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João estava imóvel no sofá.
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Não era possível ouvir nada além do choro do demônio.
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Independentemente, tudo parecia estar num completo silêncio…
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Um vazio.
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Mesmo assim, João decidiu abrir os olhos.
Sarah estava em cima de seu colo..
Com o facão em suas mãos.
E a faca estava fincada.
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Sem saber se era algo bom ou não, João se manteve estático no sofá, sentindo o frio angustiante da lâmina cravada ao lado de seu rosto. Lâmina essa que tocava sua bochecha — antes pálida — com um fio de sangue descendo por ambos.
Ele estava vivo. Mesmo que já tivesse aceitado a morte e quisesse ter ido para o outro mundo, não poderia fazer nada naquele momento, apenas sentir as lágrimas caindo pelo seu corpo enquanto o inimigo chorava em seu peito.
E decidiu ficar assim.
Após os lamentos, Sarah apoiou seu rosto no peito do jovem, dormindo lá mesmo. Aparentemente, a faxina no apartamento somada ao esforço de matar a pessoa que mais amava afetou-a bastante.
Ele também se manteve lá, sem fazer nada. Não sabia o porquê, se tinha algum motivo em específico ou se era apenas medo, mas optou por ficar imóvel antes que Sarah mudasse de ideia e matasse-o de verdade..
Com o tempo, também ficou cansado, mas antes que dormisse naquela situação um tanto incomum, João pensou:
“Eu… estou vivo.”
Quinta-feira – 28 de fevereiro de 1957
No dia seguinte, acordou e logo notou a ausência da moça que havia dormido com ele na noite anterior.
Levantou-se e foi se arrumar para ir à emissora.
Enquanto se vestia, pensava no quão idiota era voltar lá após todos esses acontecimentos. Na sua cabeça, era como se estivesse voltando para cumprir sua sentença de morte, mas mesmo assim, decidiu ir.
Não era um sentimento de cumprimento ou uma vontade de pedir desculpas sinceras para todos, era como se ele se obrigasse a isso.
Podia ser a sua paixão pelo trabalho que o impedia de fugir, ou talvez, não estava satisfeito por continuar vivo e queria de fato encerrar as coisas ali. No final, pensar nessas coisas lhe traria mais dúvidas do que respostas.
Após se arrumar, saiu de seu apartamento, trancou a porta e caminhou até o seu trabalho, como se fosse mais um dia comum de sua vida.
Chegando lá, entrou e rapidamente se deparou com todos os membros, que estavam prestes a terminar o café da manhã. Entre eles, avistou Sarah, que parecia totalmente diferente do que na noite passada.
Ele prontamente ignorou todos os membros e subiu as escadas, indo para o seu armário para se preparar. Aquela emissora estava num completo estado de quietude.
Antes que terminasse de se arrumar, seus colegas chegaram e também começaram as preparações. Como dito anteriormente, todos estavam calados, como se estivessem num velório.
João havia terminado e caminhou até o estúdio, mas antes que pudesse chegar lá, sentiu um toque calmo em seu ombro.
Ao se virar, viu o homem loiro com um pequeno sorriso no rosto.
— Bom dia, João.
— …?
— Após terminarmos as transmissões, precisaremos conversar sobre o que aconteceu ontem.
Rapidamente, o rapaz entrou em estado de alerta. Ao olhar para os outros atrás de Gabriel, notou a expressão assustada de Sarah, que sentia que algo de ruim poderia acontecer.
Em contrapartida, os outros membros não pareciam ouvir o que eles estavam conversando.
— Ok.
— …
— …
— Hahahaha! Não se preocupe, você não será “demitido”, só iremos esclarecer as coisas.
— Tudo bem.
— Vamos nos dedicar hoje! — completou Gabriel que entrou no estúdio antes mesmo de João.
Algumas horas passaram, e como Gabriel previu, todos estavam reunidos no primeiro andar preparados para a mais uma reunião.
Willian parecia não se importar com a situação e apenas lia o seu livro como sempre.
Ana e Sarah aparentavam muito assustadas, mas por motivos diferentes. Enquanto a loira esperava levar uma baita bronca do chefe, a de cabelo tingido cogitava algo pior: a futura morte de João.
Caio encarava o jovem com desdém aguardando Gabriel chegar na mesa. Quando retornou, o loiro trouxe consigo algumas taças e vinho, e prontamente serviu todos. Após isso, se sentou ao lado de Caio que falou:
— Precisamos conversar sobre o que aconteceu ontem. O que vi ontem foi, no mínimo, desrespeitoso. Colegas de trabalho se batendo, tratando um ao outro mal, não é isso que eu prego na nossa equipe.
— D-desculpe-me, Caio. E -eu agi no calor do momen… — A loira foi interrompida.
— CALE A BOCA, ANA!!!
Willian ouviu o grito e fechou o seu livro, falando em seguida:.
— Caio, todos sabemos que Ana não fez aquilo por má índole, e sim porque se preocupava com Sarah. Não adianta gritar com ela como se fosse a vilã.
— … — O homem de suspensório se virou para Gabriel que acenou positivamente com a cabeça. — É… Me desculpem..
— Por outro lado… — Willian passou a encarar João que já esperava ser posto como culpado por tudo.
— Quer dizer que a culpa foi do João, Willian? — questionou o chefe.
— Na realidade, não. Sarah me contou o que aconteceu naquele encontro e disse que foi apenas um mal-entendido sobre a situação. Talvez, tenham interpretado as coisas de formas diferentes um do outro.
— Então, nos conte, Sarah. O que aconteceu de verdade no encontro?
— E-eu…
— Vamos, nos diga!
