Andrei despertou. Estava de volta à cadeira, dessa vez, preso por correntes. Seria impossível arrebentá-las. Ergueu os olhos e viu Clara Lilithu e Tâmara sentadas no sofá, olhando para ele com sorrisos cínicos e sádicos.
Sentiu um gosto amargo na boca, e movimentou a língua. Aqueles fios ásperos arranharam sua mucosa. Foi quando percebeu.
Tinham suturado sua língua de volta no lugar. Tentou arrancá-la mais uma vez na mordida. Dessa vez, ele faria de um jeito que eles não percebessem, engolindo todo o sangue, e Andrei finalmente morreria devido a hemorragia.
Mas somente a gengiva nua pressionou sua língua, sem machucá-la. Ele não tinha mais dentes.
— Renato, eu te ajudei porque eu confio em você. Mas isso é… um pouco demais. Acho que é passar dos limites.
Jéssica olhou na direção da sala, e viu Andrei preso à cadeira, onde Clara e Tâmara o estavam interrogando.
Jéssica baixou o rosto, um tanto envergonhada por questioná-lo. Mas falar a verdade, sempre, era uma de suas virtudes, e ela não mentiria agora.
Renato pousou o copo vazio sobre o balcão de mármore. Ele tinha ido pegar água e ela o seguiu. Estavam na cozinha. Conversavam de pertinho, com a voz baixa.
— Você não sabe o que ele fez.
Foram as únicas palavras que saíram da boca do garoto.
— Eu sei. Ele bateu no seu amigo, mas isso não é…
— Não! Não foi só isso. Ele… eles… ele e aquela vadia psicopata mataram… — As palavras dele entalaram na garganta. Ele respirou fundo e prosseguiu: — Ele e a Kath mataram as crianças, Jés. O Raí tinha 7 anos; queria ser astronauta. Ana Alice tinha 6; queria ser médica. O Yuri… a gente não vai mais jogar… Eles mataram crianças inocentes. Não merecem piedade. Merecem o meu pior! E que saibam que o meu pior foi forjado no fogo do Inferno!
Jéssica engoliu em seco.
— Eu não sabia.
— Não é culpa sua. O mundo, Jés… as pessoas… você acredita em Deus, não acredita?
— Acredito.
— Então, se Deus existe… se Deus tá mesmo lá em cima olhando pela gente… por que o mundo é assim, Jés? Por que crianças precisam sofrer desse jeito? Por que crianças continuam sendo vítimas de gente como a Kath, o Andrei, ou coisa pior? Às vezes eu acho que tudo o que existe na humanidade é isso, sabe? Que não tem nada de bom na gente. Às vezes eu acho que o ser humano foi feito para causar sofrimento uns nos outros. Acho que não temos mais esperança.
— Renato… — ela pôs a mão sobre o rosto dele, tocando-o, sentindo sua pele, acariciando — você tem tantas cicatrizes. E eu não tô falando dessas marcas na sua pele. O que te deixou assim? O que te machucou tanto? Desculpe… me perdoa por não ter percebido antes.
— Eu acho que só tô cansado, sabe?
— Sim. Cansado. — Ela assentiu. — Entendo. Só quero que você saiba que não está sozinho. Eu tô com você, Renato. E a Mical também está. Não pense, jamais, que está sozinho!
— Eu sei.
Ela se afastou e foi até a janela. Era uma noite linda.
— Não é só isso que tem na humanidade, Renato. Tem bondade também. Tem gente lutando diariamente, dando seu melhor, pra fazer do mundo um lugar melhor. Os monstros não são maioria; só fazem mais barulho.
— Eu… preciso de um pouco de água — disse ele, com a voz embargada, e caminhou até a geladeira.
Pegou a jarra d’água e voltou para o lugar onde estava para preencher seu copo vazio, mas…
— Ué…? — Ele franziu o cenho, confuso.
Jéssica ergueu uma sobrancelha.
— Eu tenho certeza que esse copo estava vazio — disse ele. — Não me lembro de já ter colocado água.
Jéssica riu.
— Falar isso com a jarra de água na mão é meio suspeito, não acha?
— É sério — ele sorriu. — Eu acabei de pegar a jarra. — Um tanto confuso, ele levou o copo à boca e bebeu. — Ah, nem isso eu sei mais. Minha cabeça tá tão confusa ultimamente. Acho que eu preciso de umas férias, sabe? Deve ser isso. Um tempo longe de toda essa merda e eu fico bonzinho, novinho em folha.
— Férias. Não me parece uma má ideia.
