Adentramos um corredor escuro abaixo da terra. Era frio e tinha um cheiro ruim. Poucos espaços eram iluminados por tochas, aquelas às quais estavam acesas.
Conforme andávamos, salas gradeadas apareciam em ambos os lados, no começo vazias, mas logo pessoas passaram a aparecer nas salas.
Olhares desconfiados e desconfortáveis vinham de homens, mulheres e crianças, magras e gordas, de diferentes raças.
— Que lugar horrível — falou Ângela ao meu lado, pondo meus pensamentos em palavras.
Greeta olhava para os próprios pés o caminho inteiro. Talvez eu devesse ter feito o mesmo.
Se Cleiton também sentia o mesmo que a gente, foi ótimo em esconder.
— É claro que garotas como vocês se incomodariam, mas nesses tempos cruéis, é melhor para eles estarem conosco do que expostos a tempestade, não acham? — Hector liderava o caminho. Não pude ver sua expressão.
— Elas estão presas aqui? — perguntei. Abraçava-me para me proteger do frio que sentia. Se era real ou apenas uma reação ao cenário, não sabia.
— Cleiton não explicou o que é uma casa de batalhas? Eles estão aqui para entreter o público. Uma pena que meus negócios tenham ficado fracos nas últimas semanas.
— Imagino que com poucos nobres indo até Hinfrim tenha ficado difícil vender seu show — disse Cleiton. Ele observava cada sala pela qual passávamos.
— Sim. Esses malditos nas celas tiveram uma folga. Mas agora que você está aqui, podemos agitar um pouco as coisas. — Bateu com violência em uma grade. O som metálico ecoou pelo corredor, mas não pareceu assustar a pessoa dentro da cela.
Ela estava em um canto mal iluminado, tinha cabelo curto com duas orelhas animalescas.
Estava escuro, mas ainda podia ver os olhos do garoto me encararem do outro lado das grades. Eram olhos que eu nunca havia visto antes, eles penetraram fundo em mim.
Mas assim como as outras, não demoramos a passar pela sala, ou cela, e seguimos o caminho.
— A Vanguarda Central sabe sobre esse lugar?
— Amyrrh! Não faça perguntas inconvenientes — repreendeu Cleiton.
Hector riu antes de responder: — Tudo bem, Cleiton. Escute, garota, aqueles soldadinhos nobres de merda estão se lixando para pessoas como eles, ou como nós. Como eu disse, é melhor para eles estarem conosco.
Refleti por um momento e sussurrei para mim mesma: — Quando eu for uma vanguarda, vou tirar todas essas pessoas daqui.
— Oh, ouviu isso, Cleiton? Ela vai ser uma vanguarda. Com que tipo de sonhos bobos você tem alimentado sua protegida? — Olhou para trás por cima do ombro. Era possível ver um sorriso no canto de seu rosto.
— Não se incomode com isso. Ela vai mudar de opinião depois de hoje. Só encontre um bom oponente para ela.
— Vou encontrar.
Não demoramos muito mais para chegar ao fim do corredor. Ele pareceu tão longo… mas ao olhar para trás percebi que apenas andamos devagar.
No fim, Hector abriu uma porta dupla grande que dava num lugar que reconheci sendo o lado de dentro da grande gaiola que vi no centro do acampamento.
Algumas poucas pessoas se reuniam ao lado de fora da gaiola, mas mais chegavam aos poucos. Era estranho estar abaixo delas.
— Bem vindos à arena! — anunciou Hector com um grito e os braços abertos, ainda de costas para nós.
— O que tem aí para nós, chefia?! Reuni o máximo que consegui — gritou um homem de fora da gaiola.
— Muito bem! — Hector gritou de volta. — Companheiros, hoje nós teremos um espetáculo! Uma luta quase até a morte entre a campeã de Cleiton, Greeta, e nosso campeão, Grog, o insano!
A plateia gritou com os punhos levantados.
— Até a morte? Cleiton? — Virei para meu amigo anão, preocupada.
— Relaxe, pequena, é quase até a morte. Ganha quem desacordar o outro primeiro — respondeu Hector no lugar de Cleiton.
— Vai ser fácil! Podem mandar qualquer um! — gritou Greeta, com o punho levantado enquanto ia para o centro da arena. A plateia vibrou junto a ela.
— Não se preocupe, Amyrrh, nós estaremos bem aqui para intervir se as coisas ficarem muito feias. — Cleiton pegou em meu ombro.
— Não conte comigo — disse Ângela enquanto se afastava. Podia ver um sorriso no canto de seu rosto. — Quero muito ver ela tomar uma surra.
Ela seguiu até um local fechado por barras, onde tinha um banco comprido o qual ela sentou-se. Nós fomos logo atrás, apenas Hector e Greeta ficaram na arena.
Olhei para trás enquanto acompanhava Claiton. “Será que ela ficará bem?” Bobagem. Ela era forte, não é como se um membro da vanguarda fosse enfrentá-la. Ela ficaria bem.
