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Mical enfiou-se embaixo da cama, local para onde sempre ia quando precisava se sentir segura. Ali ela poderia, finalmente, respirar em paz, longe do mundo assustador cheio de pecados, demônios, monstros terríveis, vícios, maldades e longe até das virtudes distorcidas, coisas que ela, com seus oito anos, nem deveria saber da existência. Mesmo assim ela sabia.

Para ajudar na proteção, ela cobriu os olhos com o cobertor de retalhos feito por sua avó. Ainda tinha o cheiro dela. Era como se Dona Maria voltasse do céu só para abraçá-la e dizer que todos os pesadelos estavam longe.

— Minha filha não é uma bruxa! — Essa foi a voz de seu pai.

A porta do quarto estava trancada, numa tentativa de manter os temores o mais longe possível, mas a voz atravessava a madeira e chegava aos ouvidos assustados da garotinha. Apesar de tudo, a voz tinha certa ternura.

— Você não tem como saber, Daniel! Ela também é minha filha! Ela cresceu dentro de mim! Só eu sei o que senti quando trazia esta menina ao mundo! — Essa foi a voz de sua mãe, Dona Ester. Era carregada com tristeza.

Pai e mãe discutiam na sala. Eles não sabiam que Mical os ouvia com olhos lacrimejados, enrolada no velho cobertor de retalhos, embaixo da cama.

— Minha filha é uma benção de Deus! Já falei! Não há dúvidas quanto a isso! O apóstolo profetizou que eu teria duas filhas abençoadas por Deus e que elas seriam motivo de alegria!

— E quanto a Jéssica, hein? Ela sim é uma garota centrada no que a bíblia diz! Ela sim parece ter uma luz do Senhor! — retrucou a mãe. — Além do mais, Daniel, a profecia não disse que todas as suas filhas seriam abençoadas! Meu útero é bom! Ainda dá pra ter outra filha!

— O que está dizendo, Ester?! Como se atreve a sugerir que minha semente daria luz a algo ruim?!

— Ouviu as perguntas que ela fez! Você ouviu! — Ester ergueu a voz — Aquilo era dúvida! Sabe muito bem, Daniel, que a dúvida não provém de Deus! Fé significa certeza! As perguntas da menina… aquelas perguntas… me deixaram assustada! Também tenho medo! Ela também veio de mim! Fere meu orgulho dizer isso, mas já cansei de negar o óbvio.

— A garota só estava curiosa, Ester! Pelo amor de Deus! Você está louca! Curiosidade, nessa idade, é normal!

— E a mancha na pele dela, hein? Ouviu o que o apóstolo disse! Garotas destinadas ao mal nascem com marcas na pele! As marcas são um aviso de Deus!

— O apóstolo profetizou… — Daniel cerrou os dentes.

— É só ter outra filha! Não precisa ser a primeira e a segunda! Pode ser a primeira e a terceira! Ou a primeira e a quarta!

Foi quando Mical ouviu o tapa e, na sequência, o grito de sua mãe.

— Não se atreva a insinuar que minha filha não é algo bom! Não se atreva a sugerir que poderíamos substituí-la! Minha filha é um presente de Deus! É bom que você entenda isso, ouviu, mulher?!

Ester olhou para o marido com olhos assustados. Passou os dedos pela bochecha que ardia.

Nessa hora, alguém bateu à porta.

— Senhor Daniel! Senhora Ester! — era a voz de um dos acólitos do templo.

Os dois puseram um lindo sorriso no rosto, antes de ir atender o visitante. Quando abriram, tinham todos os sinais de uma linda família feliz.

— Vim a pedido do Padre, para avisá-los que a missa começará mais cedo hoje. Espero vocês lá às cinco e trinta — disse o jovem acólito.

— Estaremos lá — disse Daniel. — Toda a nossa família estará.

Mical despertou. O ar frio do ar condicionado bateu em seu rosto. Demorou um pouquinho para entender que estava sentada numa cadeira de hospital. Jéssica estava sentada na cadeira ao lado e Clara Lilithu estava em pé.

Renato permanecia deitado no leito, cheio de curativos e ataduras nos locais das queimaduras, e com o rosto machucado devido aos muitos socos que levou. Ele ainda dormia.

— Ele vai ficar bem? — perguntou Mical, com voz tímida.

— Vai sim — respondeu Clara, sem olhar para a menina.

Mical se levantou.

— Vou ao banheiro.

— Não se afaste muito.

A garota não respondeu. Saiu do quarto de hospital e ganhou o corredor. Ela ainda não havia se acostumado com a quantidade de gente indo e vindo, com o empurra- empurra; volta e meia via alguém chorando, alguém gritando. Maqueiros passavam, às pressas, empurrando a maca de alguém ferido.

Passou em frente a uma sala cheia de crianças queimadas, muitas com ferimentos muito piores que os de Renato. Uma mãe chorava baixinho, sentada numa cadeira e curvada sobre o leito do filho. Mical quis ir confortá-la. Tentou pensar em algo para dizer. Arriscou o primeiro passo e entrou na sala.

