Após a pergunta, se manteve o silêncio que, até aquele momento, já era comum entre João e qualquer um de seus colegas. Sarah esteve visivelmente ansiosa e relutante sobre a conversa que teve com o jovem no dia anterior.
— Descobriu algo?
— …
— Aparentemente, ainda está com medo, né?
Sarah se manteve calada.
Para quebrar o clima, João aproximou-se da jovem e apertou sua mão firmemente. Sentindo a tremedeira da jovem se esvaindo aos poucos, disse:
— Pode ser no seu tempo, eu aguardo.
— O-ok…
— …
— …
— Desculpa, Sarah.
— P-pelo quê?
— Acabei te arrastando para tudo isso. Digo, você já estava no meio de todo esse caos, mas… não foi certo ter te colocado nessa encruzilhada…
— E-está tudo bem, João… Já disse que pretendo te ajudar, contanto que Ana não seja machucada.
— Entendo. Eu diria que, caso quisesse, poderia sair e esquecer de tudo, mas…
— Meio que não tem como, hehe…
— Isso. Nós já estamos enroscados nesse nó todo, só a gente pode se desamarrar disso e viver como pessoas normais…
— Pessoas normais… Não acho que eu posso ser chamada disso.
— Você pode, Sarah. A partir do momento em que veio para o meu lado, disse que pretende abandonar seu lado demoníaco. Sua irmã estaria orgulhosa agora.
— Pare de falar essas coisas…
— …
— Mas você não está errado…
Sarah respondeu o aperto de João com um mais firme ainda.
— Ok, estou preparada para te contar!
— Ótimo, vamos começar — o rapaz comemorou enquanto pegava um bloco de notas que estava sobre a mesa.
— Antes de tudo, preciso lhe explicar o porquê não quero que Ana sofra.
— Tem um motivo em específico?
— Sim… Assim como eu, ela também já foi humana.
— Espera, quer dizer que todos vocês já foram humanos?
— Não tenho certeza quanto aos outros, mas Ana me contou que também fez um pacto para se tornar o que é hoje. Acho que disse isso para me confortar, visto que eu estava prestes a fazer um pacto também.
— E onde quer chegar com tudo isso?
— Acho que ela foi manipulada para concluir o pacto, assim como eu…
— Certo…
— Ela também já teve seu lado humano, sentimentos, memórias… Se posso ter uma chance de voltar a ser quem eu era antes, Ana também pode.
— Também quero acreditar nisso, Sarah.
— Deve ser difícil, né? Já que ela te bateu tanto no outro dia, haha…
— Na verdade, o fato dela ter me espancado é o que me faz crer que ela ainda tem salvação.
— Sério?
— Quero acreditar que sim. Não acho que um demônio se preocuparia com os outros.
— Pelo visto, sim…
— Enfim, você é importante para Ana e vice-versa, então farei de tudo para que as duas não entrem em conflito ou se machuquem.
— O-obrigada…
— Certo, tem mais alguma coisa para contar?
— Sim. Quando fiz o pacto, Caio me contou que em alguns anos no Inferno, eu seria capaz de despertar os meus poderes.
— E você despertou?
— Não… Ainda sou muito nova para isso, o máximo que consegui foi me tornar levemente mais forte que uma pessoa comum.
— Quer dizer que quando você me prendeu no sofá…
— Foi força bruta, hehe.
— Caramba, acho que preciso treinar…
— Eca, não consigo nem imaginar você musculoso, haha!
— Sério? Confesso que já pensei em entrar numa academia.
— Não faça isso! Fique do jeito que está, você é bem mais atraente assim, hehe.
— Bem…
— Ah! Acabei de lembrar de uma coisa!
— Pode dizer.
— Caio também me contou que todos os demônios possuem um ponto fraco, uma mancha negra em determinada parte de seu corpo que, ao ser atingida por qualquer coisa, é capaz de danificar e até matar um demônio para sempre.
— Você tem essa marca?
— Tenho, porém… ela só aparece quando estou na minha forma demoníaca.
— Forma demoníaca?
— Sim. Os demônios são capazes de criar uma “camuflagem”, que seria um segundo corpo. Desse jeito, poderão se esconder no meio dos seres humanos ou de outros animais. Bem, nós ex-humanos apenas mantemos os nossos corpos originais.
— Hm… Teria algum problema me mostrar agora?
— M-minha forma demoníaca?
— Sim, tem algum problema?
— N-não acho que vai gostar do que verá…
— Está com medo? Não precisa se preocupar, é apenas uma demonstração.
— E se acontecer algo contigo?
— O que pode acontecer?
