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O caminhoneiro tentou se livrar das mãos de Clara; ele se debateu, tentou golpeá-la, mas sem sucesso. Tudo o que conseguiu fazer foi perder o equilíbrio e cair com a enorme barriga sobre o chão. Afundou no barro e na lama com um grande barulho de “plóft”. Seu boné do “Aldo Locatelli” caiu longe, sobre as gramíneas na beira da estrada.

Ele se mexeu, desesperado, tão desorientado quanto uma tartaruga caída com o casco para baixo tentando se levantar.

Clara pôs o pé sobre as costas dele e riu.

— Por que as moscas sempre se debatem tanto quando ficam presas na teia de aranha?

Mical observava a cena um tanto perplexa. Ela sabia que aquele homem era mal e merecia tudo aquilo, mas o coração bondoso dela não podia evitar de sentir um pouco de pena. Ao mesmo tempo, achava legal o poder de Clara. Era um demônio, é claro, mas também era mulher; e Mical nunca tinha visto mulheres tão fortes antes. No priorado, todos eram escravos; as mulheres, mais ainda.

Todas essas contradições e pensamentos conflituosos a deixavam tonta e faziam florescer o sentimento de culpa.

Jéssica e Renato estavam ajudando as mulheres a saírem pelo buraco no assoalho da carroceria, enquanto os bois se apertavam uns contra os outros no outro canto. Os dois estavam cercados de merda e urina de boi, então o fedor era forte, mas não importava. Renato, pelo menos, já tinha sentido aromas muito piores no Inferno. Aquilo ali era o mesmo que perfume francês (talvez sendo usado por uma pessoa não muito adepta a banhos).

Clara ergueu o caminhoneiro, puxando-o pela gola da camiseta listrada; e fazendo um biquinho com os lábios, começou a assobiar uma melodia suave e melancólica, em Escala Menor. Parecia o tipo de melodia feita para um violino ou piano, daquelas que habitam salões tristes sem ninguém para ouvir. Era uma canção de abandono; de morte; de solidão.

— Maldição ut somnium! Uma canção de pesadelos — sussurrou Clara próximo ao ouvido dele.

A primeira coisa que o homem sentiu foi um pequeno incômodo no olho esquerdo, como uma coceira que foi aumentando gradativamente. Era como se algo estivesse se mexendo, rastejando, naquele espaço apertado entre o olho e a pálpebra. E então a mosca saiu, com suas perninhas ainda coladas à umidade do olho, e bateu as asas.

Ele levou a mão ao olho, confuso, tremendo, e viu os vermes que estavam em sua mão, presos dentro de mini cavernas cavadas na carne. A berne estava tão avançada, que a mão tinha um aspecto de maracujá; e o fedor era de carne podre. Assim que viu aquilo, sentiu uma dor aguda e terrível.

O céu estava completamente escuro. Toda a luz tinha sumido e só restava o escuro vazio, gelado e estéril. E vultos negros, de aspecto cadavérico, fantasmagóricos, cruzavam os ares, sussurrando lamentos e gemidos de dor.

Completamente ensandecido, tomado pelo terror e pela loucura, o homem correu o mais rápido que conseguiu, gritando, choramingando; mas tropeçou nos próprios pés e caiu na lama. Com a queda, seu rosto bateu contra uma garrafa de vidro quebrada que estava enterrada na lama, e o vidro cravou-se em sua carne, rasgando-a.

Ele se levantou, atônito, sem forças, com os pedaços de vidro fincados em seu rosto sujo de lama e sangue; e cortes grandes o suficiente para expor carne viva e gordura. Deformado.

E os espectros que voavam sentiram o cheiro de sangue e notaram sua presença, e foram na direção dele. E o homem cambaleou, tentando fugir, se meteu dentro do mato e, lá dentro, tropeçou mais uma vez e caiu sobre um ninho de formigas. Os insetos o cobriram, mordendo, ferroando. A dor era excruciante e vinha de todos os lados, de cada milímetro de pele que tinha, e ele só se debatia e tentava tirar os insetos de si em completo desespero. Mas ao passar as unhas na pele, tentando arrancar as formigas e os vermes de si, tudo que tirava era pele, rasgando-a entre as unhas.