— Eu acho que vocês deveriam parar! — gritou Sarah envergonhadamente, deixando todos surpresos. — J-já me resolvi com João. Ele não me manipulou nem me machucou como todos pensam que foi! Como Willian disse, foi apenas uma confusão de interesses…
Todos se mantiveram calados, e Sarah continuou:
— De fato, ontem estava mal por causa do último encontro, mas não pensem que fingi algo para fazê-los crer que o João está errado. Só estava mal!
— Sarah…? — João estava assustado.
— Na verdade, o que de fato aconteceu ontem foi que… os “culpados” foram vocês, que não interpretaram a situação da forma correta! Me desculpem por falar isso, mas… — A jovem foi interrompida.
— Já entendemos, querida… — disse Ana se levantando e caminhando até João. O rapaz, percebendo o movimento, rapidamente recuou com a cadeira, mas antes que se levantasse, a loira se aproximou a ponto de impedi-lo.
— A-Ana! Nã…
— Me desculpe, João.
— O-o quê? — o rapaz indagou espantado.
— Eu… me arrependo de ter batido em você ontem. Pode não parecer, mas…. me preocupo com a Sarah.
— Ana…
— Então, para que toda essa situação se perca no passado e possamos continuar como antes, peço que me perdoe…
— Ana, não precisa se submeter a is… — Antes que Willian completasse, Caio estendeu a mão impedindo-o de continuar.
— S-sei que o que fiz foi horrível e você nem deveria me desculpar… — Ana dizia enquanto os olhos passavam a derrubar lágrimas. – N-não sou de fazer o que fiz, mas…
— A-Ana… — Sarah passou a chorar também.
— Está tudo bem, Ana… Eu te perdoo… Me desculpe se te fiz pensar que machuquei Sarah… — João se levantou e abraçou a loira. — Nunca seria capaz de fazer algo assim, então, por favor, não chore na frente dela.
Ao ouvir isso, Ana fez uma feição alegre, acenando positivamente com a cabeça e limpando suas lágrimas. Rapidamente,se virou com João para os outros colegas enquanto abraçava-o pelo pescoço.
— Hehe! Obrigada, João… Pronto, pessoal, as pazes estão feitas!
— Ana! — Sarah se levantou e correu para abraçá-la.
— Ai, ai, parece que tudo acabou então. — Willian voltou a ler o livro com uma singela expressão de felicidade.
— Finalmente, não aguentava mais essa seriedade toda aqui, hahaha!
— Não começa, Gabriel!
— Vamos aproveitar que tudo está resolvido e vamos beber, pessoal!
— Caio, sabe que amanhã iremos trabalhar também, né? — perguntou Willian.
— VAMOS BEBER!!! — Ana gritou pegando a garrafa de vinho e bebendo do gargalo.
— N-Não, Ana! — Willian exclamou se levantando para pará-la.
— Hahaha! — Sarah começou a rir e logo pôs-se a olhar para João com um grande sorriso no rosto, depois pegando a mão do rapaz que percebeu a investida estranha da garota.
— Sentem-se, vamos aproveitar bem a bebida, e Ana, é melhor você parar. – exclamou o chefe erguendo a taça de vinho.
Passou-se um tempo até que quase todos estavam dormindo devido ao excesso de bebida. Apenas Sarah e João se mantiveram acordados.
— Sarah. Precisamos caminhar.
— Sim, vamos…
Ao saírem da emissora, começaram a passear pelos quarteirões do centro. Ambos estavam calados, mas João logo questionou:
— Então… você sabe que sei sobre…?
— Sim…
— Como descobriu?
— Após o seu primeiro dia, você, que ama rádio mais do que todos lá, faltou por dois ou três dias. Isso era estranho, então liguei para ti, e quando ouvi sua voz no telefone, percebi que estava completamente diferente de quando conversamos pela primeira vez.
— …
— Claro que não foi só isso que entregou. Teve outras coisas que percebi enquanto tentava te conquistar. Nos últimos dias, você começou a se desviar das minhas aproximações e fugir dos meus pedidos de namoro.
— …
— No nosso último encontro, planejei pôr a prova se você de fato sabia de algo e decidi te beijar. Como esperava, só estava me enganando, fingindo que me amava.
— Caramba… S-se sabia de tudo isso, por que chorou? Por que não me matou naquele momento?
— Porque te amo, João! Mesmo sabendo que estava fingindo, meu coração não queria aceitar isso. Minha razão e minha emoção se colidiram no momento em que você me empurrou.
— …
— …
— Mesmo após tudo isso, ainda assim decidiu traí-los para o meu bem…
— Sim…
— Até me protegeu das acusações deles hoje…
— É…
— Por quê?
— Já te disse, João. Eu te amo.
— Realmente tem ideia do que está falando?
— Sim, te amo, te amo e te amo!
— P-para, é estranho…
— Acho que estava destinada a te amar desde que nos encontramos!
— Sarah, para.
— Hehe… Mas não é só por isso.
— O quê?
— Quando saímos em um dos nossos encontros, você citou minha irmã… Quando parei para pensar em tudo, senti que ela não se orgulharia de mim se eu contribuísse com os planos deles.
— Você citou a sua irmã às vezes, ela também é um demônio? Um demônio do bem?
— Hahaha! Que ingenuidade pensar assim, João…
— Como assim?
— Eu… já fui humana…
— O-o quê?
— Sim, me tornei um demônio após um pacto que fiz para… pela minha família…
— Sua família… O que aconteceu com eles?
— Hehe, achei que conseguiria esconder isso… João, não quero me fazer de vítima depois de tudo isso, então é melhor não…
— Por favor, me conte, Sarah…
A jovem encarou João por alguns segundos e, após parar a caminhada, respondeu:
— Ok, irei te contar sobre o meu passado.