— QUEM DEIXOU UMA CRIANÇA ENTRAR AQUI???!!!
Quem precisa de elogios quando você pode ser confundida com um menor de idade, não é?
Aparentemente esta é a rotina de Kyoko — aluna 08 — a primeira aluna a manter a posição de descansar no centro do tablado de terra, certamente um sinal de disciplina militar em uma garotinha que todos estranham o tamanho e os bravos olhos prateados combinando com os claros cabelos incrivelmente longos.
Kyoko respira fundo, ajustando sua expressão para o que se espera ser um semblante calmo e mantendo a postura ereta, como se tivesse uma vassoura escondida em algum lugar nas costas.
— Perdão, senhor, mas não sou uma criança — responde ela, com os olhos suavemente fechados tentando manter a calma, um escudo contra uma onda de palavras impróprias prestes a escapar. Afinal, ela sabe bem que desabafar contra um superior nunca é uma decisão sábia.
O Major Yura, um homem de ombros largos e paciência curta, cruza os braços. — É A ZERO OITO, CERTO?! ATÉ O UNIFORME DE MENOR TAMANHO FICOU GRANDE EM VOCÊ! DESEMBUCHA, QUANTOS ANOS TEM?!
Vamos ser francos: o estado de Kyoko lembra uma caçulinha que roubou as roupas do irmão mais velho; o uniforme militar está tão folgado que ela poderia se esconder numa das mangas. Mas isso não abala a garota.
— … Vinte, senhor.
— VINTE???!!!
— Argh — suspira a garota, sussurrando — sempre a mesma reação…
— MINHA FILHA DE DOZE ANOS PARECE MAIS VELHA QUE VOCÊ, ZERO OITO!
— É… Por que será, né…? — Sentindo a paciência se esvaindo mais rápido do que água por entre os dedos, Kyoko bate os calcanhares e ergue a mão esquerda cerrada. Tudo muito formal, muito rígido, uma postura impecável; ela aparenta tentar ser uma perfeccionista, afinal. — Senhor! Permissão para apresentação!
O major estreita os olhos, mas está claramente se divertindo. Ele não esperava por essa. — … Hmmmm… Temos ao menos um aluno aplicado… PERMISSÃO CONCEDIDA, ZERO OITO! PROSSIGA!
Kyoko abaixa o braço, sem perder um segundo ao voltar à posição de descansar.
Chegou o momento dela brilhar. Ou pelo menos tentar.
— Meu nome é Kyoko! Integrante do clã Shimizu! E então herdeira e discípula dos melhores emanadores d’água de toda Asahi! Além de formada no Instituto Lunar Hoshizora, tornei-me mestre em três artes marciais asahianas aos quinze anos, e com isso, aperfeiçoei habilidades baseadas na temperatu-
— BAAASTAA!!! — interrompe o instrutor, quase engasgando com o próprio espanto. — TORNOU-SE MESTRE EM TRÊS MARCIALIDADES AOS MEROS QUINZE ANOS DE IDADE?! Que mentiras estapafúrdias são essas que está usando, Zero Oito?!
Kyoko calmamente responde: — Nada do que foi relatado é falso, senhor. Meu clã é conhecido pelos ensinamentos milenares. Até os mais puros e inocentes se tornam prodígios em autodefesa com as práticas de um veterano dos Shimizu.
— RÁ! PODE GUARDAR SEUS RELATOS PARA OS CERVOS DORMIREM! E PRA MIM JÁ DEU DE SUAS FALÁCIAS! INDEPENDENTE DE SUAS TÉCNICAS, ÁURICOS D’ÁGUA SÃO TÃO COMUNS QUANTO RATOS EM ESGOTOS…! VOCÊ NÃO IMPRESSIONA NINGUÉM, ZERO OITO! AO SEU POOOSTO!!!
Sem qualquer cerimônia, como diz o Major Yura, Kyoko caminha para sair de destaque. — Hmpf, como ousa banalizar séculos de prática… Ainda tirarei dele o reconhecimento que um Shimizu merece ter.
Parece que se tem algo que esta garotinha odeia mais do que piadas sobre sua altura, é alguém duvidando da capacidade de seu clã. Que eles se preparem…
— PRÓÓÓXIMO!!!
Sério — o aluno de número zero nove — firma os pés na área de terra elevada. Mantendo o rosto neutro, ele não parece se abalar com as atitudes de menosprezo vindas do instrutor, embora seus cabelos pretos e olhos escuros aparentam consumir toda a luz ambiente.
— Número zero nove, Kinyoku Shinkai, áurico das sombras — sua voz é firme e direta. Não há mais, apenas o som suave das palavras sendo pronunciadas. Ele não faz questão de impressionar. E por que faria? Sua mera presença já é uma declaração. O ideograma sob seu olho esquerdo pulsa suavemente em tons púrpura, representando a aura guardada em seu corpo.
