálias haviam sido arrancadas com uma faca cega e enferrujada.
A imagem era um golpe direto no coração de Svein, alimentando uma fúria avassaladora que fervilhava dentro dele.
Cerrando os dentes, Svein sentiu a raiva transbordar de cada poro de seu ser. Sem pensar duas vezes, sua mão tremeu ao sacar o canivete do bolso, sua lâmina brilhando como um fio de esperança em meio ao inferno sombrio.
Um grito monstruoso escapou de sua garganta, ecoando pelo recinto, enquanto ele avançava com uma determinação implacável em direção àqueles homens repugnantes que profanavam sua mãe.
— Aaaaaa!
Bam!
O impacto do pontapé no estômago que veio do nada foi devastador para Svein, o ar expelido abruptamente de seus pulmões.
Ele foi arremessado ao chão, sua dor se misturando com a sensação de impotência diante daquele ato de violência.
O homem impiedoso o agarrou pelo pescoço, erguendo-o com brutalidade e colidindo seu corpo pequeno contra a parede fria.
A pressão no pescoço de Svein tornava cada vez mais difícil respirar, suas mãos tentando desesperadamente afastar aquele aperto assassino.
— Moleque idiota… — disse aquele homem com desprezo. — Devia ter ficado quieto e longe daqui.
No rosto pálido daquele homem, suas características se destacavam, especialmente as profundas olheiras que denotavam uma vida de perversidade. Mas o que Svein jamais esqueceria seriam aqueles olhos amarelos, penetrantes e sinistros, que pareciam enxergar diretamente sua alma em meio à escuridão do momento.
— A gente só devia ir embora — disse um homem que também assistia ao estupro. Ele estava coberto por um capuz enquanto comia uma maçã.
— Deixem os rapazes se divertir — disse o homem de olhos amarelos. — Mas ficar assistindo uma coisa dessa é meio nojento.
— Há! — O homem comendo a maçã revelou seu rosto. Aquele era Elnan, o irmão mais velho de Safira. — E o que você estava fazendo?
— Eu já estava indo embora.
— Até parece.
O homem de olhos amarelos soltou o pescoço de Svein e ele caiu no chão alisando a garganta enquanto tossia demasiadamente.
— Eu já vou indo, teremos mulheres o suficiente aqui para o ritual.
— Tsc… odeio trabalhar com cultistas. — Elnan terminou a maçã, comendo até mesmo o caroço. — Ele se ergueu. — Também vou indo, continue com o plano, voltaremos a nos ver no ritual.
Svein fixou seu olhar nos dois homens que se destacavam dos demais, enquanto sua mão acariciava sua garganta dolorida. Aqueles dois eram diferentes, possuindo olhos distintos em meio àquele mar de olhares verdes intensos e penetrantes.
— Svein! Os meus pais, eles-
Nesse momento, os olhos de todos se voltaram para a porta, onde Liv estava paralisada de medo. O homem de olhos amarelos coçou a nuca com certa impaciência.
— Tsc… — Ele soltou um leve suspiro de frustração. — O que esses idiotas estão fazendo? A ordem era capturar todas as garotas e mulheres deste lugar.
— Tem que treinar melhor o seu pessoal. — Elnan avançou lentamente em direção a Liv, que estava paralisada pelo medo. Seus passos eram propositadamente cadenciados, carregados de uma presença ameaçadora. — Uma não vai fazer falta, vai?
Coçando a nuca em um gesto de desdém, o homem de olhos amarelos passou rente a Liv, saindo da casa em direção à escuridão.
— Sei que isso é divertido, mas vocês deviam aprender a se controlar. — Sua voz ecoou pelo ambiente, carregada de uma mistura de desprezo e superioridade.
Em um instante de pânico, Liv deu um passo para trás, preparando-se para fugir. No entanto, antes que pudesse reagir, foi brutalmente atingida por um soco certeiro no estômago. A força do golpe fez com que seus joelhos cedessem, fazendo-a cair no chão. O impacto foi tão intenso que ela vomitou não apenas a refeição que havia ingerido no café, mas também sangue.
Svein encontrava-se em um dilema dilacerante, incapaz de decidir a quem devia ajudar. Por mais que desejasse intervir em favor de sua mãe, pai ou até mesmo Liv, qualquer movimento parecia fadado ao fracasso. A falta de força, tanto física quanto emocional, o dominava como um soco no estômago, deixando-o completamente impotente.
A sensação de impotência era avassaladora, como uma ferida que cortava sua essência. Svein se convencera de que já era um homem, mas a realidade implacável o confrontava com a dura verdade de que ainda estava distante desse amadurecimento.
Naquele momento, ele se via apenas como uma criança, tendo que encarar a cruel realidade do mundo de forma dolorosa
Elnan se agachou, ficando em cócoras encarando o garoto.
— Chegou aqui gritando, e olha que achei que você fosse fazer algo, mas é só um covarde. Seu pai e sua mãe estão ali, não estão? — Elnan mexeu na cintura, cravando uma adaga no soalho frente a Svein. — Aqui, pega isso e faça alguma coisa, vamos lá, ao menos tenha alguma dignidade, garoto.
Svein continuou imóvel e com a cabeça abaixada.
— Então você entendeu, né? Qualquer movimento aqui e você está acabado. — Ele ergueu-se e caminhou até Liv no chão, colocando-a em seu ombro. — Bem, espero que sua amiga aqui dure mais que sua mãe, hehe!
Grab!
A fúria tomou conta de Svein, crescendo dentro dele, alimentando sua determinação. Ele agarrou a adaga com firmeza, decidido a enfrentar Elnan, que estava mais próximo. O garoto sabia que precisava agir rapidamente, com um único golpe certeiro. Um grito desesperado escapou de seus lábios enquanto avançava em direção ao inimigo.
— Aaaa!
— Hehe, previsível!
Crash!
Elnan desferiu um golpe com o calcanhar no pescoço de Svein, projetando-o violentamente contra a parede.
Bam!
O corpo de Svein caiu no chão, completamente incapaz de sentir qualquer sensação. Imobilizado, ele não conseguia mover nem mesmo um músculo.
Atrás dele, ouvia as risadas cruéis dos homens, enquanto sua visão embaçada focava em Liv, ainda nos ombros de Elnan. As lágrimas e os gritos de desespero da garota ecoavam pelos seus ouvidos, acompanhando sua partida da casa.
Aquela foi a última imagem que Svein pôde capturar antes que seus olhos se tingissem de vermelho.
Além do pescoço quebrado, uma ferida sangrenta se abriu em seu crânio, fazendo o sangue escorrer por seu rosto e formar uma poça no chão.
A vida escapava de seu corpo, tingindo a cena com sua trágica e derradeira presença.