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Um choro.

A vila reuniu-se ao redor da origem do barulho.

Os moradores olharam com religiosidade para aquela criança, a primeira criança a nascer após um longo tempo — os rostos enrugados dos anciões possuíam esperança e ansiedade.

Eles não eram um povo maldito! 

Não seria o fim da sua geração, havia uma chance! 

Vida foi gerada do ventre de uma das moradoras daquela vila!

— Ela se chamará Luminus — disse a mãe, orgulhosa e cansada após todo o trabalho de parto.

As pessoas ao redor comportavam-se como seres estranhos, moviam-se de um lado para o outro, inquietos, e possuíam os olhos fixos naquela criança, como se fosse um ser de outro mundo.

— E-ei… o que é isso?… — Um dos anciões apontou para as costas do pescoço da menina. Havia uma marca lá, algo que provocou uma expressão de horror de todos os presentes.

O Sigilo de Astarte era inconfundível.

***

Conforme crescia, Luminus foi tornando-se mais e mais curiosa. 

Ela gostava de acompanhar os anciões em suas caminhadas e escutava as histórias contadas com uma atenção religiosa, querendo absorver cada palavra.

Sempre andava com vestidos de gola longa, mas, ainda assim, recebia olhares de desdém de alguns moradores, principalmente das mulheres que não podiam ter filhos.

A menina já tinha ciência daquele símbolo carregado nas costas do seu pescoço, era um pentagrama dentro de um círculo, sobre a estrela, havia padrões que terminavam em espirais e uma cruz no canto inferior.

O Grande Ancião insistia que se tratava de um “sinal de nascença”. 

Mas, mesmo com aquela marca, Luminus era popular em sua vila, era a única criança da sua idade ali, na verdade, não havia outro morador que poderia ser classificado como “criança” naquele lugar.

Tinha cinco anos quando saiu sozinha da vila pela primeira vez.

Ela não podia ir muito longe, esse foi o combinado com os seus pais, e nem pretendia, pois ainda possuía certo receio em andar em locais que não havia movimentação.

Quando estava sozinha, escutava vozes em sua cabeça.

A garotinha caminhou devagar ao lado de um lago cujo fim não podia ser visto, estendia-se muito e adentrava a floresta vizinha da vila. 

Aproximou-se um pouco da água, vendo seu reflexo. Ela tocou os fios negros da franja e os separou um pouco, tornando visível a testa pálida que há tempos não recebia luz do sol.

Os olhos castanhos da menina acentuavam a sua beleza. Quando crescesse, ela certamente seria uma beldade incomparável naquele mundo.

Um barulho ecoou no ar de repente. Era um peixe da mesma cor das águas do lado, ele passaria imperceptível se não fossem as ondas e o som causado pela sua movimentação.

Luminus encarou-o.

[Carpa Olho de Dragão, 3 anos.]

— Ahhhhhhhh!

Ela colocou a mão no rosto de repente, sentiu uma ardência insuportável percorrer o seu rosto, era a mesma sensação de quando tocou nas brasas da casa de fundição da vila.

— Mamãe! Papai! So-socorro!

Seus joelhos tocaram o chão com força, mas ela ignorou aquela dor ínfima e apertou o rosto com ainda mais força, mas o tormento não ia embora. 

A intensidade daquela sensação foi tamanha que sua consciência esvaiu-se.

Perdeu a noção do tempo enquanto estava ali, deitada na margem do lago. 

Por sorte, aquela era uma área que não havia a presença de monstros, e os peixes na água ao lado eram inofensivos.

Aos poucos, espasmos começaram a mover o corpo da menina. Ela deu um longo suspiro antes de levantar.

Aquela dor excruciante desapareceu, mas ainda sentia o seu olho esquerdo um pouco pesado, lágrimas escorriam dele e a visão turvava.

Cambaleando, aproximou-se do lago e encarou o seu reflexo na água. 

Luminus tocou a face, como que para verificar se aquilo sendo espelhado era realmente a sua face.

Não havia muita diferença… exceto pelo fato de que seu olho esquerdo ficou vermelho, e não era por passar muito tempo no sol ou algo assim, a cor natural da sua íris e o formato da pupila mudaram.  

Sentiu o seu coração acelerado. 

Ainda estava em tenra idade e logicamente reagia daquela maneira em várias situações de mudança, seria assim até compreender o mundo, mas ela sabia que não era natural o olho mudar.

As mãos bateram a poeira da roupa e ela voltou correndo para a vila, com a mão contra o rosto, não queria deixar que ninguém visse a sua situação.

Enquanto andava, vários moradores a cumprimentaram, mas seu foco era apenas a rota até a sua casa, queria ir para baixo do braço da sua mãe. 

Sim, sua mãe! Ela certamente saberia como resolver aquilo…

Mas, chegando em casa, a surpresa do pai e da mãe foi maior que a sua. 

