A escuridão não se dissipou no dia seguinte.
Alguns estudantes não se sentiram bem e foram recomendados a ficar em seus quartos, descansando até que as trevas fossem embora, ou o pior acontecesse…
Kurone e Cynthia, assim como os mais corajosos que não tiveram o seu sistema nervoso afetado pela presença do breu, se reuniram no centro do campus para escutarem o que Paltraint Atrex tinha a dizer sobre a situação.
Em sua cabeça, Kurone imaginava que seria proposto ali uma saída momentânea dos alunos. A morte do bibliotecário aconteceu há poucos dias e agora havia essa escuridão, a segurança dos jovens nobres deveria ser assegurada.
— Vamos sair para um treinamento de campo — disse o homem, fazendo o seu sorriso se estender de orelha a orelha.
Ele parecia estar se divertindo com a reação dos estudantes.
Claro, em uma situação como essa, o que menos precisavam era se arriscar ainda mais, saindo para um treinamento nas trevas mais densas que circundavam o exterior da Universidade Mágica.
— Não tá preocupada? — indagou à garota loira ao seu lado.
— Claro que não, afinal meu querido Iolite vai me proteger se algo ruim acontecer — respondeu Cynthia, apertando o braço do garoto contra o seu peito ainda em desenvolvimento.
“E quem é que vai me proteger?”
[Naturalmente, Ela estará aqui.]
“Valeu, projeto de serafim.”
[… A Celestial acaba de repensar, Ela não irá mais estar aqui quando surgir o perigo.]
“Era brincadeira! Não me abandona, Ello!”
[Ello?… Certo, talvez Ela ajude um pouco…]
Cynthia ficou confusa ao ver o suspiro de alívio do seu companheiro, mas a menina já estava habituada a esses momentos em que Kurone parecia conversar com alguém em sua mente, por isso deixou qualquer natureza de questionamentos de lado.
— Nosso dever, na Universidade Mágica, — prosseguiu o vice-capitão — é ajudá-los ao alcançar o ápice das suas habilidades. Coragem, experiência e tomada de decisões será algo que vocês irão desenvolver nesse treino de campo. Claro, não posso prometer que não haverá baixas…
Ouvindo as últimas palavras, alguns dos jovens empalideceram. “Baixas” era sinônimo de “mortes”, todos estavam cientes desse fato.
Kurone focou no ambiente ao seu redor. As trevas confundiam os sentidos dos mais fracos, mas esse não era o seu caso, há muito havia abandonado a posição de fraco. Explorando o local com os seus outros sentidos, ouviu o som de corpos tremendo e dentes batendo uns contra os outros.
O barulho de urina descendo pelas pernas de alguns lhe tirou um sorriso de deboche.
Mas não podia culpar os pobres nobres. Esse era apenas o primeiro mês deles na Universidade Mágica, a maioria sequer havia saído de casa antes e suas experiências em combate limitavam-se a treinos com instrutores, em um ambiente controlado e com curandeiros prontos para agir.
Era diferente para Kurone Nakano e Cynthia Sophiette. Mesmo se fosse desconsiderada a viagem no tempo, o garoto fora treinado por ninguém menos que Sylford Sophiette, alguém que desde o nascimento já havia ultrapassado o ápice da força humana.
Sabia que as trevas poderiam ser obra de Azazel van Elsie, por isso não estava tão relaxado, mas ficaria atento a todo momento. O abismo de diferença entre suas habilidades e as da demônia ainda era enorme, mas não se deixaria ser descuidado como foi o bibliotecário, afinal tinha algumas cartas na manga.
Olhando para trás, notou a presença de alguém no prédio próximo, mais especificamente no telhado do prédio. Era ninguém menos que a Heroína Ádvena Hime, vulgo “Inquisidora”. A jovem não o deixaria em perigo enquanto não tivesse todas as fórmulas do bibliotecário em mãos.
Kurone tinha confiança que a Inquisidora o seguiria durante o seu treinamento de campo, seria perfeito se ela e Azazel van Elsie travassem uma batalha, afinal a Heroína Ádvena havia garantido que mataria a demônia quando a visse, sua força não era brincadeira.
— Aos que já molharam as calças mais de três vezes… Patéticos, vocês acabam de reprovar antes mesmo de começar a atividade. Não queremos covardes lá fora! — enunciou Paltraint Atrex, com uma expressão feia no rosto.
— Quero que deixem o local qualquer um que não tenha coragem o suficiente para encarar essas trevas — continuou. — A Universidade Mágica possui uma barreira nos protegendo, o que estão sentindo é apenas uma amostra, lá fora vocês é que irão ver o verdadeiro inferno.
O som de diversos passos ecoou pelo lugar — eram os mais fracos recuando, a maioria com o corpo trêmulo ou o odor da urina cravado em suas roupas.
O sentido de Kurone captou apenas dez pessoas no local, doze no total, contando com ele e a jovem Sophiette. Entre as pessoas ao redor, havia a presença familiar dos dois delinquentes punidos pela Inquisidora anteriormente.
