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Segunda-feira 12 de dezembro de 1949 – Borá 

Nas estradas de terra da pequena cidade do interior de São Paulo, caminhava uma jovem garota de doze anos. 

Essa garota possuía um curto cabelo castanho, vestia seu uniforme escolar — uma camiseta branca com o símbolo da prefeitura da cidade e uma saia verde escura que passava dos joelhos da garotinha — e portava uma mochila de couro que continha seus materiais escolares. 

Andando até o seu destino, observou diversos vizinhos na rua murmurando algumas palavras e encarando-a com nojo, como se tivesse feito algo, porém, apenas ignorava e continuava seu trajeto alegremente. 

Passou-se um tempo até finalmente chegar aonde queria: sua pequena e simples casa. 

A moradia continha um velho e baixo portão e era cercada por um muro da mesma altura. Sua pintura estava deveras desgastada, e boa parte do que se via também era velho, exceto pelo belo jardim de flores que era cultivado ali.

Antes que pudesse entrar, viu seu pai regando as flores, e logo pôs-se a gritar: 

— Papai! Abra o portão! 

— Você não tem modos, menina? Peça com respeito! 

— Seu chato! 

— Ai, ai… — O homem suspirou e logo caminhou até o portão, abrindo-o — Bem-vinda de volta, Sarah. 

— Obrigada, pai! — Segundos após o portão abrir, Sarah rapidamente deu um forte abraço no homem. — O senhor está de folga hoje?! 

— Sim, como nós estamos próximos do Natal, decidiram dar um descanso para todo mundo. Provavelmente, estaria trabalhando hoje, mas decidiram ser caridosos comigo hoje…

— Não entendi nada, mas espero que esteja tudo bem! 

— Hehe… você é muito pura, filha. Entre e vá almoçar, sua irmã está te esperan… — Antes que completasse, viu Sarah soltando sua mochila no chão e correndo até o interior da casa. 

Ao entrar, a garotinha correu rapidamente para cozinha, e chegando lá, viu sua mãe “arrumando” as coisas. Sarah achava isso irônico, visto que tudo já aparentava estar organizado. 

— Cadê ela?! 

— Não vai me dar um “oi”, filha? 

— Oi mãe. Agora, cadê a Erika?! 

De repente, sentiu alguém tocando em seus ombros. Eram mãos fortes que, ao tocar na garota, passavam uma sensação indescritível e única.

— Então, você chegou. 

— ERIKA!!! 

A criança instantaneamente se virou e abraçou a pessoa. Era uma mulher jovem e bonita, mas que tinha um ar bem controverso. 

Seu nome era Erika Cambra. Tinha um cabelo longo castanho preso num rabo de cavalo, olhos de mesma cor e vestia uma regata branca, mas repleta de sujeira, uma calça marrom com diversos rasgos e uma sandália de couro preta. 

Além disso, sua pele continha diversos hematomas e cicatrizes de corte que provavelmente foram causadas em seu trabalho. 

— Como foi a escola? 

— O mesmo de sempre, os professores me olharam feio e os colegas se distanciaram de mim! 

— Como consegue ficar tão alegre com isso? 

— Haha! 

— Hehe… Bem, estava te esperando para poder ir embora, então, já estou indo, ok? 

— Já?! Você não vai almoçar? 

— Já almocei, Sarah, e estou quase atrasada. 

— Mãe! A Erika não quer comer comigo! — a garotinha gritava forçando uma expressão de choro. 

— M-mas filha, ela precisa ir ao traba… 

— Ai, ai. O que não faço pela minha irmãzinha, hein? — indagou Erika acariciando a cabeça de Sarah, que imediatamente abriu um grande sorriso. — Vou comer só um pouquinho, certo? 

— Eba! 

Rapidamente, as mulheres se sentaram para comer. Logo depois, apareceu o pai das garotas com a mochila de Sarah na mão. Ele se sentou e, junto com as outras, começou a orar: 

— Que todo dia eu possa, com boa vontade, criar vínculos com os outros; que todo dia eu possa praticar o amor, a compaixão, o regozijo e a equanimidade; que todo dia eu possa tratar as pessoas com tolerância e generosidade. Ó grande e compassivo Buda! 

Após terminarem as preces, começaram a comer. Depois da refeição, Erika saiu da mesa e correu apressadamente para fora de casa, dando um rápido beijo na testa de Sarah para se despedir.. 

Algumas horas se passaram até a criança ouvir o barulho do portão do lado de fora abrindo.