— E-eu posso me descontrolar, e…
— Vamos logo, Sarah, isso será necessário.
— …
— Não se preocupe comigo.
— Ok…
Sarah se levantou e, em frente ao sofá, começou a recitar palavras indecifráveis. Rapidamente, João percebeu que aquele dialeto provavelmente era o mesmo que ouviu de Caio no primeiro dia, como se fosse uma língua própria dos demônios.
Não demorou muito para Sarah começar a transformar-se em sua forma demoníaca: seu cabelo que estava tingido pôs-se a ficar completamente preto, como a mais temida escuridão. Sua pele — antes branca como a neve — ficou cinza, tal qual um dia nublado. Sangue escorria de sua cabeça enquanto chifres pretos e pontudos surgiam e, o principal de tudo, grandes e assustadoras asas rasgaram suas costas, com um mar de sangue caindo entre elas.
João assistiu todas aquelas mudanças repentinas acontecerem diante de seus olhos, formando um ser místico. Nunca em sua vida ele imaginou que veria algo assim. Sem notar, o rapaz recuou junto com o sofá para o mais longe possível.
— S-Sarah?! Está tudo bem?
De repente, o jovem viu aquele ser ajoelhando-se no chão em meio ao próprio sangue. Quando caiu em si, João levantou o mais rápido possível e se aproximou para ajudá-la, mas logo recebeu um gesto de distanciamento.
— E-eu estou bem… — disse “Sarah” com uma voz completamente diferente da que o homem era acostumado a ouvir, além de demonstrar cansaço com arfadas em meio às palavras. — Não chegue… muito perto…
— O-ok…
— Irei… te mostrar o meu… ponto fraco…
— Certo.
O ser, com suas mãos que agora continha unhas afiadas, ligeiramente rasgou o topo de suas vestes, estas que antes cobriam os seios da jovem. João virou o rosto com vergonha mas, decidiu olhar lentamente de volta para ela. Assim, notou o tal ponto fraco dos demônios: uma mancha negra que estava envolta de diversas veias.
— C-caramba…
— Essa é… a mancha negra… que eu… falei…
— C-certo… se quiser, pode voltar ao normal…
— Você… precisa averiguar… melhor, não?
— O quê?
— Chegue mais… perto, jovem
— E-está tudo bem, Sarah? Você acabou de dizer para eu me afas…
— Sarah? Quem é… Sarah?
— O-o quê?!
Em um piscar de olhos, aquele ser que antes era Sarah, voou como um gavião até João. Foi um voo tão rápido e potente que nenhum objeto à sua frente foi capaz de pará-lo. O jovem foi empurrado até a porta, batendo a cabeça e causando um estrondo.
— S-Sarah?! O que está aconte…
— Eu… não sou Sarah… Eu sou… Naamah! — O ser mostrou seus dentes afiados, que até então não eram perceptíveis, e logo tentou fincá-los no pescoço de João, que se esforçava ao máximo para impedi-lo.
— S-Sarah! O-o que você está fazendo?! Sarah!
Quando Naamah estava prestes a morder o pescoço do rapaz, paralisou-se por alguns segundos olhando para o nada. Era como se estivesse ocorrendo uma batalha interna na mente do demônio, uma batalha para definir quem continuaria com a posse do corpo.
Com o passar do tempo, o demônio começou a abrir mais e mais a boca, se preparando para gritar sem um motivo completamente aparente, e assim o fez.
Antes que o grito ecoasse por todo o prédio, João forçou suas mãos sobre a boca do ser, abafando aquele grito que era tão forte que causavam vibrações em suas mãos, causando uma dor angustiante.
Após alguns segundos, o grito parou, e as características demoníacas de Sarah foram vagamente sumindo, até sobrar a jovem nua, ensanguentada e desmaiada no chão.
Sábado — 02 de março de 1957
Sarah acordou deitada no sofá, completamente coberta por um lençol manchado do sangue que restava em seu corpo. Imediatamente se levantou e olhou ao redor, notando a sujeira em todo o cômodo, além de alguns objetos quebrados caídos no chão.
— M-meu deus, o-o que eu…
— Bom dia, Sarah.
A jovem olhou para trás, notando João com algumas ataduras nas mãos, e logo começou a chorar.
— M-me… m-me d-desculpa…
— Não chore, Sarah… — João a abraçou. — Vá tomar um banho e vamos comer.
Passaram-se alguns minutos até que os dois estivessem na cozinha comendo em silêncio. Sarah ainda estava triste por tudo que aconteceu, enquanto João gemia de dor por usar suas mãos machucadas do dia anterior.
