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Antes de sair para se encontrar com Hiro, Renato passou no quarto onde a demi-humana estava dormindo. Era um tipo de sono induzido pela magia de Clara.

Renato notou seus hematomas. Alguns no rosto, em volta dos olhos ou próximos à boca. Outros estavam espalhados pelo corpo. Tinha uma marca roxa, meio azulada, num dos braços.

Ela tinha sido escrava de Belfegor e, mesmo que ela não pudesse falar, seus machucados falavam por ela. Mesmo agora, se acordasse, seria vítima de uma dor extrema e insuportável.

— Quer falar com ela? — perguntou Clara, tocando o ombro de Renato.

— É possível?

— Os poderes de súcubos não se resumem a explodir órgãos sexuais e serem extremamente lindas, sabia? Nós também temos, naturalmente, alguma influência no mundo dos sonhos. Eu dei um belo sonho pra ela.

Renato encarou Clara de soslaio.

— O que foi? Não sou tão malvada. Ela gosta de lírios. Eu vi em suas memórias. Então criei um belo sonho pra ela sobre um campo florido, cheio de lírios coloridos, sob os pés de uma cachoeira. Tem abelhas produzindo mel e gatinhos para brincar. Demi-humanos gostam de correr, então tem bastante espaço.

Renato sorriu de forma terna.

— Você é gentil, Clara. Mais gentil do que pensa.

Ela riu com desdém.

— Não sou, não. Humf! Só acho que criar um pesadelo dá muito trabalho. Então, por preguiça, e apenas por isso, dei um sonho agradável a esta pobre demi-humana.

— Quero falar com ela.

— Então durma. Durma, e eu te levo até ela.

— Eu acabei de acordar, então vai ser meio difícil.

Clara tocou a cabeça de Renato usando as duas mãos. Olhou em seus olhos e suprou suavemente.

— Durma.

E o corpo de Renato amoleceu. Ele apagou completamente. Clara o segurou e, com cuidado, deitou ele na cama ao lado da garota gato.

Quando Renato abriu os olhos, estava num imenso campo florido. O céu estava limpo, azul-claro e salpicado de nuvens. Ouviu o canto de pássaros. Uma abelha se aproximou, zigue-zagueando e pousou sobre seu dedo indicador.

O garoto ficou parado, apenas observando o inseto andando sobre sua pele, e então o bichinho levantou voo para, em seguida, pousar sobre um lírio lilás cheio de manchinhas brancas.

Renato se ergueu. Ouviu a queda d’água. Olhou na direção do som e viu aquela imensa cachoeira. As águas escorriam, brilhantes feito prata, em direção ao lago. E ao lado do lago, sentada sob a sombra de uma árvore, estava a demi-humana.

Ela se levantou assim que percebeu a presença de Renato, e direcinou a ele aqueles olhos cor de cobre. Os cabelos, totalmente brancos, eram como fios de algodão descendo em cascata de sua cabeça. O garoto se aproximou dela.

— Me perdoe. — Foi a primeira coisa que ele conseguiu falar.

Ela franziu o cenho, confusa.

— Perdoar pelo quê?

— Por minha culpa, você sentiu dor. E agora está presa aqui, num sonho. Eu prometo que vou consertar as coisas. Vou dar um jeito.

Ela balançou a cabeça, em negação.

— A minha vida inteira, tudo o que eu conheci foi o sofrimento, o fogo, o sangue, as punições. O Inferno não estava só em volta de mim; também estava na minha cabeça. Me acompanhava até nos meus sonhos. Essa foi a primeira vez, Renato, em que eu consegui sonhar com algo agradável. Obrigada por isso.

— Mas… eu não sabia… eu deveria, antes de trazer, pensar num plano melhor. Eu apenas agi por impulso, e isso te causou mais sofrimento.

— Se você não tivesse feito o que fez, eu ainda estaria no Inferno, sendo escrava daquele demônio. Você, Renato, me salvou. É o meu herói.

— Mas, eu…

Ela deu de ombros.

— É claro que a situação não é perfeita. Mas eu tenho certeza que você vai fazer o possível para que seja.

Primeiro, ele ficou confuso. Foi difícil aceitar as palavras dela, aceitar a gratidão. Quando ele finalmente conseguiu, sorriu de felicidade. Felicidade por ela e por ele mesmo.

— Seu nome. Eu nunca perguntei. Qual é o seu nome?

— Nome? — Ela riu. — Escravos demi-humanos não tem isso.

— Você não é mais uma escrava.

— Então me dê um nome.

