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Renato se viu de volta na gaiola da viatura, desta vez com o saco na cabeça, que deixava tudo escuro.

Mexeu os braços, sentindo as algemas pressionando seus pulsos. Puxou uma das mãos, tentando passá-la pelo grande anel metálico. Sentiu que a algema arrancaria sua pele fora. Continuou puxando. Renato era um cara magro, suas mãos não eram tão grandes. Já viu cenas assim em filmes centenas de vezes. Ele não sabia como abrir as algemas usando clips de papel ou alfinetes, e mesmo se soubesse, não tinha nenhum desses ítens com ele. Tudo o que podia fazer era continuar puxando, mesmo com a dor, mesmo deslocando os ossos, pressionando os nervos, esmagando os músculos. Ficar preso sem fazer nada estava fora de cogitação.

“Eu consigo!” Cerrou os dentes, contendo o grito.

Sua mão estava sendo esmagada. Por um momento ele achou que perderia o movimento nela para sempre. Continuou puxando. A pior parte foi logo antes de chegar aos dedos, onde a mão ficava mais grossa. Pensou em desistir. A dor era aguda. Sua mão se dobraria, rasgaria a carne e estilhaçaria os ossos.

Porém, fazer o caminho de volta doeria quase tanto quanto terminá-lo.

Continuou puxando. Apertou os dentes ainda mais.

A algema escorreu para os dedos, e aí ficou fácil.

Finalmente tirou o saco da cabeça e olhou para a mão. Estava muito roxa. O menor movimento com qualquer um dos dedos doía feito o inferno.

Ainda tinha a algema presa na mão direita, mas já podia se mover com mais facilidade.

Vasculhou a gaiola onde estava. O carro se movia rapidamente e balançava muito. A estrada devia ser esburacada e cheia de pedras.

Conseguiu achar um buraquinho na lataria do porta-malas, redondo, por onde escorria um raio de luz. Provavelmente era um buraco de bala. Olhou por ele e conseguiu ver a estrada de terra e, à esquerda e à direita, um grande milharal de cor alaranjada, ressecado. Estavam no meio do nada.

Renato ficou ainda mais preocupado.

“Esses caras vão me passar aqui! Vão meter uma bala na minha cabeça e sumir com o corpo no meio desse milharal!”

“É bem possível”, respondeu uma voz em sua cabeça.

“Mas por quê? O que eu fiz para eles?”

“Para algumas pessoas, o desconhecido é uma ameaça, e eles sabem que tem algo desconhecido em você.”

Renato começou a pensar nas possibilidades. Se conseguisse fugir pro milharal, em zigue-zague, para evitar os tiros, talvez tivesse uma chance.

Não demorou muito e o carro começou a diminuir a velocidade.

“Vão parar! É agora!”

O carro parou. Um dos homens desceu e caminhou até o porta-malas.

Renato se preparou. Ficou na posição ideal para, assim que a porta fosse aberta, ele pudesse pular sobre o cara, golpeando, e corresse com todas as forças que tivesse disponível. Não morreria num lugar desses! Ainda precisaria salvar Jéssica e Mical e dar um enterro digno a Clara Lilithu.

A chave do porta-malas entrou na fechadura e girou. A porta estralou e começou a se abrir. Renato viu a silhueta do homem em pé do lado de fora.

Assim como o planejado, no exato momento em que viu a oportunidade, Renato pulou feito um animal e explodiu um soco poderoso na cara daquele homem.

O homem cambaleou e caiu sobre a estrada de terra, bateu contra o cascalho e levantou poeira. Levou rapidamente a mão ao coldre na cintura e mirou a pistola contra Renato. Em seus olhos, apenas raiva.

— Calma, Roberto — o segundo homem apareceu e pôs a mão no ombro do primeiro. — O garoto só tá assustado.

— García! Esse desgraçado me deu um soco! Eu poderia matá-lo aqui mesmo e ninguém ficaria sabendo!

— É, mas isso seria desobediência. E eu ficaria sabendo. Sabe quais são as ordens! Siga o plano!

Roberto cuspiu no chão e guardou a arma.

— E você, garoto — continuou García —, não precisa ficar todo afobado desse jeito. Nós não vamos te machucar. Na verdade trouxemos você aqui pra te libertar.

— O quê?!

— Olha ali na frente, saindo dos outros carros. Conhece aquelas gurias?

Renato olhou na direção e havia mesmo outros dois carros à frente. Saindo do porta-malas de um deles, estava Jéssica, algemada e com um saco preto na cabeça.

— Me soltem, seus hereges! Pecadores imundos!

Mical era retirada do porta-malas do outro carro.

— Seu filho de uma prostituta da Babilônia, me solta! — gritava a garotinha. — Eu vou queimar você na fogueira, seu…

Renato finalmente respirou aliviado e relaxou os ombros.

— Está vendo, garoto? — disse Garcia. — Elas estão bem. Trouxemos vocês aqui para soltá-los. Não podíamos correr o risco de saberem o caminho para nossa base.

