O papel mostrado por Galliard assustou Noelle. Ela não queria acreditar no que via.
— Você sabe o que isso significa?
Enquanto isso, Saki, que estava deitada no sofá, se levantou para ir ao banheiro, esquecendo totalmente que Noelle ainda não tinha voltado.
— Mais ou menos, vi algo parecido quando tava mexendo nas coisas da mamãe… Aquelas imagens eram assustadoras para mim.
— Essas vinhas negras no braço e a cor preta se misturando com sua mana… Isso são traços de-
— Um demônio — interrompeu Noelle, deixando um silêncio no ambiente.
Os murmúrios dos dois conversando chamaram a atenção de Saki, que ouviu toda a conversa. Ela tentou não se desesperar, respirou fundo e manteve sua mente firme. O fato de já ter um problema desse tamanho a fez ter certeza que não deveria ter ido até esse mundo.
— E agora? O que vai acontecer? — Seus lábios tremiam de medo sem saber o que estava por vir.
— Se não fizermos nada, ela será possuída e pelo bem do mundo, essa é a última coisa que pode acontecer… mas essa gema pode impedir isso, só preciso de tempo para deixá-la estável — as palavras de Galliard a confortaram por um instante e mesmo assim, Noelle ainda se preocupava.
— Como assim “estável”? E por quanto tempo?
— Eu te explico mais tarde, mas basicamente, as propriedades da gema ainda estão desordenadas, se continuar assim, ela pode nos dar o efeito contrário do que queremos — afirmou Galliard — Um dia é tudo que eu preciso. Por ora, vou ao menos estabilizar sua temperatura.
— Certo!
Ao caminhar para fora do quarto, Noelle sentiu que a tormenta em seu coração havia cessado por um momento e que pela primeira vez na vida, sua mente não estava barulhenta como de costume.
Ela voltou para sala e viu Saki entediada no sofá, apenas jogando uma almofada para cima.
— Finalmente você voltou.
— Desculpe, devo ter comido algo que me fez mal…
”Mesmo que eu tenha comido há dias”
De repente, Galliard apareceu na sala com uma forma de alumínio em mãos.
— Desculpem a demora hahaha!
— Esse cheiro… — Um cheiro familiar vem aos seus sentidos, algo que não sentia há muito tempo.
Noelle sentiu o cheiro de algo doce e suave, mas não reconhecia.
— Isso é bolo de chocolate?! — perguntou pulando do sofá.
— Isso aí! — respondeu Galliard.
—Nossa! Tem tempo que eu não como um — disse Saki com um tom de surpresa e empolgação — Tem tempo que não como um!
— Bolo de… Chocolate?
— Venha! Pegue um pedaço.
Saki e Noelle se aproximam e pegam um pedaço do bolo.
Elas o saboreiam lentamente.
Saki ficou maravilhada pelo sabor, maciez e textura, aquilo fez com que se lembrasse dos momentos em que seu pai cozinhava para ela na infância.
Ao seu lado, Noelle chorava enquanto aproveitava cada pedaço daquele bolo.
— Isso tá ótimo! Não é Noelle?
— SIM! Tá uma delícia! — respondeu Noelle emocionada ao limpar suas lágrimas rapidamente.
Saki havia percebido que tinha algo errado, mas achou melhor não comentar nada agora.
— Tem alguma coisa diferente nesse bolo… ele parece mais doce… Não sei dizer — olhou desconfiada.
— Ah! Sei do que está falando, uma pena que seja um segredo HAHAHAHAHA!
— AH, QUALÉ! Eu preciso da receita disso aqui! — gritou Saki inconformada.
Galliard riu junto a Saki e Noelle.
Um momento tranquilo após sua breve caminhada seria essencial para o que estava por vir.
Um tempo depois, Saki estava largada no sofá junto a Noelle conversando amigavelmente.
— O que acha que o Akira tá fazendo agora? — perguntou Saki
— Eu não sei… nós nos conhecemos há pouco tempo, não tem como saber…
— É… Você tem razão…
Um silêncio se perpetuou por alguns segundos, até que as duas resolveram falar algo ao mesmo tempo.
— Sa- — elas se olharam constrangidas e Saki resolveu tomar a iniciativa
— Sabe… O que você faria se um demônio entrasse no seu corpo? — perguntou tentando disfarçar sua voz trêmula e seus lábios angustiados.
Noelle entrou em choque. Sem saber o que dizer, ela começou a gaguejar na tentativa de dar uma resposta.
— E- E- Eu, C- Como assim? P- Porque isso de repente?
— É só uma possibilidade… Pode ter acontecido na floresta…
— S- Se isso acontecer… Eu… não sei o que faria…
— É, hahaha! Acho que não tem muito o que fazer, não é? — mesmo tentando levar a situação de forma leve, o coração de Saki ainda pesava. O sentimento de ter falhado com seu pai enchia seu peito a cada minuto.