— O que aconteceu com ele? — perguntou Renato, perplexo.

Clara deu de ombros.

— Transformei a vida dele num pesadelo sem fim. Nessa hora, ele está tendo visões terríveis, e experimentando as piores sensações possíveis. Basicamente, ele tá preso dentro de uma alucinação, um delírio de puro terror. Não importa se nada daquilo é real, porque para ele é. O cérebro não entende muito bem a diferença entre vida real e sonho; e ele está sonhando acordado. O feitiço que ativa a maldição exige muita energia, então eu não sabia se ia funcionar, mas funcionou — respondeu ela, com um olhar indiferente.

— Por quanto tempo ele vai ficar assim? — perguntou Mical?

— Aí depende — Clara sorriu. —  Se o coração dele for fraco, deve durar mais uns trinta ou quarenta minutos até o ataque cardíaco; mas se o coração dele for forte, aí vai durar uns quatro dias, até ele morrer de desidratação.

— Então só termina quando…

— Sim. E vai ser uma morte bem sofrida. — Clara espreguiçou-se. — É só uma pequena amostra do que espera ele depois da morte. Poucas pessoas veem o Inferno  antes de irem pra lá de fato. É um privilégio.

— Que coisa horrível… — Mical estava chocada.

— Ele também fazia coisas horríveis. A punição divina sempre chega às pessoas más — disse Jéssica, contemplativa.

Clara revirou os olhos.

— Preste atenção, servinha do Senhor: não foi Deus quem levou punição àquele homem. Fui eu! A minha punição chegou até ele! Deus ficou olhando ele traficando mulheres esse tempo todo e nunca fez nada a respeito! Eu fiz.

Jéssica revirou os olhos.

— Somos todos instrumentos da justiça divina, súcubo. Até mesmo você.

— Certo, certo. Esse papo me deixa entediada. A gente tem um Priorado pra visitar, não tem? Pois vamos indo logo, filha de Quemuel!

— Não podemos apenas abandoná-las aqui — disse Renato, olhando em direção às várias mulheres atordoadas e semiconscientes.

Aquelas que estavam em estado um pouco melhor, tinham saído do esconderijo no assoalho e estavam sentadas com as costas apoiadas nas paredes internas da carroceria do caminhão, dividindo espaço com os bois. 

O olhar delas era vago, perdido em algum ponto de nada. Tentavam falar, mas tudo o que saía de seus lábios era um murmúrio sem sentido, um gemido ininteligível. Porém, a maioria delas  estava desmaiada mesmo e sequer tinha saído do esconderijo no assoalho.

Estavam todas nuas, machucadas, com hematomas pelo rosto e corpo. Lábios inchados e cortes no rosto.

Clara levou os dedos às têmporas e as massageou.

— Ai, meu Satã! Aparentemente, eu tô viajando com um grupo de escoteiros!

A súcubo fechou os olhos e direcionou uma de suas mãos em direção ao caminhão, onde as mulheres estavam.

Logo em seguida, abriu os olhos e sorriu.

— Prontinho — disse alegremente.

Renato franziu o cenho, tentando entender o que estava acontecendo.

— Onde… onde eu tô? O que houve? — disse uma das mulheres. Sua consciência tinha voltado.

E, de repente, mais mulheres começaram a sair do esconderijo, confusas, porém conscientes.

— O que aconteceu? Cadê minhas roupas?  — disse uma.

— Onde estamos? — perguntou outra.

— Ai, que dor de cabeça! — disse outra.

— Moças, alguma de vocês sabe dirigir um caminhão? — perguntou Clara.

Depois de alguns segundos sem resposta, uma delas falou:

— Eu sei.

— Ótimo! — Clara jogou um molho de chaves para ela, que a mulher aparou no ar.

— Tenho certeza que vocês conseguem achar o caminho de casa. — Clara suspirou. — Ah, eu tenho que parar de fazer tantas bondades assim, ou posso acabar recebendo o perdão de Deus — disse, irônica, e gargalhou gostosamente.

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Olá, eu sou o Max Sthainy!

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