Segunda-feira — 04 de março de 1957
João acordou após ouvir diversos gritos na rua. A pior época de sua vida chegou: o carnaval.
Desde criança, nunca foi fã de festas repleta de pessoas. A sujeira que via pelas ruas, o tumulto contínuo e os barulhos altos batucando em sua cabeça o incomodavam bastante, e com o carnaval não era diferente.
Mesmo assim — por obrigação —, foi se arrumar para ir ao trabalho.
O homem se levantou, fez suas necessidades básicas e, um tempo depois, saiu de seu apartamento.
Com dificuldade, finalmente conseguiu chegar na rádio. Ao passar pela porta, notou Willian fazendo o que sabe fazer de melhor, que é ler.
Além dele, havia Caio tomando café sentado ao lado do leitor.
— Bom dia. Onde estão os outros?
— Bom dia, João. Eles estão no segundo andar se arrumando para sair.
— Vão sair? Não vamos trabalhar?
— É carnaval, querem tirar um tempo de descanso.
— Mas… são nesses eventos que a rádio deve trabalhar! Teremos muito conteúdo para comentar sobre!
— Não seja inconveniente, João. Dado os últimos dias, todos merecemos um pouco de paz… por mais que eu ache que o carnaval não é um bom momento para isso.
— Eu concordo completamente contigo, João. Não sei para que sair no meio dessa multidão de porcos e… e… — o de suspensório cortou sua fala antes que demonstrasse todo o seu repúdio pela humanidade. — Ah, deixa.
— Pelo jeito, vocês ficarão aqui, né?
— Eu recusei o convite de Ana. Em relação ao Caio…
— Nem precisaram perguntar.
— Entendo. Vou lá em cima ver os outros.
— JOÃO!!!
Virando-se para a escada, o jovem viu Ana, Sarah e Gabriel descendo apressadamente, sendo que a loira violentamente puxava o loiro.
Todos estavam produzidos para o carnaval. Ana — acostumada a vestir um vestido azul longo que cobria quase todo o seu corpo —, vestia uma curta saia branca completa de plumas, além de um top azul tampando sua região superior e uma bela maquiagem no rosto, que continha vários tons de azul e glitter.
Gabriel não abandonou o seu traje comum, mas Ana o forçou a utilizar algo, deixando-o em clima de festa. Então, optou por uma máscara que tampava seu rosto todo. Ela era branca com alguns detalhes em azul, e dava uma aparência assustadora ao rapaz.
Sarah utilizava um vestido curto tal qual o que costumava usar no dia a dia, porém, era completamente preto e cheio de brilhos. Semelhante a Gabriel, também usava uma máscara, mas dessa vez, uma preta com detalhes vermelhos que cobria apenas a região dos olhos, além de uma leve maquiagem que era pouco perceptível a longa distância.
Ao verem as mulheres, Willian inesperadamente caiu da cadeira. Já João ficou completamente impressionado com a beleza da moça de cabelo tingido.
— Willian?! — gritou a loira descendo as escadas para averiguar se o homem estava bem.
— O Gabriel parece um assassino em série, hahahaha! — Caio exclamou caindo na gargalhada, fazendo Gabriel correr até ele com raiva.
— O que achou, João? — perguntou a de cabelo tingido após descer as escadas. Para melhorar sua apresentação para o amado, passou a girar elegantemente, deixando o homem de sobretudo impressionado.
— C-caramba…
— Não gire assim, está mostrando muito! — Caio exclamou virando os olhos para o outro lado enquanto sofria uma tentativa falha de sufocamento do Gabriel.
— D-desculpa!
Enquanto toda a cena acontecia, Willian se levantou com a ajuda de Ana, e afirmou envergonhado:
— Se eu soubesse que você estaria assim, me arrumaria para ir com vocês.
— Seu bobo… Está com medo de que algo possa acontecer?
— Está tudo bem, Willian — afirmou o loiro segurando Caio pelo suspensório. — Estou indo para que nenhum homem dê em cima delas.
— Ah… obrigado, eu acho.
— E você, João, vai conosco? — Sarah perguntou se aproximando do rapaz.
— Desculpa, Sarah, mas não gosto do carnaval. Aliás, nem estou arrumado, então…
— Vamos, João! — exclamou pegando no braço dele. — O Gabriel não vai conseguir tomar conta de duas mulheres indefesas!
— Está duvidando de mim?
— Pior que concordo com ela, haha! — a loira exclamou.
— Se é assim… João, venha com a gente!
— Até você, Gabriel?
— Já que estou fazendo o sacrifício de ir, você fará também.
— Mas…
— Vamos logo, pessoal. Estão demorando tanto que o carnaval já vai acabar! — Ana esperneou puxando todos.
— E-espera, Ana! — Sarah gritou assustada com o puxão da loira. Rapidamente, segurou-se no loiro, que até aquele momento já havia soltado seu chefe.
— O que está fazendo, Sarah! — Enquanto puxado, o loiro aproveitou para agarrar João, criando uma “fila”.
— M-me solta, Gabriel!
