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Assim que aquela família de luto terminou as últimas despedidas, foram embora, relutantes. A senhora continuava inconsolável e tiveram que ajudá-la na hora de entrar no carro. Poucos minutos depois, o cemitério retornou ao silêncio costumeiro. O único som que se ouvia era o cântico melancólico de um grilo, num cricrilar constante.

A lua, quase completamente cheia, brilhava soberana no céu com seu séquito brilhante de estrelas. Estava gigantesca, talvez maior do que deveria. Alguma coisa tinha mexido com o equilíbrio do mundo; alterado alguma engrenagem.

As árvores, com galhos retorcidos e secos, junto dos túmulos e cruzes, davam uma aparência gótica ao local. Uma brisa gelada sobrava, agitando as folhas de bananeira na parte mais distante do cemitério, escondidas em penumbra..

Clara passou a alça da bolsa sobre o ombro e disse:

— Vamos indo. Renato, faça a gentileza de pegar as ferramentas no porta-malas, certo?

Ele assentiu. Abriu o porta-malas do Corolla e pegou a pá que tinham trazido.

— Deixa que eu te ajudo — disse Tâmara, se aproximando. Ela pegou a caixa de madeira.

Clara, na entrada do cemitério, fez uma mesura respeitosa antes de entrar. Os outros fizeram o mesmo, embora Tâmara ainda tivesse dúvidas sobre a necessidade disso.

Chegaram no túmulo recém fechado. Havia uma caixa de concreto sobre a terra, que funcionava como uma elevação. Foi colocada ali já pronta, portanto, o concreto já estava endurecido, e a única coisa que mantinha a tampa no lugar era o próprio peso. 

Clara retirou a grande coroa de flores de cima do túmulo.

— Vamos la, Renato. Vamos empurrar essa tampa — disse ela, segurando num dos lados largos da tampa (que tinha o formato de retângulo).

Renato assentiu e segurou junto dela.

— Ei, você, princesinha homicida! — disse a súcubo, se dirigindo a Tâmara. — Você é forte, não é? Por que não nos dá uma mãozinha também?

Tâmara deu de ombros.

— Humpf, só vou ajudar porque é para o Renato.

Mical e Jéssica, que não tinham força sobrenatural, ficaram vigiando para ver se alguém se aproximava. Jéssica estava com seu fuzil atrás das costas, com a alça presa ao pescoço; e a bazuca de Mical estava no chão, apoiada numa árvore próxima.

A tampa de concreto foi movida para o lado. A caixa de concreto estava praticamente vazia, sobre o chão de terra fofa.

— Sua vez, Renato. Eu te ajudaria, mas não quero quebrar minhas unhas, entende?

— É claro que entendo — respondeu ele com um sorriso e meteu a pá na terra.

Sua força e resistência estavam altas, em parte por causa do treinamento, em parte por causa das lutas que tivera, então ele não teve problemas em remover toda aquela terra cobrindo o caixão. Foi bem rápido.

Minutos depois, tinha um monte de terra ao lado de um grande buraco no chão. E puderam ver o caixão de madeira. Estava novo.

Renato, que ainda estava dentro do buraco, com a respiração ofegante, apoiou a pá no ombro e disse:

— Isso me lembra do dia em que eu fiquei preso dentro de um caixão. Não foi muito legal.

— Imagino que não tenha sido — disse Clara, e pulou pra dentro do buraco. — Vamos erguê-lo. Vocês aí, vamos levantar o caixão, então vocês peguem pelas alças e puxem!

— Certo! — respondeu Jéssica.

As três garotas ficaram em posição, e assim que Renato e Clara levantaram o caixão, elas seguraram e puxaram. Logo, o caixão foi colocado sobre o chão, ao lado do monte de terra.

Tâmara sentiu um arrepio na espinha e olhou em volta, de canto de olho.

— Estranho. Sinto que tem alguém observando a gente.

Clara sorriu.

— É porque tem. Vamos terminar isso logo. Odeio cemitérios.

Abriram a tampa do caixão. Deitada, com o corpo coberto de flores coloridas, estava uma garota. Era jovem. Talvez tivesse algo em torno de vinte anos. Pele clarinha, cabelos pretos. Seus lábios delicados pareciam curvados num sorriso discreto.