A mulher olhou para ela, confusa. Os olhinhos brilhando. A tristeza no rosto.

— Não se preocupe. Deus sabe de todas as coisas. Ele está olhando pelo menino.

A mulher simplesmente abaixou o rosto e não conseguiu mais segurar todas aquelas lágrimas.

— Acha mesmo que ele pode ficar bem?

— Para Deus não existe impossível. É claro que o menino pode ficar bem. Você precisa ter fé.

A mulher se virou e, em silêncio, voltou a se curvar sobre o leito da criança. Mical decidiu deixá-la sozinha.  Seguiu seu trajeto pelo corredor.

Quando entrou no banheiro, sentiu calafrios. Era o único lugar vazio do hospital. Estava silencioso até demais.

Mical viu seu reflexo no espelho da parede. Parecia cansada, com olheiras pesadas e tinha um curativo no rosto. Ela não havia se queimado muito. Quando acordou, deitada na grama, soube que Renato havia salvado sua vida. A vida das três, aliás. Clara parecia perplexa quando explicou o ocorrido.

Ela abriu uma torneira e encheu a mão de água. Estranhou o quão gelada a água estava. Mais um pouquinho e teria virado gelo.

Quando espirou, o ar saiu esbranquiçado. A garota tremeu com um arrepio.     

Notou seu reflexo ficando embaçado. Passou o dedo pela superfície do espelho. Gotículas de água que se condensaram embaçaram o vidro, dando ao reflexo um aspecto esfumaçado.

Foi quando o espelho rangeu e trincou, e logo em seguida estourou, jogando estilhaços por toda a parte. Mical gritou no susto e deu um pulo para trás. O banheiro tinha virado um freezer.

Ela correu para fora e voltou pro corredor. Estava assustada e confusa. Achou que poderia ser apenas um espelho com defeito de fábrica mais um problema no ar-condicionado.

Enquanto voltava para o quarto onde Renato estava, passou por uma janela onde pôde ver a rua. Viu a movimentação do lado de fora, as lojas, vendedores ambulantes, e ficou curiosa. A loja de roupas  que ficava bem em frente ao hospital chamou atenção especial.

Ela decidiu sair para dar uma olhada. Seria rápido. Queria saber como era uma cidade dessas em funcionamento; como era o coração pulsante do centro de uma metrópole e, mais importante, queria saber como eram as roupas que aquela loja vendia.

Pôs a mão na maçaneta gelada da porta e tentou abrir, mas não conseguiu. A porta estava travada. Ela forçou, mas sem sucesso.

— Quer ajuda, mocinha? — disse uma mulher ao seu lado.

— Eu só tô tentando abrir a porta, mas não tá dando.

— Deixa eu tentar.

A mulher também tentou abrir a porta, mas não conseguiu. Era como se estivesse trancada.

— Estranho. Acho que emperrou — disse a mulher. — Espera um minutinho que eu vou chamar alguém.

Mical não esperou. Teve a estranha sensação de estar sendo observada e, com um arrepio, voltou correndo pro quarto. Assim que entrou, deu de cara com Clara. A súcubo tinha uma expressão tranquila, mas ainda assim assustadora.

— O que foi, Mical? Parece que sua cara congelou de susto.

A garota respondeu com um rosnado aborrecido e sentou-se na cadeira sem dizer uma única palavra.

Olhou para Renato, que continuava inconsciente no leito, com queimaduras por todo o corpo, cabelos queimados, cicatrizes.

— Não gosto desse lugar — disse Mical, baixinho, para sua irmã. — Tem muita dor aqui.

Clara foi até a janela. O sol bateu em seu rosto e o vento agitou os cabelos.

—Eu tenho uma coisa para resolver agora. Não tentem sair do hospital.

— Acha que somos suas prisioneiras? — Jéssica se levantou.

—Não acho. Não preciso achar. Se tentarem sair, congelarão até a morte! Além do mais, não acho que vocês vão querer deixar esse garoto sozinho, vão?

Sem tirar os olhos das duas, Clara apenas deixou a gravidade puxá-la para fora, pela janela, e desapareceu.

— Chegará o dia em que vamos exorcizá-la — disse Jéssica.

— Tem uma presença aqui — disse Mical.

— Uma presença? Que tipo de presença?

— Eu a senti me seguindo pelo hospital. É fria. Mas é estranho porque não sei se é realmente má.

Jéssica franziu o cenho.

Mical olhou para Renato com preocupação.

— Acha que a súcubo está tentando alguma coisa maligna contra ele?

— Acho que ela tá preocupada com ele assim como a gente.

— Como pode ser? — Mical ergueu uma sobrancelha.

