Selecione o tipo de erro abaixo

Seis dias se passaram desde o início do treinamento. Nós não passávamos tanto tempo viajando no lagarto de caminhada, já que Cleiton precisava descansar, nos treinar e ainda parava para suas longas rezas. As vezes era Greeta quem assumia o controle da viagem para ele descansar.

Ainda estávamos em uma extensa campina. Há poucos dias, foi possível ver o que parecia ser uma vila ao longe, mas Cleiton imediatamente mudou nossa rota ao perceber isso. Ele não conhecia tão bem a região e, mesmo com um mapa dado por Claudia, ele teve essa dificuldade em se manter longe da civilização.

A clériga líder de Hinfrimmue nos forneceu provisões, um mapa da região, pergaminhos de comunicação, que eu não fazia ideia do que eram realmente, e um pergaminho para mim e um para Draven.

Como nem eu e nem o garoto sabíamos ler, Cleiton ficou com nossos pergaminhos até aprendermos o básico do controle de mana, o que não deveria demorar muito, mas estava demorando mais do que eu gostaria, embora o anão dissesse que nosso ritmo estava bom.

E de fato, o ritmo de Draven estava bom. Enquanto eu ainda aprendia a solidificação naquele ponto, o garoto já estava na sexta etapa, a conjuração à distância e, por isso, estava ensinando à Greeta a liberação nas pausas de seus treinos.

Era incrível o quão rápido ele havia evoluído mesmo tendo treinos de luta todo dia, diferente de mim, que só foquei no treino de magia durante todo esse tempo.

Mas isso estava prestes à mudar. Se continuássemos naquele ritmo, chegaríamos na floresta que era território dos goblins em uma semana, e eu precisava saber lutar para enfrentar um goblin, mesmo não tendo ideia do que eram essas criaturas.

Por isso, enquanto Draven ensinava Greeta um pouco longe de nós, Cleiton me lançava um olhar sério e eu aguardava suas instruções.

— Amyrrh — disse após alguns segundos, seu tom de voz e sua expressão criaram uma discrepância com o clima leve de treino que houve na última semana —, não sei bem como dizer isso, mas antes de começarmos, tenho que fazer você entender algo.

— O quê? — Não tinha ideia do que ele queria, mas estava disposta a ouvir.

— Vou ser direto: não sei exatamente o que é isso que os anjos temem que aconteça caso ajam com maldade, mas você não pode temer isso a vida inteira.

Suas palavras me enviaram um frio na espinha.

— Eu… Não sei do que está falando.

— Tudo bem que não queira falar disso, eu respeito, mas lembre-se que já viajei com um anjo e, embora ele também não falasse sobre isso, ele me contou que anjos nascem bons e puros de coração e devem permanecer assim pelo resto da vida. No entanto, ele mesmo fazia coisas consideradas ruins e não era exatamente puro, mesmo assim, nada aconteceu com ele. Acho que, talvez, por ele rezar constantemente para Sfres, mas não tenho certeza.

Não respondi de imediato, apenas considerei o que ele dizia. Depois, perguntei: — O que isso tem haver com nosso treino?

— Bem, nosso treino vai focar na sua defesa, pelo menos, no início, mas não vai demorar para treinarmos o ataque, afinal, você sabe que em uma luta, é necessário atacar seu adversário para vencer. — Seu tom permanecia sério.

— Eu sei… — Era inevitável que, em uma luta, eu tivesse que atacar as pessoas, mas não iria feri-las, meu objetivo era apenas aprender à imobilizá-las, como os vanguardas fizeram com Greeta. — Onde quer chegar?

— Quero que saiba que você não vai conseguir se manter tão boa para sempre, e sabe disso. Mas não tem problema em fazer certas maldades para sobreviver, como lutar, ferir e matar, esse é o mundo que vivemos, e você não pode fugir disso, mesmo tendo seus motivos.

Não precisei pensar para responder com a voz alterada: — Eu nunca vou matar!

— Ótimo ver que suas convicções não mudaram, mas só posso continuar seu treinamento se você me disser que entendeu o que eu disse. Não pode evitar isso para sempre, entendeu?

Com um bufo, desviei o olhar do anão e repeti: — Eu nunca vou matar. — Minha voz estava mais baixa.

— Não tire os olhos de seu oponente — falou, e então esperou que eu voltasse a encará-lo. — Não preciso que mate, só preciso que esteja disposta a lutar e ferir, caso contrário, não perderei meu tempo lhe treinando, mas já aviso que, se não souber se virar sozinha em uma luta, você não passará de um estorvo.

Suas palavras tiveram um peso em mim. Lembrei do que aconteceu em Hinfrim, de como me senti ruim na época por ter me deixado ser pega pelo lorde Lizerd… Deixei escapar um suspiro.