— Parece até que ela tá dormindo — disse Mical.

— Acho que ela tá em paz — respondeu Jéssica.

— Sim, sim. Em paz… — disse a súcubo, como se nem estivesse ouvindo, e mexendo no interior de sua bolsa, procurando algo.

— Do que será que ela morreu?

Quem ergueu a questão foi  Tâmara. Ela olhava a garota morta com certa curiosidade. Chegou a tocá-la.

— Será que doeu? Foi morte natural ou alguém a matou? — Ela leu o nome na coroa de flores. — Vou procurar notícias sobre ela depois. 

— Aqui — disse Clara. Ela segurava uma seringa numa mão e uma pequena pedrinha transparente na outra. — Segura.

Após entregar a pedrinha para Renato, a súcubo se aproximou do caixão e ficou alguns segundos encarando a garota morta.

— Certo. Vamos começar.

Clara, usando os dedos indicador e polegar, abriu um dos olhos da garota morta, revelando uma pupila escura, muito dilatada. Ela afundou a agulha da seringa dentro do olho do cadáver e puxou o êmbolo, sugando aquele líquido espesso e esbranquiçado para dentro da seringa.

— Me dê a pedra, Renato.

Assim que pegou o pequeno cristal de quartzo, ela apertou a seringa sobre ele, de modo que o líquido esbranquiçado, do interior do olho cadavérico, fosse derramado sobre ele.

Renato abriu a caixa de madeira que trouxeram e meteu a mão, tirando o Slime Rouba-Rostos de dentro.

— E agora… — disse ele —, eu deixo isso grudar no meu rosto, certo?

— Exatamente — respondeu a súcubo.

— Isso aqui tá ficando meio bizarro — disse Tâmara.

— Já esteve pior — respondeu Jéssica.

— Então é assim que vocês se divertem?

Jéssica deu um sorrisinho.

— Prefiro não comentar.

Tâmara lançou pra ela um olhar desconfiado.

Renato, com alguma relutância, aproximou aquela gosma sem forma definida, transparente, de seu rosto.

Quando a aproximou o suficiente, a criatura pulou rapidamente sobre seu rosto e se grudou a ele.

Olhar para o rosto de Renato, através do corpo ondulante da criatura, era como olhar para um rosto deformado e brilhante.

Logo, a criatura sumiu completamente e não havia mais nada além do rosto de Renato.

O garoto levou a mão ao rosto para sentir a criatura.

— Não tá aqui! Não sinto ela.

— Não sente, mas ele tá aí. Slimes Rouba-Rostos são parasitas e se especializaram, ao longo da evolução, em sugar a energia vital de seus hospedeiros sem que fossem notados. Ele fica invisível para todos; mas nós ainda conseguimos senti-lo se o tocarmos, mas você nem sentir a presença dele consegue. Ele bloqueia sua percepção a respeito dele.

— Ele tá sugando minha energia vital agora? — Renato pareceu preocupado.

— Sim.

— Ei, você sabe que eu preciso dela, né? Não posso deixar esse monstro fazer isso aí, não! Será que eu vou ficar bem?

— Fique tranquilo. Levaria meses até uma pessoa normal morrer. Talvez, em você, anos. E você só vai ficar com isso algumas horas.

— Entendi.

— Agora, Renato, segure esta pedrinha.

Assim que o garoto pegou a pedra com a mancha branca de fluido de olho, ele simplesmente desapareceu. Foi como se o ar o engolisse.

— Espera! O que aconteceu? — A voz dele veio sussurrada através da brisa. — Tá tudo estranho! Tá tudo meio apagado! O que houve?

— É porque a luz tá te ignorando, Renato. Por isso você não consegue enxergar direito. Mas ainda consegue ver alguma coisa.

— O-oque? Como assim? — Ele olhou para si mesmo. — Perai! Eu tô invisível?!

— Dur! Demorou pra notar, hein?

— Ah, foi mal por ser lerdo, mas é que esse não é o tipo de coisa que acontece todo dia, sabe?!

— Você já deveria ter se acostumado. — Ela estendeu a mão. —  Agora, ponha a pedrinha na minha mão.