— Ela não tirou os olhos dele em nenhum momento. Cada vez que ele se mexia no leito, ela olhava com interesse. Eu vi ela olhando pros monitores que mostram os sinais vitais dele várias vezes. Não sei bem porque e, pra falar a verdade, eu nem sabia que era possível, mas acho que esse demônio sente um tipo de gratidão por ele também. Afinal, foi ele quem salvou nós três daquele incêndio, não foi? Ele poderia ter fugido, mas não fugiu. Entrou no fogo e tirou cada uma de nós e por causa disso ele tá ali nessa cama de hospital, queimado, cheio de feridas. Eu não sei o que a súcubo pensa a respeito, mas sinto que ela quer ajudá-lo.

— Isso me deixa confusa, minha irmã. Durante toda a minha vida, eu aprendi que demônios são seres que só vivem para o mal, que não se importam com ninguém e que coisas como gratidão, gentileza, bondade estão fora do alcance deles!

— Mas também tem essa hostilidade! A gratidão que ela sente por ele não se estende a nós. O jeito que ela olha pra gente está me assustando. Parece que a brincadeira desses últimos dias chegou ao fim.

— Talvez precisaremos lutar contra ela em breve.

— Se esse dia chegar, a enfrentaremos com tudo o que temos. Mas, por enquanto… — Jéssica olhou para Renato.

— Vamos nos unir em oração?

— Vamos. Independente do que acontecer, não sinto que ele é nosso inimigo.

As duas se puseram de pé e, ficando uma de cada lado do leito, posicionaram a mão direita sobre Renato, e uniram as mãos esquerdas. Ergueram uma oração ao céu, pedindo pela melhora daquele garoto.

*

Clara entrou no laboratório. Era um lugar bem iluminado, mas as paredes brancas estavam manchadas com graxa, poeira e equações matemáticas feitas à caneta, e era difícil identificar uma ordem na forma como as prateleiras e mesas, cheias de tralhas, estavam organizadas. Havia fios, peças metálicas de variados formatos, pedras com brilho suspeito e muitos potes de vidro cheios de variados pós, líquidos e sólidos. Alguns, a poeira entregava, não eram abertos há bastante tempo.

Ao final do corredor estreito, sentado à uma mesa, estava o homem mexendo num objeto de chumbo, com uma chave de fenda. Em volta, sobre a mesa, havia várias peças e instrumentos. Um deles, Clara reconheceu, era um contador Geiger, objeto usado para medir níveis de radiação.

A súcubo andou até ele.

— Você demorou — disse o homem, sem tirar os olhos do objeto de chumbo.

— Verdade. Parei no caminho para comprar doces.

Ele soltou a chave de fenda e o outro objeto e olhou para Clara.

— Sabe que eu não entendo suas piadas, Clara. — A fala dele carregava um sutil sotaque francês.

— Mas não foi piada.

— Compreendo. Soube que você foi atacada por aquele mercenário. Como é mesmo o nome dele?

— Mercenário Possuído. Você, bem informado como sempre, Flamel.

— Ser bem informado faz parte da minha profissão, querida. — A palavra “querida” soou como “querrida”, como se fosse pronunciada com dois erres.

— Quem te contou? — Clara o encarou com olhos afiados.

— Calma, calma. Guarde esse seu olhar assustador para quem tem medo de fantasmas, d’accord ? Essa é uma cidade bastante viva. As coisas borbulham. As notícias se espalham com o vento. Para um alquimista experiente como eu, ouvir os sussurros não é difícil.

Clara suspirou. “Cara bizarro” pensou ela.

— Você montou a antena?

— Montei sim, succube. Vou pegar.

Flamel saiu por uma portinha de veneziana. Clara pegou o objeto de chumbo da mesa e começou a olhar com curiosidade. Parecia uma caixa, com símbolos entalhados nos lados, e algumas pontas que se projetavam das arestas como espinhos. Um dos símbolos lembravam o desenho de um cristal.

Assim que perdeu o interesse na caixa, ela começou a prestar atenção no quadro branco preso numa das paredes. Havia mais símbolos e muitas equações matemáticas complexas. Algumas das equações, ela sabia, fazia parte da base teórica de alguns feitiços.

Flamel voltou, trazendo consigo uma antena longa e fina, de cerca de um metro e meio de altura, presa a duas antenas menores com formato de parabólica, e com as concavidades viradas para lados opostos. As três antenas estavam fixadas numa base retangular do tamanho de um bloco de concreto, do tipo usado em construções, da qual se projetava um cabo USB.

— Aqui está.

— Maravilha! — Clara arregalou os olhos — Faz tempo que não vejo uma dessas! Qual o alcance?

Flamel encheu o peito de orgulho.

— Quinze quilômetros de raio.

— Caramba! Isso é bastante coisa!

— Quase Setecentos e sete quilômetros quadrados! Desconsiderando algumas fazendas, isso cobre toda a cidade! E ainda cobre uma boa parte da cidade vizinha!

— Vai servir. Mais uma coisa: você ainda tem alguma pena de fênix sobrando aí?

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Olá, eu sou Max Sthainy!

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