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— Você quer invocar um demônio?! — Jéssica arregalou os olhos.


Mical permaneceu calada, mas estremeceu só de imaginar.
Renato observava em silêncio também.
Estavam todos na sala, sentados no chão, sobre o tapete. Clara bebia vinho de uma taça. Na TV, o jogo Sonic the Hedgehog estava pausado.


— O termo correto é evocar — respondeu a súcubo, com expressão neutra e bebericou do vinho.


— E qual seria a diferença?! — Jéssica deixou um pouco de raiva escapar na voz.


— Invocar é quando você chama alguma coisa pra dentro de você; evocar é quando chama para fora, oras. Basicamente, o bicho aparece, mas não entra na gente. Totalmente seguro.


— Não me parece muito seguro!


— Preconceito da sua parte! — Clara pareceu ofendida. — Não é porque somos demônios que somos ruins.


— O que você acha disso, Renato?— Jéssica mirou os olhos castanhos nele.


— Bom, a Clara disse que evocar esse demônio pode ajudar a trazer respostas sobre mim, então…


— Pois bem! A casa é sua e eu não vou mais discutir! Mas não esperem que eu participe disso!


— Eu entendo.


— Tome cuidado, por favor. Demônios são traiçoeiros. Vamos, Mical. Temos algo a fazer.


As duas saíram da sala e foram para o quarto de hóspedes.


— Caramba! Eu devia mesmo ter deixado essa garota ser levada pelos Atalaias! Chata demais! Só sabe reclamar!


— Ela tá com medo. E, pra falar a verdade, eu também.

*


— Lembra dos símbolos? — perguntou Jéssica, quebrando um giz no meio e entregando uma das metades para Mical.


— Lembro sim!


Mical pegou o pedaço de giz branco e se aproximou da parede. Hesitou um pouco, mas logo começou a desenhar.
Jéssica subiu na mesinha de cabeceira e se ocupou de desenhar no teto.
Eram símbolos complexos, com triângulos, pontos, linhas se cruzando. Às vezes eram algo parecido com uma runa, às vezes eram conjuntos de cruzes com estrelas em volta. Também havia frases em latim como “sicut in caelo et in terra” e “libera nos a malo”.


— Pronto! — disse Jéssica, orgulhosa. — A barreira foi feita.

*

Renato havia afastado os móveis da sala para os cantos, para abrir espaço, e enrolou o tapete. Pisou, descalço, sobre o piso frio. E, assim como Clara havia pedido, ele se escondeu atrás do sofá. Estava escuro. Sua respiração estava rápida.


Clara Lílithu acendeu uma vela preta, que projetou sombras nas paredes, desenhou um triângulo no chão e pronunciou algumas palavras em um idioma estranho, com sons sibilantes semelhantes ao sibilo das serpentes. Seus olhos pareceram mais vermelhos do que nunca, e brilharam, intensos, no escuro.
A atmosfera começou a ficar densa. Até mesmo Renato podia sentir o perigo aumentando em ondas, e cálices de terror sendo derramados. O ar pareceu mais frio. Então, subitamente, Clara parou e pigarreou. Ela franziu o cenho, com raiva. Olhou na direção do quarto de hóspede, onde as duas garotas estavam.


— Sério? Mas que falta de educação! — reclamou ela.


— O que houve?


— Nada, Renato! Só essas duas “pé no saco” do nazareno que sabem 70 vezes 7 maneiras de me irritar! Vamos continuar!


Renato teve a impressão de que uma veia iria estourar na testa da súcubo, mas nada aconteceu. Ainda. O ritual prosseguiu.
Um cheiro desconhecido tomou o local. Renato, que permanecia escondido, espremido entre o sofá e a parede, sentiu o gosto de sangue na boca. Ele se viu tomado por uma raiva animalesca. Não sabia de onde vinha, mas ela subia pelos pés, fazia o estômago se embrulhar, atingia o peito e fazia fervilhar a cabeça. Sentiu dor atrás dos olhos.