E assim que ele o fez, voltou a ser visto. A invisibilidade acabou.

— Magos antigos descobriram que se juntar quartzo mais fluido de olho de um cadáver fresco, e dar pra alguém que está sendo parasitado pelo Slime Rouba-Rostos, você fica invisível. Legal, né?

— Legal? Legal é pouco! Isso é foda pra caralho! — Renato já estava pensando nos usos que isso poderia ter… na escola… nas localidades do banheiro feminino…

Foi quando a brisa pareceu mais gelada; e o vento uivou. As folhas de bananeira ficaram muito agitadas. Um sino distante ecoou, como um presságio de morte, junto de uma gargalhada gutural, porém lenta. Vinha de todos os lados.

Mical, assustada, se aproximou de sua irmã

— O-o que tá acontecendo? — gaguejou.

Tâmara olhava para todas as direções, com canto de olho, tentando identificar de onde vinha aquela presença.

Clara suspirou.

— Ele chegou.

O sino distante tocou mais uma vez e parou. A gargalhada também parou.

Então, o cadáver da garota começou a se mover. Primeiro foram os braços, depois os dedos dos pés. Logo, todo o corpo tremia, como se estivesse em convulsão. E então, ele ergueu a parte superior do corpo, se sentando. E, ao se inclinar pra frente, seu rosto quase tocou suas coxas. Moveu a mão até a terra do chão e desenhou com o dedo: era uma linha vertical, de onde três pontas se ramificavam, e das três pontas, mais três pontas, como um tridente triplo. Por fim, traçou uma linha horizontal cortando a vertical

Uma risada contida saiu dos lábios dela: era grave, masculina. Não durou muito.

— Ê, Caveira, firma seu ponto na folha da bananeira — sussurrou um cântico. E, seguida: — Boa noite.

— Boa noite — respondeu Clara. Os outros ainda estavam um tanto atônitos, então demoraram para responder, mas logo o fizeram, imitando a súcubo.

 Ainda, com as costas inclinadas para frente, ergueu o rosto, revelando os olhos bem abertos, com as pupilas dilatadas, e com um vazamento de líquido de um deles.

— Você… demônio. O que faz aqui? — A voz era grave, masculina. O vento frio uivou ainda mais forte, e as folhas de bananeira se agitaram enfurecidas. Até a lua pareceu brilhar mais intensamente.

— Vim para colher um pouco de humor aquoso dos olhos de um cadáver fresco.

O espírito controlando o corpo da garota assentiu.

— Entendi. Sabe que a Calunga Pequena é território neutro. Vocês, demônios… e anjos… deveriam deixar sua guerra longe daqui. Nossa missão é mais importante do que a briguinha de egos de vocês.

— Então anjos também vieram? — Clara pareceu surpresa.

Os olhos mortos se moveram para encarar Renato.

— Humano… ou quase. Eu te vi antes. Veio aqui com outro demônio há um tempo. E agora mais uma vez. Espero que não vire rotina. — Suspirou, como alguém cansado, e uma fumaça branca escapou de sua boca. — Tem uma escolha, garoto. Pode causar a destruição de tudo, ou salvar a todos. É você quem vai decidir. Espero que a raiva e a mágoa não ofusquem sua visão. No momento, tudo o que posso fazer por você é isto.

Moveu as mãos mais uma vez, apertando os dedos, 

Em seguida, os olhos mortos se moveram mais uma vez, fitando cada uma das pessoas ali, como se os julgasse.

— Não voltem para tirar mais nada da Calunga Pequena. Não serão bem-vindos se o fizerem… e pelo menos tenham a decência de enterrar esta garota com todo respeito que ela merece. A vida humana já é cheia de sofrimento; pelo menos o descanso deveria ser respeitado.

E finalmente o corpo morto caiu de volta em sua posição original no caixão, como se alguém cortasse as cordinhas de um boneco de ventríloquo.

Renato levou a mão ao peito.

— Sumiu.

— O que sumiu? — Clara ergueu uma sobrancelha.

— O desespero de antes. Não tá mais aqui.

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Olá, eu sou Max Sthainy!

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