— Pelo jeito, não vou conseguir usá-las por um tempo… Aquele grito foi assustador, hein? Haha…
— …
— Ei, não fique cabisbaixa, eu que pedi para você fazer aquilo.
— E-eu sei, mas…
— Agora sei que a tal mancha negra é real, além de que…
— O-o que aconteceu?
— Após a sua transformação, pareceu que você havia se tornado outra pessoa, ou melhor, coisa… Não sei se notou, mas aquele ser na minha frente tentou me enganar…
— Aquele ser é… Naamah, certo?
— Foi o que ela havia dito.
— Esse é o nome pelo qual me chamam no Inferno…
— Pode ser um chute arriscado, mas talvez você não se tornou um demônio.
— S-sério?
— Acho que Naamah possuiu o seu corpo através do pacto, lhe dando a capacidade de dominar os poderes dele, ou dela. É como se fosse um contrato… Tem alguma ideia sobre isso?
— Não me lembro muito bem do ritual. Minha mente ficou um breu e tempos depois acordei, sem saber o que havia acontecido…
— Hm… Se minha teoria estiver correta, o pacto fez com que você seja capaz de controlar os poderes demoníacos dessa tal Naamah, porém pode ser que ela consiga te controlar, assim como foi ontem.
— Quer dizer que eu… sou só um receptáculo?
— Sim. E, aparentemente, você tem a controlado bem, não?
— C-como assim?
— Por todos esses dias que me encontrei contigo, Naamah nunca cogitou me atacar, e olha que teve diversas chances, hein?
— Não tenho certeza quanto a isso…
— Tem algo que torna essa teoria inválida?
— Eu… não sei.
— …
— …
— Vamos olhar o lado positivo das coisas? Se essa teoria estiver correta, você poderá viver normalmente como uma humana.
— Será?
— É o que quero acreditar, hehe…
— …
— Aliás, pensando nessa teoria, faz muito mais sentido o plano dos outros membros da emissora.
— Eles pretendiam te usar como receptáculo de Satanás.
— Exato… Caso me tornasse o receptáculo dele, seria possível manter minha mente intacta? Será que eu ainda poderia ser quem sou, assim como você?
— …
— Bem, esse é um assunto muito complexo para se conversar enquanto se toma café da manhã…
— É…
— Sarah, recomendo que volte para o Inferno para não causar suspeitas sobre nós dois.
— V-verdade, se não me encontrarem lá por muito tempo, podem achar que…
— Nós somos cúmplices.
— …
— E nós somos mesmo, hahaha! Bem, só não quero deixar isso escancarado.
— …
— O que foi?
— C-como você pode?
— Posso o quê?
— Depois do que aconteceu ontem… Te machuquei e ainda assim… me trata com essa naturalidade…
— Sarah…
— …?
— Nós somos parceiros, não se preocupe com essas inconveniências.
— Mas…
— É apenas um machucado, ele vai se curar rapidamente, hehe.
— …
— …
João prendeu seu olhar para a jovem, que continuava bela mesmo após todos os acontecimentos anteriores, mas com uma diferença.
— Acabei de perceber, o seu cabelo não está mais pintado.
— É mesmo! Preciso pintá-lo!
— Você fica bonita com o cabelo assim, hehe.
— I-idiota, não é hora para falarmos disso… Sabe onde está minha bolsa?
— Está lá no quarto. Quer que eu pegue?
— Sim, lá tem um tonalizante rosa, vou usá-lo para tingir o meu cabelo.
— Certo, vou aproveitar e te emprestar algumas roupas minhas para que possa voltar ao Inferno.
— Obrigada, João.
Ele foi para o seu quarto e minutos depois voltou com algumas peças de roupa e a bolsa da jovem, que logo entrou no banheiro para se arrumar. Passado algum tempo, Sarah voltou vestida e com o cabelo rosa .
— É, acho que prefiro você de cabelo rosa.
— S-seu bobo…
— Enfim, acho melhor ir logo. Se possível, tente conseguir mais informações sobre os demônios, por favor.
— Ok…
Ambos caminharam até a porta do apartamento, o rapaz destrancou-a e rapidamente a moça saiu, mas antes que seguisse seu destino, ficou parada por um tempo na frente da moradia.
— João…
— Esqueceu alguma coisa?
O silêncio se instaurou por alguns segundos, até a abafada e sentimental voz da jovem cortar o ar:
— Até segunda…
— Certo, até…
Sarah se virou e saiu correndo, deixando o jovem pensativo. Após a cena estranha João trancou a porta e se encaminhou para o quarto para fazer algumas anotações em seu bloco de notas.