Soltaram as algemas das meninas e removeram o saco de suas cabeças. Garcia estava tirando a algema do pulso direito de Renato.

— Renato! Você…?!

— Renato! — Mical tinha lágrimas nos olhos.

O rapaz correu até elas e as abraçou com força. Elas retribuíram o abraço. Todos estavam cansados, feridos, exaustos e com o emocional em pedaços.

— Que bom que estão bem! — disse ele.

— Que bom que você está bem — respondeu Mical.

— Olha só, Roberto, isso não é emocionante?

— Cala a boca, Garcia! Ainda acho que deveríamos ter matado esse moleque.

— É por isso que você é só um soldado, Roberto, e não quem faz as estratégias. É bom em lutar, mas não é muito inteligente.

— Você tá me tirando?

— Não, não. Apenas falando alguns fatos. Ei, garoto! Meninas! Se seguirem a estrada nessa direção, vão chegar à cidade. Tomem cuidado.

Eles entraram nos carros e aceleraram, indo em direção oposta, deixando para trás um grande rastro de poeira.

Renato, Jéssica e Mical estavam sozinhos quando se puseram a andar sob o sol quente. Renato estava descalço, então o cascalho da estrada machucava seus pés, mesmo assim ele andava rápido, sem hesitação.

Quando finalmente aquele milharal terminou e a estrada de terra ganhava contornos de um asfalto velho e esburacado, e eles puderam ver sinais de civilização, o sol já estava se recolhendo e a noite começava a dar o ar da graça.

Renato reconheceu o local. Estavam numa das periferias da cidade, cercados por fazendas e sítios. Passaram por um campinho de futebol improvisado num terreno baldio onde algumas crianças jogavam uma pelada.

Jéssica e Mical ficaram maravilhadas com a liberdade que aquelas crianças tinham, se divertindo daquela forma ao ar livre. Não existia nada parecido no Priorado.

Renato viu um boteco decadente, com o letreiro com tinta já meio apagada que dizia “Pinga Dourada”. Logo na frente, havia algumas mesas com homens sentados bebendo cerveja. De dentro, vinha uma música do Bruno e Marrone do Jukebox. Entraram. As meninas pareciam mais tímidas do que o normal.

— Renato, esse lugar não me parece muito seguro — disse Jéssica.

— Eu realmente não gosto daqui — disse Mical, correndo os olhos do teto com rachaduras para os brutamontes espalhados pelas várias mesas do local.

— Fiquem tranquilas. É mais seguro do que parece.

— Essas pessoas aqui… parecem violentas e perigosas.

Renato riu.

— Vejam aquele cara ali naquela mesa. Ele tá bêbado demais pra ser perigoso. Provavelmente cairia sozinho apenas por tentar se levantar. O cara junto com ele, olhem, ele tá chorando enquanto presta atenção na música. Provavelmente tá lembrando de alguma mulher.

— Oh, verdade! — disse Jéssica.

— Aqueles outros dois estão muito concentrados no jogo de sinuca. Oh, tem uma nota de cinquenta reais ali embaixo do copo, veem? Esse deve ser um jogo importante!

— Aquele de boné escrito “Aldo Locatelli” parece confiante! — disse Mical.

— Parece mesmo! Acho que ele deve tá ganhando o jogo — concordou Renato. — Aquele outro cara, em pé em frente à porta do banheiro, deve tá vendendo droga. Talvez ele até chegue pra conversar com a gente usando alguma desculpa. Depois de ver que a gente não quer comprar seja lá o que ele vende, ele vai voltar pro mesmo local que está agora.

— Oh, Renato, incrível! Como sabe todas essas coisas? — disse Jéssica, deslumbrada.

— Renato é um especialista em bares! — disse Mical.

— Não, não é isso — riu ele. — É que quando eu tava no orfanato, eu fugia regularmente e, para falar a verdade, era num lugar como esse que eu sempre conseguia água gelada, comida quentinha e algum calor familiar.

Chegaram ao balcão. Um homem barrigudo, com barba grisalha e falha, e hálito de Velho Barreiro, os atendeu.

— Pois, não? — Ele lançou-lhes um olhar desconfiado. — Já aviso que não vendo bebida para pirralhos.

Renato sorriu gentilmente.

— Não queremos comprar bebida, senhor. Eu gostaria de usar um telefone.

— Telefone? E vocês não têm celular? Os moleques de hoje em dia sempre têm celular. Só ficam vendo aquele tal de tik tak, tek tik, algo assim.

— Ah, infelizmente nós fomos roubados e levaram nossos celulares. Estamos longe de casa e por causa disso preciso dar um telefonema para um amigo vir nos buscar.

O barman arregalou os olhos e abriu a boca, surpreso.

— Foram assaltados?! E vocês estão bem? Os marginais não fizeram nada mais de mal pra vocês não, né? — Ele olhou para as garotas, francamente preocupado. — Se eles machucaram essas meninas, garoto, eu mesmo vou atrás deles e…

— Tá tudo bem. Só levaram nossos celulares mesmo. Apenas bens materiais foram perdidos.

