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Renato, olhando através da janela do carro, observava a paisagem passar. Bebeu o último gole de seu copo de vinho e suspirou.

— Eu sempre soube que ele era maligno. Sabia desde o início. Mas mesmo assim eu…

— Todo mundo faz o que tem que fazer pra sobreviver, não é? Quando foi a primeira vez que você teve contato com ele? — disse Clara, sem tirar os olhos da estrada.

— Quando eu levei os tiros do Mercenário Possuído.

— Se não fosse pelo poder de Arimã, você estaria morto agora. É uma via de mão dupla.

Renato baixou os olhos, pensativo.

— Verdade. E você ainda estaria presa no Inferno com Satanakia. E Jéssica e Mical teriam sido levadas. Eu só consegui fazer alguma coisa porque peguei esse poder. Poder dele. Mas eu tenho medo de perder quem eu sou nisso, entende? Tenho medo de perder o controle mais uma vez e… não conseguir recuperar.

— Renato aceitou essa Escuridão dentro dele pra proteger a gente — disse Mical. Ela estava mais séria do que o normal, com olhos duros e determinados. — Então vamos ajudar ele a lidar com isso. Não vamos deixar você se perder, Renato.

— Sim. Vamos garantir que tudo fique bem — complementou Jéssica. — Vamos te proteger!

Clara ativou a seta do carro, para sinalizar que iria ultrapassar o caminhão à frente, e logo em seguida falou:

— Arimã não quer tomar seu corpo. Não de fato. Tomar o controle de alguém definitivamente, via conexão mental, é muito complicado e desgastante. Possessões Absolutas nunca terminam bem. O que ele quer é algo mais sutil.

— E o que seria?

— E o que mais? Ele quer que você odeie o mundo tanto quanto ele odeia. Ele quer que você destrua tudo por decisão própria e não por estar sendo controlado. É por isso que ele quer a morte dessas duas aí. Porque elas são uma péssima influência. Elas fazem você ver o lado bom da humanidade.

— E quanto a você?

Clara sorriu.

— Acho que ele não me considera uma influência tão ruim — deu de ombros. — Deve ser porque eu não ligo muito para a humanidade. Sinceramente, se você pedisse minha ajuda pra matar todos os seres humanos do mundo, eu ajudaria com um sorriso no rosto. Mas, acho que não é isso o que você quer, né?

Clara ficou em silêncio por um tempo, pensativa, e prosseguiu:

— O problema é o que aconteceria depois. Arimã iria realmente querer destruir tudo. Não ia sobrar nada. Nem Terra, nem Céu, nem Inferno. Toda a criação seria reduzida ao Caos Original. E, pra ser franca, a ideia de desaparecer junto de todo o resto não me agrada muito.

O garoto olhou para as próprias mãos. Por um momento, teve curiosidade se conseguiria fazer aquele fogo negro surgir por conta própria. Parecia um ataque muito forte. Mas, ao mesmo tempo, um frio lhe subia pela espinha, e sussurrava em seus ouvidos, com o medo mais puro, medo de que ele pudesse perder o controle definitivamente. E, por perder o controle, ele não estava pensando em uma possessão, mas na possibilidade  dele mesmo se tornar algo maligno.

Depois de um tempo de silêncio mórbido, Jéssica reconheceu a paisagem em volta, e se lembrou da razão de estarem na estrada. O priorado…

— … está perto.

*

No terceiro dia de viagem, passaram por um lamaçal gigantesco. A van ficou atolada e, não importava o quanto as rodas girassem, ela não se movia.

Clara, indignada, saiu do carro, sujando os pés na lama, e foi até a parte traseira da van.

Renato, quando viu o que ela estava tentando fazer, foi ajudá-la.

— Certo. Somos um demônio e… você… seja lá o que você for. E tem as duas garotinhas aí que não ajudam muito, mas…

— Se não quer nossa ajuda, é só falar, sua maldita! — disse Jéssica, com uma veia saltando na testa.

— Vamos lá! A gente tem que dar conta! — declarou a súcubo.

Jéssica, Clara e Renato puseram toda a força que tinham para empurrar a van, enquanto Mical pisava no acelerador e direcionava o volante.

A súcubo concentrou nas mãos toda a energia mágica que conseguiu; e Renato fez o mesmo. Mas o carro não se moveu do lugar, e o pior, o movimento das rodas jogou barro e lama para o alto, sujando os três ali.

— Droga! Esta estrada tá toda zuada. Não tinha outro caminho que pudéssemos pegar, não, freirinha? — reclamou Clara, tirando a lama da testa.

Jéssica balançou a cabeça.

— Esse é o único caminho.

— Porcaria de lama! Eu preciso de um pouco de uísque…

Clara foi até o carro e pegou uma garrafa de Bourbon e serviu num copo.

— Eu queria um suquinho de laranja… — disse Mical, cabisbaixa.

Foi quando Clara franziu o cenho e olhou para a estrada, na direção que eles tinham vindo. Afiou os ouvidos.

— Tem alguém vindo.

