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Enquanto caía em direção ao Lago de Fogo, Renato se lembrou da vez em que queimou o dedo mindinho tentando fritar um ovo. “Doeu pra diabo!” Também se lembrou do incêndio em sua casa, que lhe presenteou com uma cicatriz no rosto, e não houve um dia sequer em que ela não tivesse doído. Foi sufocante, todo o corpo ardia e os pulmões pareciam que iriam derreter.

Lembrou de todas essas coisas, enquanto via as labaredas gigantescas, avermelhadas, brotando da fenda no chão, se movendo feito tentáculos, se aproximando cada vez mais. “É a verdadeira morte” pensou. “O inferno definitivo descrito na bíblia.”

E então foi engolido pelas chamas. Afundou num fluido viscoso que lembrava magma, e o chão se fechou acima de sua cabeça, trancando, pela eternidade, a única saída que existia.

A dor foi excruciante. Sua carne, queimada, começou a descolar dos ossos, e a parte que não virou cinzas derreteu feito plástico. Os olhos estouraram devido ao calor absurdo. Renato tentou gritar, mas as cordas vocais estavam destruídas, e tudo o que pôde emitir foi um ruído baixo, lamentoso e cheio de sofrimento.

Isso tudo durou apenas alguns segundos. Depois a dor diminuiu, porque as terminações nervosas foram destruídas, e, logo em seguida, a própria consciência de Renato desapareceu, tornando-se nada mais do que uma Incerteza Quântica.

O alívio de quase inexistência durou apenas alguns séculos, e depois a consciência de Renato ressurgiu, para experimentar aquela dor absurda e indescritível de novo por mais alguns segundos. Durou mais do que da primeira vez. E se apagou de novo.

Mais alguns séculos depois, e ele voltou a experimentar a dor, e desaparecer novamente.

E assim ficou por dezenas de milhares de anos:  ele era completamente obliterado pelo Fogo Eterno do Gehena, e deixava de existir, sendo completamente reduzido a cinzas; e depois voltava à vida só para passar pelo sofrimento mais uma vez. É impossível contar quantas vezes passou por esse processo de tortura eterna. Um tormento que não tinha fim.

Em algum momento, sua mente começou a ficar mais estável, e ele podia até entender o que se passava à sua volta, antes de desaparecer. Conseguiu perceber o movimento dos vermes no fluído incandescente; pôde ouvir o lamento dos outros seres miseráveis jogados ao mesmo destino que ele.

Com o tempo até começou a se lembrar das existências de sofrimento passadas. Sua mente, apesar de estar sendo queimada até deixar de existir, ainda funcionava. Os vermes deslizavam sobre sua carne destruída, entranhavam-se nos ossos. Fediam mais do que tudo!

Numa das vezes em que retornou das cinzas para sofrer por mais alguns segundos, ouviu uma voz chamando-o.

— Renato! Pode me ouvir?

— Quem… ?

— Aqui.

Uma criatura emergiu do fogo, com magma infernal pingando do gigantesco e monstruoso corpo. Ela tinha sete cabeças, e distribuídos pelas cabeças, havia dez chifres. E sobre os chifres, dez diademas dourados, como aqueles usados pela realeza.

Apesar de tudo, era parecido com um felino; talvez um leopardo monstruoso, e as cabeças eram como as de leão; e os pés eram peludos e escuros, lembrando patas de urso.

E a criatura rugiu, orgulhosa, para mostrar seu poder devastador.

Renato não sentiu medo, nem nada do tipo. Ele apenas ficou curioso.

— O que é você? — disse o garoto, com a voz fraca.

— Meu nome é A Besta que Subiu do Mar.

Renato abaixou o rosto. Estava confuso, com a mente anuviada.

— Nome comprido — conseguiu esboçar um sorriso, mostrando os dentes, cujo esmalte, devido ao calor, estava derretendo.

— É comprido mesmo — respondeu a Besta, mostrando suas presas, num sorriso assustador.

— Acho que já ouvi falar de você.

— Provavelmente já. Fui vítima de uma campanha de difamação que tem perdurado pelos últimos dois mil anos.

— Entendi… acho que… vou desaparecer.

— Continuamos nossa conversa daqui alguns séculos, quando voltar, então.

E Renato mais uma vez foi destruído pelo Fogo Eterno. Voltou antes de um século. Estava ficando mais resistente.

— Já? Vêem? Ele nos surpreende mesmo agora — disse a Besta, para seus companheiros.

— Há quanto tempo eu tô aqui?

— Há alguns milhares de anos, Renato Yakekan.

— Isso não é bom. Todos aqueles que eu conhecia estão mortos. Talvez Clara ainda…

— Não se preocupe. Foram milhares de anos aqui. O tempo passa diferente dependendo do lugar onde está, Renato. Se voltasse agora, teria se passado apenas alguns segundos lá fora.