— Quando isso tudo acabar, Jés, a gente vai sair de férias! Já me decidi. Vamos pra um lugar bem distante, com uma linda praia, um sol brilhante, e que sirva bons drinks. Vamos passar a noite em volta da fogueira contando histórias e planos para o futuro!
— Acho que nenhum estabelecimento vai te servir drinks, Renato — Jéssica riu.
— Que seja! A gente compra refrigerante, mistura com alguma vodca barata e já era! Vamos nos divertir e esquecer de toda essa violência. Sem demônios de alto nível, sem anjos, sem perseguições e nem lutas. Só a gente… se divertindo… rindo… esquecendo toda essa… tristeza.
— Mal posso esperar — respondeu Jéssica, com os olhos brilhando.
— Parando pra pensar, a gente nunca saiu num encontro, não é? Então, a primeira coisa a se fazer vai ser ter um encontro incrível!
— Eu não sei o que é um encontro. — Ela parecia um tanto envergonhada.
— Um encontro é quando um homem e uma mulher saem pra se divertir juntos.
— E o que eles fazem?
— Eu não sei. Qualquer coisa que der vontade, eu acho. Ver filmes, tomar sorvete, comer alguma coisa gostosa. Qualquer coisa que os dois acharem divertido.
Jéssica assentiu.
— Então eu quero ter um encontro com o Renato.
Nessa hora, Clara se pôs no meio deles. Tinha um olhar desconfiado.
— Então os dois estão planejando o futuro sem o restante de nós? — Ela ergueu uma sobrancelha. — Mas que mesquinhos! Vou lançar uma maldição em você, Renato, para o seu brinquedinho nunca mais subir!
— De novo esse tipo de conversa? — retrucou Renato. — Sabe, Clara, nem Freud explica essa sua fixação em explodir pintos. Acho que você tem inveja e queria ter um!
Ela fez uma careta de desagrado.
— Freud… já conheci esse cara. Só pensava em duas coisas: putaria e cocaína; e tinha uma relação estranha com a mãe. — Ela deu de ombros. — O Andrei… ele não parece muito disposto a falar, entendeu? A gente vai ter que pegar um pouco mais pesado. Eu tenho alguns ítens guardados. Ele vai desejar nunca ter nascido. Vou mostrar o que é tortura de verdade.
— Não precisa — disse Lírica, que tinha surgido na janela, depois de um curto passeio de reconhecimento — Afinal, vocês têm a mim.
Clara bufou.
— Demi-humanos e seus poderes psíquicos. Metidos!
— Pode mesmo ajudar? — perguntou Renato.
— Não vai ser fácil, mas acho que consigo. Invadir a mente de alguém para procurar por informações, é uma coisa complicada. É como andar por um labirinto cheio de armadilhas. Tem seus perigos. Mas é possível.
Todos se aproximaram de Andrei. Jéssica e Mical eram quem mantinham mais distância, pois não gostavam muito dessa situação. Clara estava sentada no sofá, como uma rainha sentada num trono. Tâmara, de pé, olhava para o homem amarrado com alegria. Vê-lo naquela situação dava-lhe prazer.
Andrei curvou os lábios, mostrando seu sorriso ensanguentado, com os dentes faltando.
— Tâmara, é bom vê-la novamente. — As palavras saíram distorcidas, com um chiado sibilante, e para conseguir dizê-las, Andrei teve que pressionar a gengiva contra a língua.
Ela deu de ombros.
— Sabe… — o mercenário prosseguiu — gostaria de agradecer sua ajuda. Você estava tão desesperada pra ser útil para o Renato, que foi tão fácil te manipular. A Kath viu exatamente quais eram suas fraquezas. — Ele riu. — Ela te usou como uma peça de xadrez.
— Cale a boca — respondeu a menina. — Você tá todo sujo, imundo, sangrando, quase morto. Ver alguém desse jeito falando o meu nome me dá nojo. Por que não conta para nós como encontrar sua amiga, para finalmente deixarmos você morrer? Por que insiste em sofrer desse jeito?
— Você nem imagina — Ele gargalhou. — Nem imagina o tamanho da sua participação! Acha que nós deixamos você pegar nossa tecnologia, todos aqueles brinquedinhos de nossa base, para você poder construir essa sua armadura tecnológica porque somos bonzinhos? Tão desesperada, tão manipuladora, tão arrogante que nem cogitou a ideia de ser você a pessoa sendo manipulada. Quer saber como a Kath e eu descobrimos sobre aquele orfanato? Quer? Foi você que levou a gente até lá. Tem um rastreador e um microfone junto das peças que você pegou da gente. Nós estávamos monitorando tudo. Obrigado pela ajuda, Tâmara. Sem você, jamais teríamos matado aquelas crianças.