— Vou lutar e, se necessário, vou ferir, mas nunca vou matar. Antes, você não me treinava por medo que eu ficasse forte demais e me voltasse contra você, mas agora, quer que eu fique forte e lute ao seu lado, pois sabe de meu potencial. — Mudei meu tom de voz para mostrar minha determinação na última parte. — Se quer que eu use meu poder para te ajudar a chegar ao domínio nobre, vai me ensinar a derrotar meus oponentes sem matá-los. É minha condição.

Ele me encarou com surpresa por um momento antes de responder: — Com quem aprendeu a falar desse jeito?

— Lembrei de você falando com Simi e quis fazer igual — admiti, mas sem perder a compostura. — E então, aceita minha condição?

— Simi? Ah! A vanguarda? Caramba, você tem uma boa memória. — Passou a mão na cabeça enquanto sorria. — É bom saber que está aprendendo comigo. Se continuar assim, vai ser merecedora do nome Gloire.

— Cleiton, você vai me ensinar a vencer sem matar? — Não gostava da forma como ele enrolava para responder.

— Está bem, está bem. Não é bem como eu atuo, mas vou te ensinar da forma como você quer. Está bom para você?

— Está. — Dei um pequeno sorriso.

— Certo. Então vamos começar com sua esquiva.

***

Com o céu escurecendo e a chuva tornando-se mais fria, em mais uma sequência de movimentos desnecessários, fugi do punho de Cleiton ao correr para a direita.

— Já disse, você não está se esquivando, está fugindo. Não se afaste tanto de seu oponente, a menos que seja necessário. Ao se esquivar, você ainda sabe onde seu atacante está e pode se preparar para um contra-ataque, mas ao fugir, perde ele de vista, dando brecha para que ele lhe ataque por trás. Qual foi a primeira coisa que lhe ensinei?

— Não tire… os olhos… de seu oponente — falei enquanto arfava.

Passamos o dia inteiro fazendo a mesma coisa: Cleiton me dizia onde e como iria atacar e me pedia para esquivar com o mínimo de movimentos possíveis, ainda olhando para ele. Ele mal me dava tempo de descansar.

Não foi necessário uma demonstração do que era uma boa esquiva e do porquê eu precisava aprender, afinal, nos últimos dias, eu assisti ele humilhar brutalmente Greeta apenas esquivando-se e contra-atacando.

— Exato. Não pare de me olhar. Os olhos são a parte mais importante de seu treino. — Se aproximou de mim. — Agora, preste atenção em mim no próximo golpe.

— Espera… Não podemos… descansar um pouco?

— A segunda coisa que te ensinei foi que, em uma luta, não há descanso até que haja um vencedor. Você venceu?

Revirei os olhos e endireitei a postura sem responder.

— Ótimo. Agora, prepare-se. — Assim que ele falou, fiquei alerta. O golpe não demorava muito de vir após ele anunciar. — Vou lhe dar um soco com o punho direito no meio da cara.

Assim que ele falou isso, corri para a esquerda, mas tropecei em algo na mesma hora. Após cair de cara no chão, olhei para trás e vi sua perna esquerda para frente.

— Você disse… que seria… um soco… — dizia enquanto me levantava.

— Eu menti. Acha mesmo que seu inimigo vai ficar te dizendo onde vai atacar? — Tinha uma boa quantidade de ironia em sua voz.

Já de pé, respondi: — Mas temos feito assim… desde que começamos…

— Por isso mesmo eu fiz diferente dessa vez. Você se acostumou e criou um padrão, por isso não consegue evoluir. Como acha que eu consegui colocar o pé para te derrubar sem saber para onde você correria? É porquê eu sabia. Sempre que te digo que o soco vem da direita, você corre para a esquerda. Lutas são imprevisíveis, você deve prestar atenção no corpo de seu oponente para saber seu próximo passo, não repetir sempre os mesmo movimentos esperando que ele também sempre faça as mesmas coisas.

Aquele tinha sido o primeiro golpe que levei desde que o treino começou. Pensei que estava indo muito bem…

Respirei bem fundo antes de responder: — Como eu deveria saber que você colocaria o pé na minha frente se eu estava preocupada com o seu braço?

— É exatamente disso que se trata. — Começou a me circular com as mãos nas costas. — Você confiou de mais no que eu disse que faria e não se abriu para as outras possibilidades. Você deve olhar para todo o corpo de seu oponente em uma luta.

— Isso é impossível, e mesmo que fosse possível, não teria como adivinhar que você moveria o pé. — Girava lentamente meu pescoço para acompanhar o caminhar do anão.