— Mamãe, Papai! Erika chegou! — gritou Sarah abrindo a porta. Ao abrir, notou sua irmã completamente suja, cansada e machucada,coberta por novos hematomas que estranhamente conseguiu no seu emprego como nos dias anteriores. 

— Filha! O que aconteceu dessa vez? 

— T-Tudo bem, mãe, só me deixe ir para o sofá… 

— I-i-irmã?! — a garota indagava derramando lágrimas de tristeza. 

Erika se aproximou da jovem e acariciou sua cabeça mais uma vez. 

— N-não se preocupe, querida. Sabe que é assim… 

— E-eles te machucaram? — o pai perguntou ajudando sua filha a se acomodar. 

— N-não, foram apenas acidentes de trabalho, hehe… 

— Filha… 

Erika se sentou no pequeno sofá que havia na sala e suspirou. 

— Filha, eu… não aguento mais isso, nós precisamos nos mudar! Não consigo ver você desse jeito mais… 

— Mãe, só teremos dinheiro para isso mês que vem…. 

— M-mas, podemos pedir para alguém e adiantar as coi… 

— Para quem, mãe?! Não temos contato com nenhum parente fora daqui. Estamos presos nessa cidade. 

— Filha, não seja grosseira com sua mãe, ela está tentando nos ajudar. 

— … 

— I-irmã, p-por que você s-sempre volta a-assim? — questionou a garotinha em meio ao choro. 

— Hehe… — Erika pegou Sarah no colo, assustando-a. — Viu? Se consigo te carregar, é porque já estou bem! Não aconteceu nada. 

— M-mas… — a pequena falou enquanto limpava as lágrimas. — Isso é porque você é forte! 

— Sabe por que sou forte? Porque tenho vocês para me apoiar. — Erika exclamou abraçando Sarah fortemente. 

— Hahaha! Eu te amo, Erika! 

— Aliás, já está tarde. Deveria dormir, hein, garotinha? 

— M-mas amanhã é o último dia de aula! Por favor, deixa eu faltar? 

— Sarah, não deveria perguntar isso para sua irmã, e sim para nós! 

— P-posso, mãe? 

— Não! Já para cama! 

— Sua chata! 

— O que disse, garotinha?!

— Se eu fosse você, respeitava a nossa mãe, Sarah… Ela é muito mais nervosa que nosso pai… 

— S-sério? 

— Ela pega leve com você, mas… sim. — o pai respondeu desviando o olhar envergonhado. 

— Ei, vocês me acham má? Vou querer ouvir sobre isso depois, ok?!

— F-filha, vamos para o seu quarto, venha! — exclamou o homem correndo junto com Sarah para o quarto. 

Após isso, Erika e sua mãe ficaram caladas na sala: 

— … 

— … 

— Sabe que só queremos o bem para nossa família, não sabe, Erika? 

— Sei, mãe… Mas realmente, não temos dinheiro para ir embora… Não agora… 

— Estamos juntando, não? Com o seu salário e o de seu pai, poderemos ir para São Paulo como prometemos para você e sua irmã. 

— Sim… Eu gostaria disso… 

— … 

— Mãe… 

— O que foi, amor? 

— Quero provar para eles… provar que somos fortes para viver aqui mesmo com todo o preconceito que sofremos… 

— F-filha… 

De repente, Erika começou a chorar. 

— S-sei que precisamos ir embora se quisermos ter uma vida boa, mas… quero mostrar para eles que também somos humanos… 

— Filha… — A mãe se sentou no sofá, abraçando a filha em seguida. — Está tudo bem… Algum dia, vão aprender isso, mas não precisa ser com a gente. 

— … 

— Como nossa religião ensina, devemos praticar a compaixão, tolerância e generosidade, é o que a oração diz, não é? 

— Sim… 

— Não podemos forçar nossas crenças a eles. Deixemos que o Deus deles os ensinem essa lição… 

— Mas, mãe… 
 

— Não pense só em ti… pense na sua irmã… ela precisa ter uma boa infância… 

— … 

— … 

— É… acho que fui egoísta esse tempo todo, haha… 

— Está tudo bem, filha, está tudo bem… — completou a mãe acariciando o cabelo de Erika. 

— … 

— … 

— No mês que vem, então… 

— O quê? 

— Nós iremos embora daqui mês que vem. 

— … 

— … 

— Obrigada, filha… 

— … 

— Eu te amo. 

— Também te amo, mãe. 