— Bom! Já está um pouco tarde — Galliard surgiu com seu sorriso resplandecente, interrompendo a fala de Saki — Se quiserem dormir, eu já preparei o quarto de vocês.
— Nosso quarto? — perguntou Saki.
— Sim! No andar de cima.
— Certo! Muito obrigada!
— Não há de quê! Tenham uma boa noite! — disse Galliard subindo as escadas para seu quarto.
— Boa noite! — respondeu as duas educadamente.
— É melhor irmos dormir, né? — falou Saki se levantando.
— Você não ia dizer alguma coisa?
A seriedade tomou seu semblante, e respondeu desviando o seu olhar para as escadas.
— Ah, não era nada.
Saki e Noelle subiram as escadas e abriram a porta do quarto.
Dentro havia duas camas separadas e uma decoração similar ao resto da casa, exceto pelo fato de que as tochas tinham uma chama cinza, fazendo com que o quarto não ficasse tão claro, nem tão escuro.
Elas entraram no quarto e foram até suas camas onde em cima tinha pijamas dobrados para usarem.
Olhando ao redor, acharam uma porta ao lado da cama que ficava à esquerda.
Abrindo-a, encontraram um banheiro.
— Se quiser, pode ir primeiro
— O- Obrigada… — Noelle pegou sua única roupa em cima da cama e entrou no banheiro.
Ao sair do banheiro, com vergonha de estar vestindo uma roupa a qual não estava acostumada, ela encontrou Saki revirando sua mochila desesperada à procura de algo.
— Cadê? Cadê? Ah, tá aqui…
— O- O que é isso? — perguntou curiosa.
— Isso? — ela mostrou o gravador de seu pai para Noelle — é só um presente do meu pai.
Os olhos de Noelle se tornaram mais sem vida do que o comum, ela esfregava seu nariz dizendo:
— Então deve ser bem importante para você, não é?
— É… acho que sim… — Saki olhou sorrindo para o gravador, ela admirava seu pai, e tudo que se relacionava com ele era importante.
As duas ficaram caladas por um tempo, Noelle não sabia o que dizer e mesmo se soubesse, não queria continuar com esse assunto.
— Bom, acho melhor eu ir logo — disse Saki se levantando e colocando o gravador em cima da cama.
Saki entrou e ligou o chuveiro. A água quente escorria pelo seu corpo, relaxando seus músculos, tensos com todas as emoções que Saki escondia.
Em um momento de vulnerabilidade do ser humano, onde todos deixam seus sentimentos escaparem, ela pensou:
“Eu não posso deixar que isso me atrapalhe. Pai… seja lá o que você quer, eu não posso te decepcionar”
Ao terminar seu banho, Saki saiu do banheiro com uma toalha em seu ombro.
— Cara! O banho tava ótimo! — falou com uma expressão relaxada e aliviada
Saki olhou para a cama e percebeu que Noelle estava dormindo.
Ela foi silenciosamente até sua cama e ao lado dela viu um interruptor escrito “ON” e “OFF”.
Vendo isso, Saki desligou o interruptor fazendo as chamas de todas as tochas se apagarem.
Com as luzes desligadas, deitou-se virada para cima.
— Essa é a primeira vez que durmo nesse mundo… O que meu pai quer que eu faça aqui? Eu não consigo entender.
Ela adormeceu após alguns minutos.
No outro dia, Saki acordou, mas não encontrou Noelle na cama ao lado.
“Pra onde ela foi?” pensou esfregando seu olho.
Ela se levantou e foi ao banheiro.
Depois de ter se arrumado, ela saiu do quarto e procurou Noelle pela casa.
Passando pelas escadas, procurou na sala, mas não a encontrou.
De repente, o barulho de aço caindo no chão, chamando sua atenção. Ela andou em direção ao barulho e encontrou Galliard usando um avental branco e um chapéu de chefe de cozinha.
— Galliard, Bom dia — disse enquanto acenava.
Com seu sorriso gigante, Galliard respondeu — Bom dia, Bela Adormecida, como foi a noite?
— Tranquila, eu acho… — Saki paralisou por alguns segundos e raciocinou o que Galliard acabara de dizer — Calma aí, bela adormecida?
— Sim — sem entender, Galliard perguntou — não conhece a história?
— Conheço, é claro. Mas como VOCÊ conhece?
— Ah sim! Foi uma das histórias que seu pai me contou sobre seu mundo!
— Do nosso mundo?
— Espera um pouco — disse Galliard colocando seu avental e chapéu na cadeira.
Saki não acreditou nas palavras que tinha acabado de ouvir, as histórias que foram contadas a ela eram apenas contos de fadas, mas da forma com que Galliard as citou, era como se fossem reais.
Galliard voltou com algo em suas mãos.
Ao ver aquilo, Saki ficou mais uma vez sem acreditar.
— O que?! — disse Saki espantada — Esses sapatos de cristais.. Como você os tem?
