“Como isso acabou assim?”
— Conforme as leis que regem este reino, uma invasão à propriedade da nobreza é um crime grave, por ser normalmente causada por monstros como orcs, eles são mortos imediatamente, mas como os invasores desta vez foram humanos estrangeiros, eles serão mandados para a capital real, para julgamento. — O guarda mostrou o livro que tinha em mãos para os companheiros, e, na verdade, ele parecia ser o único alfabetizado ali, pois os outros olharam com estranheza.
Kurone permanecia na cela em silêncio, perguntando-se internamente como acabou sendo preso em seu primeiro dia no outro mundo. Não era assim que acontecia nos mangás e light novels que lia! “É tudo culpa dessa idiota.” O olhar furioso voltou-se para a garotinha de cabelos prateados — dormindo profundamente.
Rory caiu no chão sem explicação quando ia dar o golpe de misericórdia nos aventureiros da vila. Aproveitando-se de sua brecha, tomaram dela a arma e amarraram tanto a garotinha quanto Kurone, embora tenha sido inútil desarmá-la, pois, alguns segundos depois, o fuzil desmaterializou-se.
— E é porque ela tava sendo tão arrogante… — O jovem recostou a cabeça na parede fria da cela e fechou os olhos lentamente. Nunca se passou pela sua cabeça que fosse passar a primeira noite naquele mundo dentro de uma cela, vigiado por guardas armados até os dentes e sem direito a um jantar decente, e o mais importante, sem a companhia dos seus mangás eróticos.
O cansaço foi tomando conta do corpo, lentamente. O frio da cela o obrigou a usar um lençol velho que estava em cima da cama e, em poucos segundos, o garoto pegou no sono — não era para menos, afinal ele passou o dia sendo arremessado de um lado para o outro por sua pequena companheira de força sobre-humana.
Após fechar os olhos, o tempo se passou absurdamente rápido, era a primeira vez que experimentava o sono de um assalariado que precisava acordar cedo. A primeira coisa que viu ao abrir os olhos foi um homem, de barba por fazer, encarando-o feio.
Aquele era o líder dos guardas que possuía um nome peculiar, mas por não ser alguém com aparência de figurante, não lembrava mais.
— O nobre responsável por essa terra veio ver vocês… Ei você tá me escutando, acorda logo! — Irritado com Rory, dormindo profundamente, o homem passou a espada nas grades, produzindo um som insuportável.
— Fica quieto, filho de uma rameira mal-comida. Que desagradável me acordar logo cedo. Tá querendo morrer, é? — A loli mal-humorada acordou olhando feio e praguejando em um tom que lembrava muito um delinquente adolescente boca porca.
— Você acordou!? Achei que tivesse morta depois daquilo.
— Faça-me um favor, uma queda daquelas nunca me mataria.
— Como consegue ser tão arrogante considerando sua situação?
A conversa da dupla ignorou totalmente a presença do homem do outro lado das grades. O som insuportável da espada correndo pelo metal chamou a atenção de Kurone e Rory novamente.
— Me acompanhem, o marquês Edward veio ver os famosos invasores. — Segundos antes de abrir a cela, o guarda tremeu diante da sede de sangue vinda da loli de cabelos desarrumados. — N-não tentem nenhuma g-gracinha, tá? Os guardas que estavam de folga já estão todos aqui!
— Alguns guardas a mais não fazem nenhuma diferença para mim. — Rory fez com que o guarda ficasse com mais cautela com relação aos dois estrangeiros. Quantos problemas aquela garotinha podia causar em tão pouco tempo?
A cela onde a dupla estava era localizada no subterrâneo, um local reservado para criminosos perigosos. Não havia nenhum outro prisioneiro nas outras celas, ou se houvesse, não podiam ser visto por eles, já que as tochas da parede só iluminavam o caminho estreito para fora do subterrâneo, e não o interior do que estava atrás das grades.
— Esse lugar me dá arrepios.
— Nem me fale — o guarda respondeu ao comentário de Kurone com uma expressão de desgosto.
Adiante, a porta para a saída estava aberta e outro guarda esperava ao lado dela.
— O marquês Edward está no seu escritório, senhor Orcus!
“Ah, era Orcus!”
— Ótimo, vou levar os dois delinquentes até lá, continue o bom trabalho.