Sábado 24 de dezembro de 1949 

Toda a cidade estava em clima de Natal, com as crianças correndo e brincando nas ruas, adultos enfeitando suas casas com os poucos materiais que tinham, comerciantes vendendo brinquedos e comidas, além de outras coisas. 

Sarah olhava desolada pela janela todas as outras crianças, algumas retornavam para ela e faziam uma expressão estranha e incompreensível para a garota. 

Logo, sua irmã apareceu atrás da jovenzinha e acariciou sua cabeça. 

— O que é que está afetando minha irmãzinha? 

— Oi, Erika… 

— Aconteceu algo? 

— Queria brincar com eles, mas os pais deles não deixam… 

— Por que precisa brincar com eles se estou aqui? 

— Porque… Você vai brincar comigo?! 

— Na verdade, vou te levar para um lugar especial. Venha comigo. 

Elas caminharam até a porta de casa e Erika gritou: 

— Mãe, vou passear com a Sarah! 

— Ok, só voltem rápido porque está escurecendo. 

— Vamos, Sarah! 

— Eba! 

As duas correram para fora de casa em busca do tal lugar especial que a mais velha havia prometido mostrar para a mais nova. Erika segurava na mão de Sarah e dizia: 

— Você vai amar esse lugar!

— Ok! 

Caminhando por alguns minutos, as duas chegaram no meio de uma floresta que ficava perto da cidade. Continuaram andando por lá enquanto observavam a bela natureza que residia ali. 

Nesse meio tempo, viram pássaros, árvores lindas e gigantes, e flores tão belas quanto as do jardim de seu pai. 

Com o passar das horas, o dia anoitecia mais e mais, enquanto as duas moças estavam sentadas debaixo de uma árvore. 

— Gostou da surpresa? 

— Essa floresta é linda, irmã! 

— Mais linda que o jardim do nosso pai?

— Isso é impossível! O papai é o melhor jardineiro do mundo!

— Hehe… Infelizmente, essa é a única coisa que posso te mostrar agora… 

— Está tudo bem, gostei mesmo assim! 

— Sarah… 

— O que foi? 

— Gostaria de te explicar tudo o que aconteceu até agora nas nossas vidas. O porquê dos nossos vizinhos te tratarem tão mal, o medo, desgosto e ódio que aparentam ao olhar para gente. Meus machucados do trabalho… tudo… 

— Eles não gostam da gente, né? 

— Praticamente isso… Não compartilhamos da mesma ideologia que eles. 

— Ideologia?

— Religião… como nossa família segue uma religião diferente da pregada aqui, eles nos tratam como monstros… 

— Mas, eles são os monstros! Eles machucam você! 

— Como sabe que esses machucados são causados pelos meus colegas? Tentei ao máximo esconder de ti…

— Já ouvi o papai e a mamãe falando disso…

— Parece que escondi o segredo mal, então, hehe.

— …

— Sobre os vizinhos… Não veem que agem do jeito errado conosco, Sarah… 

— Eles não sabem que estão errados?

— Não… Gostaria de mostrar isso para eles, mas… percebi que será impossível. 

— … 

— Por isso, mês que vem, iremos nos mudar. Vamos para um lugar grande, melhor e com várias coisas que você nunca viu na vida. 

— Sério?! 

— Sim, Sarah. Neste lugar, seremos aceitas por quem somos. Terei um trabalho digno onde não me machucaria como agora, e terei tempo para brincar contigo. 

— Que legal! Esse lugar deve ser incrível! 

— É…, Posso te contar uma curiosidade? 

— O quê? 

— Antes de você nascer, eu era feminina igual a ti. Usava saia, maquiagem quando era possível, entre outras coisas. 

— Não consigo imaginar você de saia… 

— Haha! Sim, é um pouco estranho… Tive que adotar essa personalidade de agora para proteger você e nossos pais… Agora que estão mais velhos, coube a mim esse papel. 

— Nossa… 

— É normal, Sarah. Um dia, será você quem terá esse papel. Só não faça igual eu e se torne um “homem”, haha! 

— Eca, não gosto de homens, imagina me tornar um… Mas gosto do papai. 

— Hehe, quem diz esse tipo de coisa são as que mais estão atrás de um, hein? 

— E-ei! Estou bem do jeito que está agora! 

— Hahahaha! 

— … 

— Se eu puder, vou te mostrar o meu lado feminino um dia. E vou te ajudar a ficar linda igual eu era no passado. 

— Tenho certeza de que sou mais bonita que você. 

— É mesmo, hehe! 

Erika se levantou junto com Sarah. 