— Tem… tem… algum jeito de sair? — A voz de Renato saía cada vez mais fraca. Ele sentia que desapareceria em breve.

— Se tivesse, já teríamos saído. Mas talvez você consiga. O Falso Profeta profetizou sua chegada, Condutor de Arimã. É você quem pode libertar a todos nós dessa  tortura. Não aguentamos mais.

— Falso Profeta? — Renato esboçou um sorriso. — Será que dá pra confiar na profecia dele?

Um rosnado contido saiu pelas bocarras da Besta.

— É claro que dá. Falso Profeta é só um nome. Nome que foi dado por nossos inimigos, mas as profecias dele são mais do que confiáveis. São absolutas.

— Se você diz. E o que eu tenho que fazer?

— Aqui, no Gehena, é o local mais profundo de toda a criação. Estamos bem pertinho do Não Criado. Nunca, nenhuma criatura feita por Deus conseguiu ir lá para fora, além de você, Renato. Só você consegue romper a parede da criação e sair. Abra o caminho, se encontre com o verdadeiro Deus, aquele que, por direito de nascimento, tem a verdadeira autoridade. E, junto de Arimã, restabeleça a ordem no universo. É claro que iremos ajudá-lo. A Besta que Subiu do Mar, A Besta que Subiu da Terra, o Falso Profeta e até a Morte podem estar do seu lado, Renato.

— Que time! — O garoto estava assustado, mas não conseguiu conter a risada. — Parece que eu tô entrando pra gangue mais sinistra da história.

A Besta sorriu.

— Não tá entrando pra gangue. Está fundando ela.

Renato suspirou. Aqueles eram nomes que ele já tinha lido no livro do Apocalipse. Pensou por alguns instantes, tentando imaginar o que aconteceria a partir daquele ponto.

As chamas ardiam, vorazes, consumindo sua carne. Ele se decidiu. Ficar ali era impossível! Teria que voltar.

— E o que eu tenho que fazer?
— Mergulhe. Vá até onde ninguém conseguiu antes. Vá até o fundo do magma, nas raízes do fogo original. Até chegar nas fronteiras do universo, e abra o caminho. Vá na frente, Renato. Nós estaremos logo atrás de você.

As formas disformes, flutuando no fogo, pareceram acenar. Cabeças, chifres, diademas balançaram.

Renato estalou a língua.

— Que se dane! Vamos!

E mergulhou. Foi como afundar em lama, devido a textura viscosa do magma. Renato se lembrou das aulas que teve com Phenex, invocou toda a Energia Hermética que conseguiu, desejou que o próprio fogo o ajudasse, e teve a impressão de que foi atendido.

Sua carne, semi transformada em cinzas, descolava dos ossos. Só um olho ainda estava inteiro. Os vermes se agitavam à medida em que Renato se movia, nadando no líquido fervente.

Havia esqueletos humanos. Pessoas que, assim como ele, foram jogadas para sofrer eternamente. E era como se até os ossos mais deteriorados chorassem de dor. Houve sussurros. Clamores por misericórdia; alguns chamavam pelo nome dos pais, dos filhos, e outros até oravam a Deus. Mas ninguém era atendido. Não havia nenhuma resposta. Somente os outros miseráveis e as Bestas ouviam os clamores, e clamavam junto. E por um momento, enquanto Renato descia às profundezas mais terríveis, se permitiram, pela primeira vez desde a eternidade, sentir uma pontada de esperança. Talvez o sofrimento acabasse. Até a destruição total seria melhor. Ou talvez, até tivessem a chance de vingança.

Renato perdeu a conta de quantas vezes foi destruído e reconstruído no processo de descida, mas sabia que a cada braçada, estava mais perto da saída. Via os milhões de vultos, de diversos formatos, nadando atrás dele, acompanhando-o, com dificuldade, lentamente, mas sem parar.

“Arimã! Estou chegando!”

A parte mais profunda era a mais densa. Os odores de carniça do Inferno pareciam como rosas agora. O cheiro que estava ali era do mais absoluto abandono. Um cheiro que tinha gosto de desespero e cor de desistência.

“Vós que entrais, abandonai toda a esperança” se lembrou do trecho de um livro que leu há bastante tempo, ou era de Cavaleiros do Zodíaco?  Essa seria a mensagem exposta nos portões do Inferno. Renato rosnou com puro ódio, sentindo a dor dilacerando seus músculos, pele, queimando os órgãos internos e transformando os ossos em pó.

— Abandone a esperança é o caralho! Mesmo aqui, queimando até os átomos no Fogo Eterno, eu tenho esperança pra dar e vender, seus porra! Vamos!

E assim que viu, na parte mais profunda e quente do oceano de fogo, algo semelhante a uma parede escura, ele gritou. De dor, de raiva, de frustração e de esperança. E socou com toda a força. E então foi engolido pelo escuro.

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