— Ah, sim, meu garoto não recuou — Paltraint falou, encarando o seu protegido. — Garotos e garotas, preparem-se para uma experiência única na vida universitária de vocês.
Tiveram tempo para se alimentar e preparar suas mochilas, enquanto Paltraint recrutava alguns veteranos e auxiliares que os acompanhariam em seu treinamento de campo.
No saguão, nas escadas e nos corredores, havia vários estudantes passando mal. As trevas realmente castigavam os mais fracos, mesmo com a barreira os privando do pior.
Em sua mochila, Kurone depositou apenas o essencial: água, comida e poções medicinais. Não tinha a necessidade de armas, bastava o seu Inventário Interno.
Tendo terminado seus preparativos, aguardou Cynthia no saguão. Não importava o mundo, garotas sempre demoravam para se prepararem.
“Embora eu não saiba pra que é que ela vai se embelezar pra explorar uma floresta…”
[Ela acha que essas palavras não devem chegar aos ouvidos de Cynthia Sophiette.]
“Acho que vou seguir teu conselho.”
O sorriso amarelo originado de sua breve conversa com Ellohim desapareceu quando uma figura conhecida surgiu em seu campo de visão.
A jovem loira usava o seu manto branco e botas marrons de salto, que produziam um som característico conforme ela dava passadas.
— Ouvi falar sobre o treino de campo… Tem certeza que irá? Pode ser uma armadilha — disse a garota, Minerva Clergyman.
— Tô me borrando de medo de encontrar Azazel van Elsie, mas vou mesmo assim, até porque tenho um truque na manga.
— Não faça nada imprudente, ainda não é hora de você morrer.
Com essas palavras, a Santa deixou o local.
Kurone não respondeu, a palavra “imprudente” o paralisou. Estava no sangue da família Nakano ser imprudente, era por isso que o garoto sempre acabava em péssimas situações em suas lutas, era por isso que pessoas importantes sempre o advertiam com a frase “não faça nada imprudente”.
“Nie… A Sprout disse que nosso encontro seria em breve, mas com essa situação, será que ela vai conseguir chegar aqui e me encontrar?”
[Ela pensa que a deusa Annie dará um jeito.]
— Por que essa cara? Não me diga que não gosta do que vê? — falou Cynthia, acabando de descer as escadas.
A menina tinha o seu cabelo preso em um rabo de cavalo e trajava vestes masculinas — era a primeira vez que a via a nobre usando uma calça.
— Você tá bem… diferente?
— Vamos lá, elogie mais a minha beleza! “Diferente” não é suficiente.
— Não força a barra…
A interação usual lhe fez sorrir um pouco após o encontro com a Santa, contudo as roupas masculinas de Cynthia fizeram o coração de Kurone doer um pouco.
Lembrou-se de Amélia, a cocheira tomboy que se vestia de uma maneira semelhante. Amélia era, na verdade, Luna Nakano, sua prima, não conseguiu mais a ver após os acontecimentos em Eragon e podia imaginar o quanto ela sofreu após ouvir sobre a sua morte.
Muitas pessoas… Kurone Nakano magoou muitas pessoas, era muito fraco, inútil e imprudente naquela época, mas jamais faria uma pessoa amada chorar novamente, jurou isso para si.
Por isso treinava a cada dia, por isso precisava alcançar a imortalidade.
Cynthia pareceu um pouco preocupada com a postura do seu companheiro, mas não disse nada, apenas liderou o caminho até a porta do saguão. Essa era uma das qualidades dos Sophiette, entendiam a situação mesmo sem ninguém dizer uma única palavra.
No exterior dos dormitórios, local tomado pelas trevas, um grupo liderado por Paltraint Atrex, o vice-capitão da guarda real, já os aguardava.
Ao lado de Paltraint estavam três soldados da guarda real, um aluno veterano e um rosto conhecido por Kurone: Sprout Ruderalis.
Notando a encarada do garoto, o vice-capitão se antecipou:
— Esse aqui é o nosso grupo de reforço. Sprout Ruderalis será a nossa curandeira nessa atividade, então não hesitem em pedir a ajuda dela quando precisarem.
A mulher de longos cabelos verdes sorriu, seus olhos afiados mirando o jovem loiro ao lado de Cynthia. Pelo visto, nem mesmo Paltraint tinha ciência da verdadeira identidade dessa pessoa.
— Não baixa a guarda perto dessa Sprout — murmurou Kurone à sua amiga. Embora a professora de botânica alegasse que não era uma inimiga, não confiaria facilmente nela.
— Entao, meus caros, vamos? — perguntou o vice-capitão, com um sorriso de animação no rosto., esse homem não parecia ter preocupação nenhuma…
Mesmo com a possibilidade da responsável pela escuridão ser Azazel van Elsie.
Um passo de cada vez, o grupo deixou a Universidade Mágica. Bastou dar um passo no gramado fora do alcance da barreira que os protegia para serem assolados por uma pressão incomum.
Caso um dos estudantes afetados pela escuridão mais fraca sentissem isso, certamente não sairiam ilesos.