O major passa a mão no rosto, farto. — Aah, é inacreditável… — Seguidamente, ele cruza os braços; há escárnio nos lábios. — MAIS UM DE POUCAS PALAVRAS?! MAS DEIXA EU ADIVINHAR… MAIS UM ÁURICO COM HABILIDADES MIRABOLANTES? Eh, pelo menos ele tem uma altura decente, no mínimo um e oitenta… NÃO ME FARÁ CAIR NO SONO COM BOBAGENS, VAI, ZERO NOVE?!
Kinyoku ergue uma sobrancelha, não exatamente surpreso, mas claramente sem paciência. — Não é minha intenção, senhor.
— ENTÃO VAMOS LÁ! MOSTRE-ME O QUE TENS!
Calado, Kinyoku ergue a mão, e então, de forma quase imperceptível, surgem sombras; não sombras comuns, mas seis duplicatas negras dele mesmo, saindo de seus pés e se espalhando proximamente pelo tablado, três à esquerda, e três à direita.
Observando suas réplicas pretas mantendo-se em pé, mas oscilando como manchas de tinta na água, o rapaz comenta: — Essa é minha primeira forma… “Marca Negra”. Crio sombras gêmeas vivas de mim, mas sem substância, sem a capacidade de tocar ou sequer causar dano real. Apenas ecos, reflexos sob meu total controle.
— … SOMBRAS INOFENSIVAS?! O QUE É ISSO, UM TRUQUE PARA PALHAÇOS? COMO ACHA QUE PODE LUTAR COM ISSO?!
Ainda neutro, Kinyoku dá um passo à frente. — Como eu disse, senhor, elas são uma extensão de mim, então… — Em um instante, seu corpo desaparece, reaparecendo na primeira sombra à sua esquerda, substituindo-a com sua presença. — Posso me mover entre elas livremente. — Sua voz ecoa, vinda de todas as cinco sombras restantes. Pelo visto, elas até falam pelo dono.
O major fecha o cenho. — Teleporte é? Interessante… MAS ISSO AINDA NÃO PROVA NADA! COMO LIDARIA COM UM OPONENTE REAL?!
Kinyoku permanece em silêncio por um momento, impassível. Aparentemente, ele já sabia que essa pergunta viria. — … Eu posso deixar uma das minhas sombras dentro da de qualquer um, seja de seres ou materiais sem vida — ele aponta a mão aberta para o major — e então, quando eu bem quiser, posso aparecer bem atrás de qualquer alvo.
O major abre a boca para responder, mas ao piscar, seu aluno desaparece de sua vista. A surpresa é imediata, e talvez, por um breve segundo, choque. Ele fica parado, encarando o vazio onde o garoto estava, seus olhos tentam processar o que acabara de acontecer.
Mas quando se vira, uma cena finalmente o impressiona: Kinyoku surge, silencioso, emergindo vagarosamente da própria sombra às costas do major até observá-lo de cima a baixo com um olhar profundo e enigmático, um espectro em forma humana, tão próximo que é impossível ignorar sua frieza.
— Isso é tudo por agora, se me permite, voltarei ao meu posto — termina Kinyoku, uma voz tão calma quanto antes, mas com algo sombrio nas entrelinhas. Assim, ele caminha de volta à sua posição na turma.
Surpreendido, o Major Yura procura palavras para o rapaz. — … A-ah… TELEPORTAR-SE ATRÁS DE UM ADVERSÁRIO SÓ FUNCIONA UMA VEZ, ZERO NOVE! SE É APENAS ISSO QUE TEM A OFERECER, NÃO DURARÁ MUITO CONTRA ADVERSÁRIOS MAIS FORTES…! E NÃO TENTE A SORTE COMIGO NOVAMEEENTE!!!
Kinyoku recua em silêncio, sem mais nada a provar; entretanto, sua expressão fria e controlada, vacila por um instante — um lampejo sombrio atravessa seu rosto. Em milésimos de segundo, uma luz púrpura, quase negra, brilha em seus olhos e distorce sua boca em um sorriso macabro, algo visceral e ameaçador. Mas logo, ele esfrega a mão pela cara, apagando a “máscara” perturbadora. Seu semblante volta ao normal, embora um sutil traço de preocupação em seu rosto confirme a presença de algo mais profundo e perigoso.
Ninguém percebe a cena rápida, com isso, uma força quase incontrolável parece seguir à espreita sob a pele do áurico das sombras…
Enfim, quando Kinyoku volta à sua posição de descansar, as sombras geradas começam a desaparecer do tablado, uma a uma, dissolvendo-se como vapor.
— Próximo… — O major tenta soar autoritário, mas uma leve trepidação se destaca. — Lidar com áuricos de hoje em dia não é nem um pouco fácil… preciso ficar de olho nesses jovens.