— Boa sorte, garotos, vão precisar! — Willian acenou para eles, recebendo o dedo do meio do loiro como resposta.
Após alguns minutos andando, todos chegaram no destino de Ana: um bloco de carnaval. Lá estava rodeado de pessoas, barracas de comida, música muito alta e qualquer outra coisa que pudesse ter.
Antes que se aproximassem do veículo que continha os cantores, os quatro membros da emissora foram cercados por desconhecidos. Eram homens dando em cima de Sarah e Ana, mulheres (e homens) dando em cima de Gabriel, e João sendo completamente ignorado.
Enquanto Sarah recusava educadamente os rapazes, Ana ameaçava-os, gritando que era comprometida. Gabriel saiu correndo do grupo sendo perseguido pelos desconhecidos, sendo o primeiro a se perder.
— Cadê o Gabriel?! Era para estar nos protegendo dessa gente! — Ana gritou com raiva.
— De nós quatro, ele foi o que mais atraiu gente, então teve que fugir, hahaha! — João gargalhou contagiosamente.
— Confesso que estou ficando com medo daqui…
— Está tudo bem, Sarah. Em breve, pegarão o jeito da coisa! Deixem o Gabriel se virar e vamos aproveitar!
— J-João, posso segurar sua mão?
— Claro, está complicado andar por aqui…
Sarah apertou firmemente a mão do rapaz e os três continuaram o seu trajeto até o veículo do bloco.
Passada algumas horas, Gabriel se reencontrou com o grupo, mas logo teve que se separar novamente. Dessa vez, junto de Ana, que estava bêbada e andando por aí sem se preocupar com nada. No final de tudo, João e Sarah ficaram sozinhos, como já estavam acostumados.
— Agora que estamos sozinhos, vamos sair daqui!
— Ué, Sarah, não estava gostando?
— Claro que não! Não me dou bem em lugares cheios. Vamos embora daqui, por favor!
— C-calma, estamos saindo agora mesmo..
Os dois seguiram um caminho para a saída do bloco. Desviando-se das pessoas que flertavam com Sarah, eles finalmente saíram de lá.
— Ufa, finalmente saímos de lá. Nem eu estava aguentando — disse o jovem ofegante.
— Sim…
— E então, vamos voltar para a emissora? Ou tem algo em mente?
— Na verdade… gostaria de sair contigo a sós.
— Caramba, nossos encontros estão se tornando rotineiros, hahaha!
— Dessa vez é sério, João… Vamos para a praça.
— Sério? Ok, então.
Já estava anoitecendo quando finalmente chegaram no destino. Devido à festança, não se via pessoas lá além dos dois jovens, que aproveitaram o vazio para se sentarem no banco mais “confortável”.
— O que queria dizer, Sarah? Parece aflita, aconteceu algo no bloco que não vi?
— João, eu…
— Estou ficando preocupado, o que houve, Sarah?
— Preciso te avisar… preciso desabafar contigo…
— Avisar? Desabafar? Do que diabos você está falando?
— Acho que…
— Sarah, está me assustando… Fale rápido, o que acon…
— Acho que fui descoberta.
— O quê?
— Tenho quase certeza de que… fui descoberta. No Inferno, após voltar de sua casa, Caio estava me esperando no local onde costumamos aparecer…
— O… Caio?
— Era como se estivesse me esperando… Ele me fez perguntas estranhas após minha volta… as roupas que estava vestindo, o que aconteceu no dia que fui para sua casa…Acabei ficando com medo e…
— Por que não contou que passou a noite comigo, como havia dito no dia anterior?! Sobre as roupas, poderia ter mentido!
— Estava desesperada! Não sabia o que fazer, pois pretendia voltar sem que os outros percebessem. Quando o vi lá… notei que tinha algo de errado…
— Droga! Caio não fez nada contigo, né? Ele te machucou?!
— Sobre isso… tentei fugir de lá o mais rápido possível, omiti o máximo que pude, mas ele provavelmente não aceitou minhas respostas.
— Merda…
— Antes que pudesse sair de lá, Caio me segurou pelo punho e falou… — em meio às lágrimas, a jovem de cabelo tingido continuou. — “Você não teria coragem de nos trair, certo?”.
— … — João ficou calado após ouvir a frase. Naquele momento, pensava que Caio definitivamente sabia sobre a descoberta do jovem, e além disso, sabia que Sarah era uma cúmplice. Mesmo que uma resposta concreta não tenha sido dada, era possível saber o que estava escrito nas entrelinhas: João foi descoberto.
— Neguei e disse que precisava me encontrar com Ana. Ele me soltou, mas… tenho certeza de que sabe.
— Como… Hoje de manhã, tudo parecia normal, por quê…?
— No dia seguinte, quando me reencontrei com todos, Caio agia normalmente, e fingiu que não tinha se encontrado comigo. Na verdade, nem cogitou contar para os outros que eu poderia ser uma traidora.
— …
— Você já deve ter notado que está em perigo… João, fuja o mais rápido possível daqui!