Eles ficaram estarrecidos, não faziam ideia do que fazer com a sua filha, não compreendiam o motivo por trás daquilo, por isso chamaram o Grande Ancião.

O Grande Ancião era alguém muito próximo daquela família, sempre deu suporte a eles e presenteava a garotinha constantemente. Claro, como a única criança, a menina era muito mimada.

A porta abriu-se e o Grande Ancião adentrou, sua postura era calma como sempre, ele conseguia tranquilizar o coração de qualquer um apenas por sua presença.

O senhor aproximou-se e ajoelhou-se na frente da menina, encostando de maneira que pudesse sussurrar no ouvido dela sem que os pais escutassem.

— Olhe para mim, pequena Luminus, e me diga o que vê. Concentre-se.

Ela não entendeu, mas decidiu obedecer. Assim que mirou o homem, aquela voz soou novamente, com uma mensagem estranha surgindo no seu campo de visão.

[Wilberg Sophiette, 328 anos.]

Arregalou os olhos e fez menção de abrir a boca, mas o Grande Ancião colocou a mão em seu ombro, aquilo teve um efeito tranquilizador e a garotinha sentiu como se não houvesse mais nenhuma preocupação ao seu redor.

— Ah, é apenas conjuntivite.

Aquilo soou quase como uma piada, assim como a “marca de nascença”.

Os dois adultos ao lado formaram um sorriso no rosto, mas não ousaram rir. Aquele ancião era realmente alguém extraordinário.

Nada mais foi dito. O Grande Ancião deixou a casa e todos ali resolveram deixar aquele assunto de lado, se aquele homem sábio não encontrou nenhum problema, era porque não havia nenhum problema.

Assim, após aquele dia, Luminus continuou a viver sua vida normalmente.

***

O número de pessoas olhando-a com desdém aumentou, apesar de ainda não ser um número expressivo, mas isso não impedia a menina de sentir-se oprimida em alguns ambientes.

Dias tornaram-se meses e o tempo passou. 

Não houve mais notícias de nascimentos de crianças após Luminus, as pessoas não viram mais qualquer sinal de chuva e a qualidade de vida só piorava cada vez mais.

Em algum momento, alguns começaram a criar rumores como “A menina amaldiçoada é a culpa pela nossa desgraça. 

Naturalmente, “a menina amaldiçoada” referia-se a Luminus.

O Grande Ancião fez tudo ao seu alcance para proteger a garotinha, queria que ela tivesse uma infância sem problemas, mas aquilo era impossível, quase toda a vila começou a acreditar em rumores sem fundamentos.

E a aparência dela não colaborava.

Com o passar do tempo, os fios de cabelo da menina começaram a ganhar um tom esbranquiçado, o vermelho-carmesim do seu olho esquerdo tornou-se mais vibrante e o fluxo de mana no interior dela tornou-se instável.

Era muito coincidência aquilo acontecer logo naquela época. 

Mesmo que a desgraça naquela vila já existisse desde o princípio, todos decidiram, irracionalmente, atribuir a culpa disso ao nascimento da criança marcada com o que os anciões chamavam de “Sigilo de Astarte”.             

Tentando lidar com aquilo, o Grande Ancião sempre interagia com Luminus normalmente, levava-a para passear pela floresta, ensinava-a artes marciais e transmitia os aprendizados que obteve ao longo da sua vida.

Um dia, ele pediu para que a menina mantivesse o seu nome verdadeiro, Wilberg Sophiette, em segredo, o que indicava que ele realmente sabia sobre aquelas anormalidades que a assombravam.

Mas, sempre que questionava a sobre aquilo, ele respondia “Tudo será explicado em um momento oportuno, pequena Luminus”. 

Aquele momento oportuno nunca veio.

Anos passaram-se e a situação da menina só ficava pior, podia dizer, com certeza, que as únicas pessoas que estavam do seu lado eram o Grande Ancião e os seus pais.

Diversas vezes, deparou-se com multidões furiosas em frente à sua casa. Luminus quase não saía, seu fluxo de mana estava muito instável e poderia causar problemas por onde passava.

— Você não pode mais ficar aqui, pequena Luminus — o Grande Ancião disse um dia, com uma expressão sombria no rosto.

Ao lado do homem, seus pais compartilhavam das mesmas feições.

— Mamãe, papai… o que ele quer dizer?

Houve uma longa pausa antes que finalmente o pai dissesse as palavras seguintes:

— A partir de hoje, você não é mais nossa filha.

Ela lembrava-se daquela cena detalhadamente, foi como se visse cada palavra sendo pronunciada em câmera lenta. Demorou para processar o que foi dito.

A mãe não disse mais, nem sequer olhou para a filha.

Então, Luminus sentiu um toque reconfortante em seu ombro. Olhou para cima e viu o Grande Ancião com uma expressão difícil, mas, ainda assim, aquela aura calma não desaparecia do seu semblante.

— Vamos, pequena Luminus, aqui não é mais o seu lar.

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