— Impossível? Ha! Continue pensando assim e nunca vai aprender nada nessa vida. Você me viu mover uma bola de terra com a mente mais cedo, além de transformá-la em uma espada e depois em lama. — Passou por trás de mim, pelo meu ponto cego. — Acha mesmo que entender o que seu oponente fará é impossível?

— Acho. — Virei minha cabeça para a direção contrária para acompanhar o movimento do anão no outro lado. — Tem uma explicação para você ter feito isso: mana. Você nos ensinou e demonstrou cada passo de como a mana funciona, então é óbvio que eu vou acreditar que é possível controlar terra com a “mente”. Mas adivinhar os movimentos de um ser vivo é impossível.

— Bom, e como explica o que eu faço em minhas lutas com Greeta? — Ele tinha um bom humor ao perguntar.

— Isso… Hum… — Não tinha resposta.

Ao parar de andar, de volta à minha frente, ele continuou: — Não se preocupe, com o passar dos dias, vai aprender. Por hoje é só de treinamento de esquiva.

— Quê? Eu ainda posso continuar. — Parar naquele momento seria parar sem aprender nada.

— Eu sei que pode, mas eu tenho que fazer minhas orações, por tanto, descanse. Amanhã falaremos sobre defesa.

— Mas… — Refleti um pouco, eu não podia gastar todo meu tempo só com isso, ainda não havia dominado o controle da mana pura. — Está bem. Mas afinal, o que você tanto reza para esse seu deus misterioso?

— Ah, isso não é óbvio? — Sorriu maliciosamente enquanto falava em um tom irônico. — Só o que eu humildemente peço é o que todo homem simples deseja: uma porrada de dinheiro e mulher gostosa.

— Urgh. Repulsivo. — Torci o nariz. — Isso não é sério, é? Nenhum deus atenderia esse pedido.

— Talvez seja por isso que, invés de umas gatinhas maduras, eu recebi um monte de criança para criar. De qualquer forma, você não entende essas coisas de adulto. Quem sabe algum dia você não esteja em meu lugar, hein?

— Que o Pai Sagrado me livre! — exclamei. — Nem nos meus piores pesadelos quero ter desejos tão… fúteis, sujos e profanos assim.

— Ei! Meus desejos não são fúteis. Sujos e profanos, talvez, mas não fúteis. Mas bom, estou indo. Estarei por perto, vai poder me ver daqui caso acontecer algo. Vá até os outros e treine um pouco de mana pura, mas evite usar magia de terra por enquanto, está bem?

— Está bem. Mas já está bem tarde, né? — Esfreguei meu braço sentindo o frio do fim de tarde e olhei ao longo da campina escurecida pela chuva. — Se não vamos mais treinar, não seria melhor seguir viagem? Você pode fazer suas orações no Hicharlyson.

— Minhas orações são particulares. Além disso, nessa região, não há problema em ficarmos parados à noite, não existem muitas criaturas além dos animais do campo. — Virou-se. — Apenas me espere. Até mais.

Ele se afastou, deixando-me sozinha na chuva.

Era a primeira vez que ficava sozinha desde Hinfrimmue. Durante todo o treinamento, tive Draven comigo para conversarmos. Sem ele, Greeta ou Cleiton por perto, ficou solitário.

Apenas o vento gélido do anoitecer que tocava meu corpo, balançava meus cabelos e roupas, me fazia companhia.

Olhei para os lados, observei a grande campina e a floresta. Nós passávamos longe da estrada para evitar viajantes no caminho para Hinfrim. O problema era que a comida provida por Claudia não iria durar para sempre, então eu precisaria encontrar outras coisas para comer, a não ser que eu começasse a comer carne com eles…

Respirei fundo, deixando o ar frio e o silêncio da tempestade preencherem meus pulmões e ouvidos.

Com todo o treinamento, meus únicos momentos para pensar eram à noite, mas não pensava em muito antes de dormir, para tentar ter uma noite tranquila, embora ainda sofresse com pesadelos constantes que me acordavam antes do amanhecer. Principalmente com o Deus Dragão, os filhos da tempestade, e os acontecimentos de Hinfrim. Revia Greeta naquela posição, com uma espada na cabeça, todas as noites…

Mas no fim das contas, eram apenas pesadelos, pois aquilo não iria acontecer de novo. Eu não ia deixar acontecer de novo.

Jamais iria acontecer.

Olá, eu sou o TolrielMyr!

Olá, eu sou o TolrielMyr!

Comentem e Avaliem o Capítulo! Se quiser me apoiar de alguma forma, entre em nosso Discord para conversarmos!

Clique aqui para entrar em nosso Discord ➥