Renato pensou um pouco.

— Lírica.

— Lírica? O que significa?

Renato sorriu e coçou a bochecha, sentindo-a ruborizar.

— Lírica é poesia. Um texto lírico é um texto poético. Eu aprendi na escola. Acho que você é linda como poesia.

Ela curvou os lábios num sorriso.

— Eu gostei. Acho até que se parece com “lírio”. Eu realmente amo essas flores.

— Também acho que se parece.

— Obrigada pelo nome, Renato. Agora, nós temos um laço.

Ele sentiu as bochechas esquentarem. Estava se sentindo um tanto tímido. Sorriu.

— Lírica, agora eu preciso ir. Volto em breve. E, logo, você poderá acordar.

— Certo, Renato.

Ele fechou os olhos, se preparando para acordar.

— Renato…

— O quê?

— Pode me chamar pelo nome mais uma vez? — Sobre a pele clara das bochechas, havia um leve rubor. Os olhos acobreados estavam brilhantes. E as orelhinhas se balançavam pra frente e para trás de um jeito engraçado. — É que… eu adorei o som dele.

— É claro, Lírica. Tchau, Lírica. Até daqui a pouco… Lírica.

E então Renato acordou. Estava deitado na cama, ao lado da demi-humana. Ele sentou-se e olhou para Clara, que o encarava impaciente.

— Clara.

— Sim.

— Precisamos encontrar uma forma de quebrar a punição do escravo da Lírica.

— De quem?

— Da Lírica.

— Peraí! Ela tem um nome? — Clara fez uma careta incrédula.

— Eu dei esse nome a ela.

— Você fez o quê??????

— Dei um nome a ela, ué.

— Ai, Renato! Você não tem jeito mesmo! Não passa de um mulherengo!

— Ué, mas seria estranho ela não ter nome, não é? Ela pediu que eu desse um nome a ela e eu dei.

— Nomes, para os demi-humanos, tem um significado todo especial, sabia, gênio?

Ele ergueu uma sobrancelha, confuso. Clara prosseguiu:

— Dar um nome a um demi-humano significa pedi-lo em casamento. E aceitar o nome, significa aceitar o pedido. Então, se você deu um nome a ela, e ela aceitou, vocês estão noivos!

— Peraí! Quê?!

— “Que” digo eu! Mulherengo! Cafajeste! Seu safado!

— E por que ninguém me avisa sobre esses costumes estranhos?!

— E por que você não pensa antes de sair pedindo as pessoas em casamento, hein?

— Porque eu não sabia que era um pedido de casamento!

Clara pôs a mão no queixo, pensativa.

— Hum, vou conversar com Jéssica e Mical sobre isso. Acho que vamos ter que dar um sumiço nessa demi-humana.

Ela riu malignamente.

— Calma! Calma! Não vamos precisar fazer nada!

— Aquelas duas vão mesmo te queimar na fogueira agora!

— Mas eu não tive culpa!

— Isso é o que todo cafajeste sempre diz!

— Agora já foi. Eu não posso simplesmente desnomear ela.

— Tá gostando disso né?

— E-eu? Mas eu claro que não.

Ele estava.

— Droga! Competir com aquelas duas não seria problema. Elas são tão lerdas que nem notariam a derrota. Mas uma demi-humana?! Demi-humanos são mais doidos do que parecem. E alguns deles leem mentes! Como a gente pode esconder um segredo de alguém que lê mentes?! Renato, diz que essa garota não tem poderes telepáticos!

— Er… então… como eu posso explicar…

— Ela tem?

— Tem.

— Ai, meu Satã!

— O que foi? Por que toda essa gritaria? — Foi Jéssica quem entrou no quarto. Ela tinha grandes olheiras em volta dos olhos e estava com os cabelos bagunçados. E tinha uma careta azeda de alguém com dor de cabeça.

— O que foi que enquanto você dormia, Jéssica, e eu ingenuamente prestava um favor, o Renato, rei dos cafajestes, pediu essa demi-humana em casamento!

— Hã?

Jéssica não entendeu direito. Ainda estava meio tonta por causa do consumo elevado de álcool ( e vale acrescentar, com uma sede que a faria beber o rio Amazonas inteiro).

— Ele pediu a demi-humana em casamento! — repetiu Clara, dando uma pausa breve após cada palavra.

Jéssica suspirou e baixou os ombros.

— Eu vou  lá embaixo buscar as armas.

— Certo.