Sentada no banco na pequena sala gradeada, observei Hector anunciar a batalha que estava por vir.
— Muito bem, vocês conhecem as regras da casa: sem armas, sem magia, apenas a troca clássica de socos e chutes, valendo tudo. Que os oponentes lutem com garras e dentes. Então, sem mais espera, pode entrar, Grog! — Gesticulou para uma entrada oposta à que viemos.
De lá, apareceu um homem lagarto de escamas vermelhas e chifres longos que se projetavam para frente de sua cabeça. Vestia roupas esfarrapadas e, sendo sincera, chamá-lo de forte seria um eufemismo.
O homem era uma bola de músculos! Mais parecia um híbrido de orc do que um homem lagarto puro.
— Droga! — exclamou Cleiton com a aparição do homem.
— O que? O que foi? — perguntei ao olhar para o anão.
— Aquilo é a porra de um draconato. — Olhou para mim.
— Agora ficou interessante — disse Ângela.
— Um draconato? Mas ele não deveria ter asas?
— Ou ele nasceu sem, ou foram arrancadas. De qualquer jeito, Greeta não leva essa.
— E você fez ela lutar sabendo disso?
— Claro que eu não sabia. Acha mesmo que eu deixaria ela lutar uma batalha perdida?
— Então pare a luta!
— Não é assim que as coisas funcionam por aqui. — Voltou a olhar para o show. — E agora que já vai começar, não há o que fazer.
Voltei a olhar para à arena. Os dois répteis se aproximaram até ficar à um passo de distância. Greeta olhava para cima para encarar a montanha à sua frente e ambos pareciam rosnar um para o outro.
Uma tensão era clara entre os dois. O som da chuva junto ao barulho animado da plateia ficou abafado enquanto eu via os dois se afastarem um passo… dois… três… quatro… e então cinco. Dez passos de distância ao total.
— Comecem! — A voz de Hector me trouxe de volta a realidade logo antes do anão correr para fora do caminho.
No momento em que a batalha teve início, Greeta avançou com uma arrancada veloz, como na luta contra Ângela. Entretanto, seu oponente também iniciou correndo. E correu como um touro.
Sobre quatro patas, a gigantesca criatura vermelha corria em direção a Greeta. Seus grandes chifres se projetando para frente como se pudessem perfurar tudo em seu caminho.
Greeta pareceu perceber que não podia encarar de frente, pois assim que se aproximaram, ela esquivou-se dele, por muito, muito pouco, para passar reto.
Ambos frearam sua corrida após ficar novamente distantes.
O draconato se virou ao mesmo tempo que a mulher lagarto e provocou: — Qual o problema? Por que foge como uma humana assustada? Pensei que seria fácil me vencer. — Mostrou os dentes ao rir.
— Vou te mostrar quem é a humana! — respondeu Greeta entre rosnados antes de se posicionar de quatro e disparar como uma flecha em direção ao seu oponente.
O que ela iria fazer? Não tinha como vencer em um combate direto, era impossível!
A distância entre os dois foi fechada em um instante e, quase rápido demais para meus olhos acompanharem, o draconato arranhou o ar com suas garras enquanto Greeta, ágil, veloz e esguia em comparação com a muralha em sua frente, passava por baixo de seu braço e se aproximava cada vez mais dele.
Não sei em que momento surgiram, mas haviam garras cinzas e pouco longas como espinhos nas mãos de Greeta no momento em que ela pulou bem à frente de seu inimigo e cravou as garras em seu pescoço.
As novas garras de Greeta perfuravam a garganta vermelha do seu oponente. Mas o lagarto gigante não pareceu se abalar muito, sua reação foi um sorriso.
A plateia vibrou com aquilo.
— Por que ele sorri? Aquele golpe não o machucou?
— Teria machucado se ele não fosse uma montanha. — Cleiton não tirava os olhos da batalha.
Segui seu exemplo e voltei a me concentrar apenas para ver uma bola vermelha que se manifestou de repente como um soco da direita para a esquerda que fez Greeta voar como uma boneca para o lado.
Observei em choque minha amiga se chocar contra o chão e rolar como se estivesse inconsciente.
“Levanta! Levanta!” As palavras passavam por minha mente enquanto a via imóvel no chão.
Ela se mexeu, forçou o braço no chão, ia se levantar, mas falhou, caindo de novo. Parecia zonza.
— Mas que merda — disse Cleiton, o que me lembrou que ele estava ali.
— Cleiton, faça algo. Pare a luta — implorei.
— Ainda não.
— Ainda não? Ela não pode mais se mover. — O que mais ele estaria esperando?
Não houve resposta.
O lagarto vermelho se aproximou devagar. Greeta não conseguia levantar. Seu oponente chegou nela, levantou os dois grandes braços, e então os abaixou com velocidade. Ela ia morrer, certeza.