Não demorou muito e o caminhão boiadeiro, cheio de gado, os alcançou. O cheiro de esterco invadiu as narinas sem pedir licença.

O caminhão parou logo depois, evitando a pior parte do lamaçal, e o motorista desceu.

— Parece que estão com problemas aí… — disse o homem de meia idade, barrigudo e usando um boné escrito “Alto Locatelli”.

— É. Será que pode nos dar uma ajudinha? — disse Clara, charmosa.

— É claro. Vou pegar o cabo de aço.

Depois de voltar para a cabine, voltou trazendo um cabo de aço enrolado.

— Ei, garoto, vem aqui me ajudar a prender isso aqui na traseira do caminhão.

— Certo.

— As garotas podem esperar na van mesmo. Isso aqui é serviço de homem.

Mical e Jéssica olharam meio relutantes, mas se afastaram para evitar se sujar ainda mais com a lama. Clara apenas sorriu e saiu da vista deles. Se mesclou com o vento.

O caminhoneiro botou a mão na barriga e fez uma careta.

— Ah, eu tô gordo e velho demais pra ficar me abaixando assim. — Entregou o cabo de aço para Renato. — Prende a ponta no gancho que fica embaixo da traseira do caminhão, garoto.

Renato pegou o cabo e olhou para o caminhão. Pôde ver os animais através das frestas na carroceria de madeira, se agitando, mugindo e fedendo muito. O assoalho era alto, devia ter uns cinquenta centímetros de altura, e estava todo coberto de merda de boi.

O garoto se abaixou para procurar o gancho. Enquanto tateava a lataria, sem muita visão de onde estava pegando, sentiu uma pontada no cérebro. Seus pelos ficaram arrepiados e todo seu corpo se moveu para o lado, por puro reflexo. E os tiros atingiram somente  o chão.

— Merda! — gritou o barrigudo, com o trinta e oito nas mãos. E mirou em Renato novamente.

Mas o garoto já estava esperto e rolou para debaixo do caminhão, evitando os tiros.

— Desgraça! Vai morrer, moleque! — O caminhoneiro pigarreou e cuspiu no chão, e rodeou em volta do caminhão, procurando Renato.

Foi quando ele sentiu algo gelado soprando em seu ouvido, como uma bruma fantasmagórica, e uma mão agarrou-lhe a nuca por trás. O medo que tomou seu coração foi tão grande que ele apenas soltou a arma enquanto tremia. Tentou se mover, mas não conseguiu. Clara o estava segurando firmemente.

— Mirou nele primeiro porque achou que ele seria a maior ameaça entre nós, não é? — sussurrou Clara, no ouvido do homem. — Se enganou. A maior ameaça aqui sou eu.

Ele não entendia porque, mas todo seu corpo tremia de medo e um frio insuportável tocava sua espinha. E seu único reflexo foi mijar na roupa.

— Que repugnante! — disse Mical, se aproximando. — Se mijou feito criança.

— Nojento — disse Jéssica.

Clara riu.

— Não sejam malvadas meninas. Ele só tá apavorado.

— Tá cheio de gente escondida no caminhão — disse Renato, se aproximando.

— É verdade — disse Clara. — Nosso amigo aqui é um traficante de pessoas, não é? Pude ouvir o lamento dessas mulheres de longe. E achou que podia fazer uma grana extra com a gente, três lindas garotas, não achou? Que idiota. Essa foi a pior escolha da sua vida.

O homem se debateu, tentando escapar das mãos de Clara, mas ela era muitas vezes mais forte.

— E-eu não sei do que tá falando! E-eu tenho dinheiro! Muito dinheiro! Vocês podem levar! É um negócio muito lucrativo, sabe?

Renato abriu a parte traseira do carro boiadeiro e subiu na carroceria. Os animais, assustados, se afastaram, mugindo.

O garoto meteu a mão numa tábua pregada no assoalho e a puxou, arrancando-a. O fundo falso foi revelado. Havia muitas mulheres; algumas inconscientes, outras parecendo dopadas. Estavam sujas, no escuro, e nuas.

— É-é um negócio lucrativo, sabe?! — argumentou o homem barrigudo. — E-eu consigo dinheiro pra vocês se quiserem.

Clara riu, achando o desespero dele um tanto engraçado.

— Eu até podia fazer vista grossa, sabe? Não sou nenhuma moralista. Cada um faz o que precisa pra ganhar a vida, não é? Mas você tentou machucar meu Renato. E isso não tem perdão. 

— Não tem perdão! — concordou Mical.

Jéssica correu até Renato para ajudar a tirar as garotas de dentro do assoalho. A maioria não podia se mover sozinha; e, as que conseguiam, eram lentas. Provavelmente tinham sido drogadas.

— E qual punição deveríamos dar a este pedaço de lixo? — disse Clara. Seus olhos brilhavam num vermelho intenso.

— Ele está sob seu poder, demônio. Faça o que quiser com ele. A misericórdia de Deus não o alcança mais. — respondeu Jéssica.

Clara sorriu ao imaginar o que faria.

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