— Vamos para casa, está de noite e precisamos nos apressar para a ceia de natal. 

Ao voltarem para cidade, ela estava bem diferente de antes, completamente iluminada pelas lamparinas, decoradas com enfeites de Natal que percorriam o céu todo, além de várias árvores enfeitadas. 

Antes que chegassem em casa, Erika olhou ao redor e, inquietamente, se virou para Sarah e disse: 

— Estenda a sua mão. 

— Por quê? 

— Quero te dar algo. Estenda, rápido! 

Ao obedecer a irmã, Sarah recebeu algumas cédulas de dinheiro. 

— Vamos fazer uma surpresa para nossos pais, traga presentes para eles. 

— S-sério? Mas o quê? 

— Deixarei a escolha por sua conta. Agora, vá!

— O-ok, até mais tarde, Erika! 

— Até… Sarah.

— O que foi?

— Eu te amo — exclamou a moça com um sorriso no rosto.

— Também te amo, irmã! Tchau! 

Sarah saiu caminhando pelas ruas. Estranhamente, quanto mais andava, menos pessoas via. Algumas eram notadas pela garota, mas todas estavam indo pelo caminho oposto ao dela. 

Chegando numa loja de roupas, não se via ninguém lá dentro. Sarah estava completamente sozinha. 

“Cadê o vendedor? Ele não deveria estar trabalhando? A loja até está aberta! O jeito é ir para outro lugar…” 

Caminhando mais um pouco, entrou numa loja de brinquedos também vazia. 

“Até aqui não tem ninguém? O que estão fazendo? Por que deixaram as lojas abertas e vazias? Aliás, aqui nem tem algo legal para comprar para os meus pais…” 

Sarah andou mais um pouco até que não fosse mais possível ver uma alma viva além dela. Isso a assustava, mas pensava que deveria comprar o presente de seus pais para deixá-los felizes. Continuou bisbilhotando pelas ruas até entrar numa pequena loja de joalherias que, novamente, não tinha ninguém. 

“Sei que é véspera de Natal, mas por que ninguém está trabalhando? Eles poderiam estar com sua família, mas as lojas estariam fechadas! Que droga, não poderei comprar nada para o papai e a mamãe… Me desculpa, Erika.” 

Quando Sarah se virou para sair, ouviu o cuco do relógio do estabelecimento tocar. Era meia-noite, Natal. 

Sarah notou isso e correu apressadamente para fora da loja.

“Já é meia-noite, preciso voltar para ca…”

  Antes que pudesse concluir seu pensamento, viu uma grande fumaça subindo aos céus, na direção de sua moradia. 

Assustada, partiu correndo o mais rápido possível até lá, e em meio a arfadas e gotas de suor caindo em seu vestido prateado e enlameado que estava usando no momento, chegou na rua de sua casa. 

Na entrada da rua, Sarah olhou sua casa de longe, e ficou completamente estática. 

O medo e a dor haviam dominado seu corpo, sua mente e alma, e ela não podia fazer nada além de ver seus vizinhos gritando e comemorando. 

“Esse é um presente de Deus!” 

“Muito obrigado, senhor!” 

“Feliz Natal!” 

“Hahahaha!” 

“Que Deus nos abençoe!” 

Sarah ouvia tudo isso ao mesmo tempo, enquanto observava aquelas chamas aumentarem mais e mais ao redor de onde morava. 

Atearam fogo na casa de Sarah. 

Em meio a tudo isso, pensava: 

“Mamãe… Papai… Eri…” 

De repente, ouviu os moradores da cidade falarem em meio às gargalhadas: 

— Finalmente colocamos fogo nessa família de pecadores! E a filha mais velha deles ainda tentou salvá-los! Aposto que estão queimando juntos e mortos, hahaha! 

— Que presente Deus nos deu nesse Natal! Os pecadores nunca mais terão paz! 

“Nós… nunca tivemos paz…” 

Sarah entendia isso. Ela sempre entendeu. 

Tinha algo de errado com ela. 

Tinha algo de errado com sua irmã. 

Tinha algo de errado com seus pais. 

Ou… 

Tinha algo de errado com os moradores da cidade. 

Graças ao desespero, não poderia compreender quem era o culpado nisso tudo. Tudo que lhe restava era chorar calada para que não fosse notada e algo pior acontecesse. 

Em meio ao choro quieto e incessante da garota, ela fugiu da cidade, abandonando sua família, seus vizinhos e seu ideal que nunca será capaz de compreender.

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