— Estamos bem — Mical concordou com Renato.

Os olhinhos brilhantes dela devem ter afetado profundamente o coração do barman, porque ele apenas se virou, tropeçando nuns caixotes de cerveja, procurando desesperadamente o próprio celular.

— Aqui, podem usar meu telefone. Não se preocupem, eu tenho crédito. Podem ligar.

— Obrigado, senhor — disse Renato e pegou o celular.

— Muito obrigado, bom homem. — Mical mostrou seu sorriso mais bonito.

— De nada, garotinha — o homem mostrou um sorriso bobo e coçou a cabeça, meio sem graça.

Renato conseguiu falar com Hiro e, enquanto esperavam-no chegar, sentaram-se à uma mesinha com uma garrafa de dois litros cheia de água gelada como companhia. Em momentos de sede e cansaço extremos como aquele, nada poderia ser mais gostoso!

Cerca de trinta minutos depois, a caminhonete do pai de Hiro estacionou na frente do boteco Pinga Dourada e o garoto desceu. Entrou no bar, procurando pelo amigo. Renato se levantou e correu até ele.

— Renato! Onde você estava esse tempo todo, cara? E essa cicatriz?! O que aconteceu com v…

Renato apenas o abraçou.

— Muito obrigado por vir, cara! Valeu mesmo. Eu não tinha mais ninguém para pedir ajuda.

— É claro que eu viria, seu trouxa. Como eu diria não com você chorando no telefone daquele jeito?

— Hiro, essas são as garotas que eu falei: Jéssica e Mical.

— Oi, princesas! — disse Hiro, ajeitando o cabelo.

As duas ficaram quietas, apenas acenando com a cabeça.

— Elas são meio tímidas.

— Não sendo malvadas como aquela sua outra amiga, pra mim já tá bom demais. Vamos indo. Meu pai tá esperando.

O pai de Hiro era um homem calado, sério e com um possível início de Síndrome de Burnout, mas mesmo assim, de alguma forma, sempre parecia gentil.

Renato ia apontando o caminho.

Enquanto estavam na estrada, Hiro falou sobre os novos três assassinatos de alunos da escola e que os métodos do assassino tinham ficado mais brutais, e que como tinha ficado claro que as vítimas eram todos alunos da mesma escola em que eles estudavam, o diretor decidiu por interromper as aulas e só voltar assim que a policia descobrir quem era o o culpado pelos crimes.

— Estão chamando ele de O Matador do Soneto — concluiu Hiro.

— Matador do Soneto? — Renato ergueu uma sobrancelha. — Alí, senhor, pode virar naquela rua à esquerda. Como assim Matador do Soneto? Por que esse nome?

— A polícia revelou que em todos os cadáveres encontrados, tinha um verso de Camões escrito de caneta. Sempre o mesmo poema. Um soneto. No primeiro cadáver, o do Roger, que foi encontrado no rio, tinha a frase “Amor é fogo que arde sem se ver” escrita num dos pedaços. Acho que era na barriga. No cadáver do Jhonatan estava escrito “É ferida que dói e não se sente” no braço. As outras três vítimas eram meninas; uma do terceirão e duas do sétimo ano.

— E tinha algo escrito nelas também?

— Tinha, cara! “É um contentamento descontente” na do terceirão e “É dor que desatina sem doer” na primeira do sétimo e “É um não querer mais que bem querer” na outra. E a polícia disse que como o poema tem 14 versos, podem haver, no mínimo, mais nove vítimas! Todos da nossa escola, cara! Inclusive, uma das suspeitas é que seja um funcionário de lá. Talvez um professor. Estão comentando que o professor de português pode ser o culpado, só porque acharam um livro de sonetos do Camões na casa dele. Sinistro, né?!

— Sinistro mesmo.

— A Alicia, tadinha, não sai de casa para nada. Está apavorada.

— Tomara que a policia ache logo o culpado. Ei, é aqui, senhor! Chegamos.

— Aqui mesmo, Renato? Neste prédio? Conhece quem mora aí?

— Conheço sim.

— Pode ficar na minha casa. Sabe disso, não sabe?

— Sei sim, mas no momento é aqui que preciso estar.

— Certo, então. Ei, qualquer dia me conta que tipo de confusão você se meteu dessa vez.

— Qualquer dia.

Desceram. O pai de Hiro manobrou a caminhonete e desapareceu na esquina.

Os três jovens se viram de frente àquele grande portão. Renato arriscou puxando-o de leve e, vendo que não estava trancado, abriu. Entraram. A primeira coisa que viram foi a cena de destruição no estacionamento. Foram até o camaro e lá estava um corpo feminino, carbonizado e partido ao meio pela explosão.

— Hum, tem algo errado.

— Errado? — Perguntou Jéssica. — O que quer dizer?

— Não sei. Só intuição. Conhecendo a Clara, deve ter um giz em algum lugar por aqui.

— Um giz? O que vai fazer?

— Evocar um demônio.

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Olá, eu sou o Max Sthainy!

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