Diferente do corredor do subterrâneo, o da superfície da prisão era totalmente iluminado pela luz solar adentrando pelas janelas. Uma das portas do corredor, à esquerda, foi aberta pelo guarda — provavelmente, aquela era a do escritório citada pelo companheiro. Quem os aguardava lá dentro era a silhueta de homem alto e de cabelos longos presos por uma trança.
A pessoa parada ali certamente era o marquês mencionado pelo guarda — Edward alguma coisa. O nobre aparentava ter cerca de trinta anos, magro e de cabelos dourados, trajado com roupas elegantes de coloração vermelha e amarela. Era um perfeito nobre que se encontrava com frequência em romances de fantasia.
— S-senhor Edward, esses dois foram os delinquentes que tentaram invadir vossa terra. — O guarda, que até há pouco tempo falava de maneira grosseira, apresentou os prisioneiros educadamente para o homem à sua frente enquanto se curvava.
O nobre — Edward —, não parecia prestar muita atenção nas palavras do homem. A atenção dele estava voltada totalmente para a dupla que invadiu suas terras, mais precisamente para Rory — ela também o encarava, era bem provável estar imaginando diversas maneiras de matá-lo.
— É um prazer imenso conhecer os famosos senhores invasores, meu nome é Edward Soul Za, posso saber quais seriam vossos nomes?
— E-eu sou Kurone Nakano!
— Meu nome é Rory, apenas Rory.
— Entendo… então, se permitem minha intromissão grosseira, vós não tendes nenhum parentesco?… Ah! Perdão, peço perdão pela indelicadeza, é que vós tendes certas semelhanças no semblante, então…
Edward — que falava de maneira exageradamente rebuscada — tentou explicar o motivo de sua pergunta que foi rebatida na hora com um “NÃO” frio de Rory e um olhar repulsivo.
O nobre não tinha culpa em fazer aquela confusão, afinal os rostos semelhantes se deviam ao fato de que Rory tinha o mesmo rosto da irmã de Kurone. Foi um capricho da deusa para o jovem não esquecer de seus familiares e manter-se firme em momentos difíceis.
Mas, em contrapartida, a personalidade da garotinha era o extremo oposto de sua irmã gentil. Aquela loli ao lado de Kurone era sádica e não tinha nenhuma empatia pelos outros; um verdadeiro demônio de cabelos prateados.
— Perdoem-me se for rude, mas por que vossas pessoas invadiram a minha humilde vila?
— Bem, se nos permite explicar… na verdade…
— Hã? Sério que todos são tão burros assim? Eu queria tomar essa vila para mim e transformá-la em minha base pessoal. Também queria fazer dos aventureiros meus escravos e usar os guardas para saber notícias da capital, esses seriam úteis para evitar qualquer problema burocrático, providenciando documentos falsos.
Direto ao ponto! Kurone tentou dar uma explicação à pergunta do nobre, porém sua companheira logo interveio. Rory falou, sem demonstrar nenhuma hesitação, que sua intenção era a mais horrível possível.
Houve um breve silêncio no escritório até que…
— Quêêêêêê??? — os três gritaram quando finalmente processaram o que foi dito pela garotinha. Até mesmo o próprio Kurone não esperava aquela resposta direta, precisa e diabólica de sua companheira.
— V-você… que-quero d-dizer, a senhorita d-deve ser bem forte para ter uma i-ideia dessas… não é?… — O marquês limpava as gotas de suor, descendo da testa, enquanto tentava se recompor. Até mesmo seu sotaque requintado foi perdido por um momento devido ao choque.
— Claro que sou, agora mesmo, se quisesse, já teria matado todos vocês — Rory ameaçou com uma expressão sombria. — O que foi? Vai me atacar? Pfff!
— Argh!!! — Orcus gritou assombrado, colocando a mão na altura da cintura, pronto para empunhar sua arma a qualquer movimento em falso da garotinha.
— A s-senhorita também não tem medo. Saiba que, se quisesse, eu já teria mandado executar vocês dois. — Edward, com uma expressão feia, tentou recuperar o controle da conversa. Até aquele momento, o nobre manteve-se calmo, mas era inevitável se alterar ao interagir com a loli delinquente.
— Pode tentar — a garotinha respondeu sem qualquer hesitação à ameaça do nobre, flexionando os joelhos e entrando em base de combate.
O silêncio tomou conta novamente do escritório, todos se entreolharam sem dizer uma única palavra — com uma expressão de aflição estampada no rosto —, exceto Rory, que permanecia com sua calma diabólica de sempre.