— Armas?! Não precisa disso não! Ei, Jéssica, peraí, volta aqui! Vamos conver…

— Ela já foi, Renato. Quem será que vamos castigar primeiro? Você ou essa tal Lírica? Estou em dúvida.

— Calma aí! Calma aí! Depois a gente conversa sobre isso. Agora eu preciso encontrar o Hiro!

Renato se desvencilhou dela e foi em direção à porta.

— Tá fugindo, né?!

— Não. Não é isso! É que eu combinei de encontrar o Hiro agora.  Mais tarde eu tô de volta.  — Ele estava visivelmente nervoso. Uma gota de suor descia por sua testa. — Por favor, não faça nenhuma maldade pra Lírica enquanto eu não estou.

Clara bufou.

— Sabe, Renato, eu acabei de sentir uma vontade súbita de explodir suas partes íntimas.

Ela lhe direcionou um olhar afiado.

— Tenho certeza que você vai se conter e não vai fazer nenhuma maldade. Nem a ela e nem ao meu parceiro Malaquias.

O tom de voz dele deixava claro que ele não tinha tanta certeza assim.

— Até mais, Grandiosa Suprema e Linda Súcubo!

Disse isso e correu.

— Ei, volta aqui, não adianta puxar meu saco!

*

O motorista de aplicativo parou o carro em frente ao barzinho. Renato pagou e desceu. Em frente ao estabelecimento, havia algumas mesas onde alguns homens bebiam cerveja. 

Renato entrou. Lá dentro, tinha várias mesas de sinuca, e uma música do Zé Ramalho tocava no Jukebox.

Renato viu Hiro numa das mesas. Estava jogando, no momento, inclinado sobre a mesa, mirando o taco na bola branca, e analisando mentalmente o percurso que ela faria. Bateu. A bola rolou, quase atingiu a bola colorida que era o alvo, mas passou reto, bateu na parede da mesa, voltou e caiu sozinha num buraco.

Hiro xingou em pensamento enquanto fazia uma careta.

Junto dele também estavam Alicia e Tâmara, que estudavam na mesma classe.

Renato se aproximou.

— Oh, olha quem apareceu! — disse Hiro, cumprimentando o amigo.

— Renato! Que bom que veio. — Tâmara lhe direcionou aqueles grandes olhos cor de âmbar.

— Ele apareceu mesmo! — disse Alicia. — Tava preso?

— É claro que ele não tava preso! — disse Hiro. — Ele tava se escondendo da polícia!

— Não era isso não, gente! — disse Renato.

— E o que era então? Onde estava? — Alicia ergueu uma sobrancelha.

— É uma longa história. Depois eu falo. Mas, agora eu quero saber: Hiro, vocês sabem mesmo quem é o Assassino do Soneto?

— Sabemos! A Tâmara viu ele!

— Sim, eu vi.

— Viu ele mesmo?

— Sim… eu vi… o nosso professor de português. Eu tava no shopping, fui assistir um filme, sabe? E aí eu vi ele na livraria. Ele tava junto de uma menina… acho que ela era uma aluna do terceiro ano. Eu fiquei curiosa com aquilo. Achei estranho e fui bisbilhotar. Eu segui eles. E aí, eles finalmente foram pro estacionamento, entraram no carro e foram embora. Eu não sei pra onde ele levou ela, mas eles saíram, e no outro dia ela foi achada morta com o primeiro verso do poema escrito na barriga. Só pode ser ele! Ele matou ela!

— O primeiro verso? — Renato franziu o cenho.

— Sim! O primeiro verso! Porque enquanto você estava sumido, os versos terminaram. Ele completou todas as quatorze mortes; e aí, pelo visto, voltou o poema do início. Ele vai continuar matando! Precisamos fazer alguma coisa!

— Eu concordo com ela, Renato — disse Hiro. — Precisamos fazer alguma coisa. Precisamos pegar esse cara.

Alicia movimentou a cabeça, concordando.

— E por que a gente apenas não chama a polícia?

— E acha que a gente não tentou? — disse Hiro. — Sabe o que a polícia fez? Nada! Foram lá na casa dele, fizeram algumas perguntas, e foram embora. Nem procuraram nenhuma prova! Nada! Então a gente precisa achar essa prova pra levar pra polícia! Se não for a gente, não vai ser mais ninguém.

— Eu concordo — disse Alicia. — A gente precisa fazer alguma coisa, senão ele vai matar mais gente.

Renato suspirou.

— Pelo jeito, a confusão sempre me persegue,  assim no Inferno como na Terra. — Suspirou resignado. — E qual o plano?

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Olá, eu sou Max Sthainy!

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