Viu, em sua mente, lampejos de um homem de rosto bonito, com uniforme militar cheio de medalhas, sorriso branco com dentes alinhados; e com olhos que brilhavam como os de um predador. Ele pôde ver a alma podre escondida dentro da carne, abaixo dos ossos, como num raio-x. Viu a maldade emanando do homem, como numa aura. Fedia a enxofre e carniça.
Falava, em cima de um palanque, sobre justiça, liberdade, moralidade, à multidão extasiada que aplaudia e ovacionava.
Em seguida, viu vislumbres de cadáveres empilhados em valas sujas, ou queimando nas ruas entre o lixo, ou sendo roídos por ratos. Viu tiros, explosões, gritos. Ouviu uma criança chorando. Alguém gritou “por favor”, antes de ser calada por disparos.


Se lembrou de quando, ainda criança, ouviu a voz de sua mãe dizer o mesmo “por favor” antes daquilo acontecer. Uma lágrima correu por sua bochecha. A raiva aumentou. Cerrou os punhos. Sentiu desejo de socar aquele homem de seus pesadelos até a morte.
Renato chacoalhou a cabeça. Estava suando frio. Mirou nos dois olhos vermelhos da súcubo e, de alguma forma, se sentiu um pouco seguro. “Lembrei do meu maior desejo” pensou ele.
A fumaça da vela tremeu no ar e começou a formar padrões bizarros. Poderia ser apenas pareidolia, mas a fumaça parecia ter o formato de um rosto. Ou de muitos rostos, a maioria em expressão de sofrimento.

*


As duas irmãs, juntas, sentadas no chão uma de frente para a outra, de mãos dadas, rezavam baixinho. As paredes, ou os símbolos nelas, pareciam vibrar. Uma rachadura surgiu no teto. O chão ficou mais gelado e tremeu um pouco, como se sofresse uma batida de baixo para cima.


— Está tentando forçar a entrada — sussurrou Mical, com voz trêmula.


— Não vai conseguir — respondeu Jéssica, entredentes.

*

— Abigor — Clara sibilou. — Não seja tímido.


— Clara? — Uma voz grave veio da escuridão. — É você mesmo?


— Mas é claro que sou eu. Quem mais seria?


Então a fumaça se concentrou num ponto, girando num formato de esfera do tamanho de uma bola de futebol, e ficou densa, como a fumaça negra expelida das chaminés das fábricas, e uma perna saiu de dentro dela, e depois outra perna. Então surgiu um tronco e, em questão de segundos, um homem surgiu.
Ele era baixo. Talvez não tivesse mais do que um metro e sessenta, e usava um par de óculos de grau sobre os olhos.
Ele se aproximou de Clara e inspirou.


— Nossa! Que saudade desse cheiro agradável!


— Você lisonjeiro como sempre! — disse Clara, parecendo corada.


Renato franziu o cenho.


— Mas algo me incomoda — disse ele. — Acho que sabe o que é. Não é muito educado ter uma barreira enoquiana quando chama um demônio, é?


— Não ligue para isso. São só duas garotinhas assustadas que não sabem aproveitar as oportunidades que a vida oferece.


— Sei — Abigor fez uma careta, como alguém que prova limão. — Aliás, por que me chamou? Aposto que precisa de um favor.


— Ah, e eu não posso simplesmente ter ficado com saudades?


— Não.


— Bom, como você deve ter suspeitado, eu preciso da sua ajuda com algo.


— Entendo. E o que este humilde demônio da guerra pode fazer por uma bela súcubo como você, Clara Lilithu? — disse ele, caminhando até a garrafa de vinho.


— Preciso que investigue algo para mim. Ver se descobre alguma coisa a respeito de uma outra coisa que tem roubado meu sono de beleza.


— E por que eu? Minhas especialidades não são exatamente investigação.


Ele bebeu um gole no gargalo mesmo.