— Sarah, você…
— Caio já deve ter contado para eles, e mesmo que não pareça, os membros da rádio são inteligentes…Todos já devem ter noção de que sou uma traidora e que o plano deles falharam. Eles vão me matar, e vão te matar…… Você precisa fugir…
— Sarah, por favor… pare de… — João tentava dizer, mas não conseguia devido ao baque que sofreu com a notícia. Naquele momento, pensava que, além de se entregar, entregou sua aliada. Tudo por causa do seu mal planejamento… tudo por sua culpa.
— João… Depois de tudo isso, preciso saber…
Ele não conseguia dizer mais nada.
— Depois de tudo o que aconteceu… você me odeia?
— O-o quê?
— Sinto que… mesmo após nos tornarmos cúmplices, têm algo em ti que me faz pensar que… você me odeia.
— …
— João… mesmo que eu morra, preciso saber… preciso ouvir de ti… que me perdoou… Por fa… — Antes que completasse, Sarah foi interrompida por um abraço do rapaz de sobretudo.
— Não te odeio, Sarah… Mesmo que pense nisso, nunca passaria pela minha cabeça esse tipo de coisa…
— Obrigada, João… Obrigada…
Sarah devolveu o abraço ao rapaz, que sentia lágrimas caírem pelas suas costas. Ficaram assim por alguns minutos, em silêncio, ouvindo nada mais que o barulho das festas de carnaval se distanciando mais e mais da praça.
De repente, João sentiu o abraço de Sarah apertar, e ouviu uma frase que ficaria em sua mente durante muito, muito tempo.
— João… não quero morrer…
.
.
.
Após algumas horas, João deixou Sarah na frente da emissora, que estava vazia.
— Tem certeza de que não quer passar os próximos dias no meu apartamento?
— Ficaria mais óbvio para Caio que tem algo acontecendo entre nós… Deixaria mais suspeitas ainda…
— Tem a possibilidade dele não ter contado para os outros sobre. Poderíamos tentar!
— Se eu ficar contigo por mais algum tempo, todos começarão a suspeitar de mim… Isso vai acabar me colocando na forca…
— E se fugíssemos?!
— João… Você tem um compromisso com essa cidade, não tem?
— …
— Disse que precisava salvá-la… E não posso te impedir de fazer isso…
— Mas…
— E, no final de tudo, eu não seria de grande ajuda, hehe…
— …
— Tentarei passar os próximos dias com Ana no Inferno, isso pode me proteger por algum tempo…
— Entendo…
— Então, é isso. Boa noite, João.
— Sarah.
— O que foi?
— …
— João?
— Te vejo amanhã, certo?
Após a pergunta, Sarah abriu um pequeno sorriso e, buscando manter uma expressão confiante, respondeu:
— Sim!
João esperou a jovem entrar na emissora e caminhou lentamente até seu apartamento.
A cada passo que dava, lembrava de tudo que fez com Sarah.
O primeiro contato, onde encarou pela primeira vez aquela jovem diferente.
A ajuda com as caixas de equipamentos, que tornaram os dois levemente mais íntimos.
O primeiro encontro no parque de diversões.
O balanço e a brincadeira boba de corrida de cavalos.
O restaurante e seu amado tiramisú.
As discussões e intrigas na rádio, que resultaram num olho roxo do jovem.
A visita em sua casa, que logo depois se tornou uma tentativa falha de assassinato.
O passado aterrorizante e traumatizante da moça, que lidou com a morte de sua família ainda criança.
A aliança dos dois contra seus colegas.
Os momentos bons e ruins que ambos passaram juntos…
A cada passo que dava, João derramava mais e mais lágrimas.
Chegou no prédio onde morava e entrou. Antes de subir as escadas, Dona Maria apareceu assustada com a aparência de João:
— Jovem, por que está chorando?
— …
— Aconteceu algo com a moça de antes?
— Não, Dona Maria… espero que não…
— Ela terminou contigo?
— Hehe… quem dera se fosse apenas isso… infelizmente, é uma situação muito pior…
— Meu Deus… Irei orar por ela, João. Ficará tudo bem.
— Obrigado, Dona Maria, boa noite.
— Boa noite, jovem.
João subiu as escadas, chegou no seu apartamento e entrou. Após trancar a porta, caiu de joelhos e voltou a chorar.
Abatido, o rapaz teve uma ideia um tanto controversa. Como último ato, João pôs-se a orar:
“Senhor… é irônico pedir isso, mas… por favor… proteja Sarah… Mesmo que tenha se desviado de seu caminho e se tornado um demônio… mesmo que seja uma pecadora.. ela… não teve escolha…. Lhe imploro… proteja ela… por favor…”
Após a oração e o choro, João dormiu ali mesmo no chão, devido ao cansaço que passou do dia.
Como acreditava, o carnaval era, de fato, a pior época de sua vida.
Terça-feira — 05 de março de 1957
O rapaz acordou cedo devido a uma ligação inesperada. Lentamente se levantou do chão e olhou para o relógio na parede: eram 05h.
Com dor e cansaço, caminhou até o telefone que estava em seu quarto. Após atender, ouviu Ana gritando de desespero:
— João! João!
— Ana?
— A Sarah… ela sumiu!