— Foi um presente do velho! HAHAHAHA! — gargalhou — São os sapatos da Branca de Neve. Ou será que é da Cinderella? Eu sempre confundo as histórias.
— Acho que perdi todo o meu conceito de conto de fadas agora…
— Ah, não seja por isso — falou enquanto guardava os sapatos — por aqui tem alguns contos de fadas também, quer ouvir?
— Talvez outra hora…
— Como quiser! — botando seu avental de volta, ele pergunta — Vai comer alguma coisa? Fiz alguns pães.
— Claro, claro — disse Saki chegando mais perto da mesa e vendo os pães e frutas que estavam numa cesta — mas antes, você viu a Noelle? Tô procurando ela desde que acordei.
— Na verdade, ela já comeu… — com uma expressão levemente preocupada, continuou — bem pouco, acho que aconteceu alguma coisa com ela.
— Onde ela tá?
Apontando para cima, Galliard respondeu — Lá em cima.
Saki olhou para a janela ao lado e percebeu uma escada de metal.
— Eu vou lá falar com ela…
— Boa sorte.
Ela foi até a janela e se pendurou em uma das barras da escada.
Ao subir as escadas com medo de cair, Saki viu apenas um pouco do cabelo de Noelle, cabelo esse que antes era sujo e bagunçado, agora estava limpo e sedoso, com pontas aparadas e um pouco mais curto.
Com um pouco de dificuldade, Saki chegou ao telhado e a encontrou olhando para o nada.
Suas roupas também mudaram, os velhos trapos foram substituídos por um vestido azul acinzentado e coberto por um manto curto de cor branca.
Ela estava sentada na beira do telhado, apoiando seus braços ao seu lado enquanto o vento balançava seu cabelo.
— Noelle!
Noelle se assustou e olhou rapidamente para o lado.
— O-Oi, Saki — envergonhada, tentou esconder seu rosto com o cabelo.
Saki sentiu que algo estava estranho, como se faltasse algo em Noelle.
— Essas roupas, Galliard que te deu? — perguntou se sentando ao seu lado.
— Sim…
O vento passava suavemente entre elas, fazendo suas roupas e cabelos balançarem.
Com a calma e silenciosa brisa que fazia, elas observavam os telhados das casas que estavam à sua vista, juntamente com uma ampla visão da cidade.
O grande contraste entre as casas traziam a beleza da cidade.
A tecnologia avançada somada às estruturas mágicas a faziam ser única.
Saki olhou para Noelle, com olhos baixos e vazios, e teve a mesma sensação de antes, algo faltava.
— Você cortou o cabelo… — falou Saki em um tom levemente surpreso.
Botando a mão por cima das orelhas, ela tentou esconder o cabelo — Descu…
— Ficou lindo! — Saki interrompeu com um sorriso no rosto.
Os olhos de Noelle se abriram, o azul em seu olhar ganhou brilho.
As mãos que taparam seus ouvidos se abaixaram, o som dos pássaros, que parecia abafado, chegou a ela de forma clara.
Com lágrimas nos olhos e um sorriso no rosto, Noelle se virou e disse:
— Obrigada!
Surpresa, os olhos de Saki se arregalaram. A sensação de que algo faltava não mudou, mas ela sabia que algo estava diferente, pelo menos, de forma positiva.
— Não foi nada! — disse com um sorriso gentil.
Galliard que continuava na cozinha, porém perto da janela, estava de braços cruzados ouvindo tudo.
Ele deu uma leve risada e saiu dali.
Saki e Noelle ficaram no telhado da casa por mais algum tempo, falando sobre como a cidade era bonita e reparando nos detalhes de cada lugar.
Ao saírem dali, elas voltaram à cozinha.
Galliard estava chegando com algo em sua mão e antes que elas o vissem, ele o guardava em seu bolso.
— Noelle, Saki! Eu já estava indo chamar vocês — disse enquanto puxava uma cadeira — Você ainda não comeu não é mesmo? — se referindo a Saki
— Verdade! Já tinha me esquecido — respondeu enquanto sentava e pegava um pão.
— HAHAHA! — gargalhou — Você deve ser mesmo filha daquele velho! Nunca vi alguém além dele esquecer de comer! — disse rindo ao andar em direção a pia.
— Hm? Como assim? — perguntou com um pedaço de pão na boca.
— Nada demais!
— Senhor Gailliard! — Ainda de pé, Noelle o chamou.
— Sim? — respondeu se virando para ela.
— Já se passou um dia… certo? — Noelle parecia nervosa e começou a suar frio.
O semblante de Galliard muda subitamente.
Ele colocou a mão em seu bolso e retirou aquilo que havia escondido.
Saki olhou confusa para os dois — O que? O que foi? — disse engolindo a comida.
Então Galliard enfim revelou a gema na qual estava trabalhando, uma gema negra e brilhante, que outrora havia sido branca.