Clara sorriu.


— Como você sabe, eu não ando tendo contato com muitos demônios ultimamente e, bom, dos que eu ainda posso me aproximar de forma segura, você é o mais inteligente. Além, é claro, que você tem excelentes contatos lá embaixo e aqui em cima.


— É, eu sei. Eu só queria ouvir você falar. — Ele pôs a garrafa já vazia de volta no chão. — Mas a gente não se vê há quanto tempo? Desde aquela coisinha no final dos anos trinta? Como pode ter certeza que eu não passei pro lado do Satanakia?


— Eu confio no seu bom senso.


— Entendi — ele sorriu. — E o que quer que eu investigue?


— Renato. Pode aparecer.


Abigor franziu o cenho e fez uma careta de alguém confuso.
Renato se levantou e acendeu a luz.


— Mas o que…


— Não sentiu a presença dele, né? — Clara disse isso quase se gabando.


— Ocultou ele com magia? — Abigor se aproximou de Renato.


O garoto se afastou instintivamente, mas acabou por permitir a aproximação após um olhar severo de Clara.


— Não. Já encontrei ele assim.


— Levou ele até a Alana?


— Levei.


— E o que ela disse.


— Nada. Ela só puxou um trinta e oito e tentou encher a cabeça dele de furos.


— Ah, eu adoro essas armas! — Ele suspirou apaixonadamente. — Mas e depois?


— Alana tentou escrever um tipo de mensagem com o próprio sangue, mas não conseguiu completá-la. Escreveu “Arin” e depois morreu.


— Arin? E o que pode significar? — Abigor parecia cada vez mais interessado.


— Isso, meu caro demônio das guerras, é o que eu quero que você descubra. Parece que Alana viu alguma coisa presa em correntes de ouro e uma cela de diamantes e, pelo jeito, essa coisa matou ela.


— Ouro e diamantes, hein? Diamantes são a coisa mais dura da criação; se arrumar os átomos direitinho, nem as entidades mais fortes poderiam quebrá-lo. E o ouro, suponho que seja…


— Ouro hiperdecaído. Também suponho.


— Ouro hiperdecaído? O que é isso? — Renato achou que era hora de entrar na conversa.


Abigor respondeu com uma careta silenciosa de desprezo.


— Ouro hiperdecaído é uma variedade do ouro. Um isótopo, como chamam hoje em dia. É extremamente raro. Acho que nessa galáxia só existem uns três gramas — disse Clara. — O que torna esse isótopo do ouro especial é que ele é capaz de anular poderes espirituais, magias, feitiços, maldições, e qualquer coisa desse tipo.


— Que fofo — disse Abigor —, você responde o primata.


— Falar com primatas não é, basicamente, o que você faz de melhor?


— Primatas importantes, com acesso a armas nucleares. Ninguém liga pros homo sapiens da ralé. Aliás, promover o genocídio da ralé é o que eu faço de melhor.


Clara lançou um sorriso forçado.


— E aí? Vai me ajudar?


— É claro. Eu jamais diria não para os amigos.


— Fico agradecida.


— Não precisa. Como sabe, vai custar um preço.


— Eu sei. E o que vai querer?


— Uma noite lancinante de sexo com uma súcubo seria um bom preço.


— Hum… não. Escolhe outra coisa.


— Uma apalpada no peito?


— Hum… deixa eu pensar. Ah, tudo bem! Acho que isso dá pra aceitar.


— Okay! Negócio fechado!


— Fechado.


— Seria bom se você me deixasse levar esse seu primata para fazer alguns testes…


— Não vai rolar. O primata é meu.


— Eu entendo. — A imagem de Abigor começou a se tornar ofuscada pela fumaça e seu corpo foi ficando transparente — Ah, e quase me esqueci! Satanakia está mais louco do que o normal! Tome cuidado, Clara Lilithu! — disse e desapareceu.

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Olá, eu sou Max Sthainy!

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