“Sai daí! Sai daí!”
— Greeta! — o grito espontâneo e assustado saiu de minha boca.
No último segundo, minha amiga reagiu e rolou pro lado, evitando o cruel destino de ser esmagada por aquela criatura. Gritos frenéticos vinham de fora da arena.
O chão onde Greeta estava ficou coberto por rachaduras visíveis mesmo de onde eu estava.
— Isso, porra! — Cleiton levantou eufórico.
Um alívio me dominou por um instante, antes de lembrar que a luta ainda não tinha acabado.
Greeta parecia ter dificuldades para se manter de pé, mas não desviou a atenção de seu oponente.
Os dois se encararam, os olhos dela refletiam a chama nos olhos dele. Era como se estivessem… se respeitando, ou coisa assim.
— O maldito reconheceu ela como oponente — disse Cleiton.
— Você é boa! — gritou o oponente de Greeta, ainda com a mão na ferida. — Retiro o que disse! Luta como uma verdadeira fera!
Greeta não respondeu. Invés disso, fechou os olhos e respirou bem fundo.
O draconato tirou a mão do pescoço enquanto ria, logo antes de respirar bem fundo. Parecia puxar todo o ar para si enquanto seu peito já protuberante inchava ainda mais.
— O que ele tá fazendo?
Não tive resposta. Cleiton estava concentrado demais. Até mesmo Ângela mantinha uma unha na boca enquanto prestava atenção na luta.
A respiração foi concluída de uma forma que eu não esperava: uma baforada de fogo queimou no ar em direção à Greeta.
A luz emitida pelas chamas laranja refletiram nas escamas molhadas do grande draconato. Elas brilharam em um tom escarlate intenso, como se impondo mais sua existência ameaçadora.
Minha amiga não viu outra opção além de se virar e correr mesmo com sua velocidade prejudicada.
O inferno de chamas alcançou suas costas, criando manchas nas escamas amarelas, mas ela conseguiu fugir do alcance da cortina de fogo.
— Ei! Isso é trapaça, né, Cleiton? Não pode usar magia!
— Não foi magia. Cuspir fogo é uma característica dos draconatos, está dentro das regras. Veja, nenhum círculo mágico foi usado.
Ele estava certo, não havia nenhum círculo no ar quando as chamas pararam.
O draconato não demorou para se mover após o fim de sua respiração de fogo e correu atrás de Greeta que logo se viu contra a parede da arena.
A grande massa de músculos consciente parou alguns metros longe dela, riu alto, e se preparou novamente para outra respiração de fogo.
Greeta não perdeu tempo. Correu para o lado e escapou das chamas que voaram em sua direção.
Mas ela não conseguia fazer muito com o draconato seguindo-a com o pescoço. Não podia nem avançar, nem recuar, só continuar para o lado. Ou foi o que pensei.
Logo ela mudou de direção e escalou a parede da arena, ela se movia rápido como uma lagartixa com suas garras que auxiliavam a subida, enquanto as chamas corriam atrás.
O draconato parou sua baforada enquanto Greeta estava pendurada na grade da arena. Ela parecia cansada e uma de suas mãos junto a sua perna escorregaram da grade. Ela ia cair.
O implacável oponente vermelho ao reparar isso, preparou outra respiração de chamas. Greeta não teria para onde fugir naquela situação… Ou, novamente, era o que eu e bem provável que todos pensávamos.
No momento em que o draconato abriu sua boca, Greeta apenas pulou para cima da criatura.
As chamas à alcançaram no ar e à cobriram quase que completamente. Só o que pude ver dela nesse momento era seu rosto determinado e seu punho levantado.
O punho de Greeta chegou na cabeça do draconato, amaçou seu focinho e fechou sua boca, mas não parou por aí.
Greeta, coberta por queimaduras visíveis, foi ágil mais uma vez e se pendurou com a outra mão no pescoço do oponente.
Assim usou sua velocidade para pular no momento em que tocou o chão, girar e ficar atrás dele com as mãos prendendo sua boca para ficar fechada.
Chamas escapavam da boca do réptil vermelho, que tentava desesperadamente derrubar Greeta, mas sem sucesso.
— Isso, caralho! — comemorou Cleiton de repente.
Segundos se passaram com Greeta fechando a boca do draconato, que parecia inchar cada vez mais, e esses segundos terminaram um uma explosão de fumaça preta que se espalhou por toda a área em que estavam, encobrindo o resultado.
— O que aconteceu?! Cleiton o que aconteceu?! — Não houve resposta.
A multidão estava silenciosa pela primeira vez desde que a luta começou. Silêncio pairava no ar na arena.
Enquanto a fumaça se dispersava, de pé, apareceu uma Greeta repleta de queimaduras com o olhar para baixo e respiração pesada.
Quando a fumaça se foi quase por completo, embaixo dela estava a massa de músculos outrora imponente.
Greeta foi a vencedora.