Aquela era uma situação em que poderiam acabar sendo decapitados assim que Edward perdesse a paciência completamente e, mesmo assim, a garotinha agia de maneira imprudente.
O marquês foi em direção à mesa do escritório, sem dizer uma única palavra, apoiou uma das mãos na mesa, e…
— HAHAHAHAHAHA! Hahahaha! AHHHH! Hahaha! — Todo ar de nobreza desapareceu de Edward. O nobre riu sem parar, segurando a borda mesa com a mão direita e batendo nela com a esquerda.
Kurone e Orcus olharam confusos para o marquês, que perdeu a compostura e lacrimejava de tanto rir.
— Há quanto tempo… hahaha… eu não encontro uma pessoa tão ousada quanto você… hahaha… ou é muito corajosa, ou tem um parafuso a menos… Hahaha! — Ele continuou rindo enquanto apontava para a garotinha.
Ao perceber a intenção de Rory, Kurone tampou sua boca, a fim de que ela não pudesse entoar qualquer feitiço para atacar o marquês, que ria sem parar de sua coragem — ou falta de sanidade.
— Muito bem! Ahhh… perdoem-me, mostrei-vos um lado deveras vergonhoso por um momento. Em consideração a vós, recebê-los-ei de braços abertos, como meus convidados em minha humilde mansão. Desejo dialogar um pouco mais com vós e fazerdes perguntas…
Apesar de dizer “vós”, toda a atenção de Edward — que retomou a postura elegante — era voltada a Rory. Ele não tinha culpa, considerando que, até aquele momento, Kurone permaneceu a maior parte do tempo calado, sem demonstrar nada de especial em sua personalidade, diferente da garotinha.
— Eu recuso — Rory respondeu sem pensar duas vezes.
“Você não cala essa boca, mini-desgraça?!”
Pela terceira vez, todos ficaram em silêncio por alguns minutos.
— A senhorita não tem escolha, caso recuse, mandarei que os executem agora mesmo por suspeita de serem espiões de outro reino. — Apesar de falar sério, o nobre, dessa vez, manteve seu tom de voz suave e os olhos fechados.
— É claro que vamos aceitar sua proposta, marquês Edward! — Kurone respondeu enquanto tampava novamente a boca de Rory, para ela não dizer nada que pudesse irritar o nobre. Ele decidiu que não deixaria a garota falar mais nada mesmo.
— Vejo que é um homem sensato, senhor Nakano — disse Edward, fechando seus olhos e abrindo um sorriso elegante, dando um ar de quem tinha tudo sob controle.
Kurone deu um sorriso amarelo de volta, tentando esconder a expressão de sofrimento — já que Rory chutou uma parte delicada de seu corpo, para ele tirar a mão de sua boca.
— Orcus, venha comigo. — O marquês saiu do escritório acompanhado pelo guarda.
Alguns papéis foram assinados para a libertação de Kurone e Rory — eles também tiveram que assinar. A dupla acabou demorando mais que o esperado, pela falta de documentos daquele mundo e pelo fato do jovem não conseguir ler. Não foi fácil pedir o cancelamento do julgamento pelo “Santo” na capital, e o comportamento de Rory fez Edward perder a postura diversas vezes durante o dia.
A narração dos episódios naquela prisão seriam cômico e relevantes, mas para o bom entendedor, um parágrafo de resumo basta.
— Ahhh… que demora, já é quase noite. — O jovem apreciava o pôr do sol enquanto saía com Rory da construção. Passou-se quase um dia durante o tempo em que assinavam as pilhas e mais pilhas intermináveis de papéis.
— Aquele homem esquisito estava olhando de maneira obscena para mim. Se ele olhar novamente para mim assim, eu corto a cabeça dele.
— Por favor, não faça isso ou seremos presos de novo! Lembre-se que ele nos ajudou com os documentos. — Conhecendo Rory, tinha ciência que ela certamente não estava brincando sobre decapitar o marquês.
Uma carruagem em frente à prisão aguardava a dupla.
“Com sua licença, vou na frente preparar a recepção”, essas foram as últimas palavras de Edward. Mesmo aparentando ser alguém legal, Kurone ainda tinha a impressão de que aquela carruagem poderia os levar até alguma armadilha ou os jogar para morrer em algum deserto. Podia ser apenas paranoia, mas, por algum motivo, aquele marquês lhe dava calafrios.