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No amanhecer, deitado próximo a uma árvore, estava um ser de aparência simples, mas que ao mesmo tempo carregava uma magnificência natural que eu nunca vira antes.

Um cervo, lembrei-me das projeções das fontes, mas esse era grande, quase do tamanho de um cavalo, tinha o pelo marrom meio cinzento, e dois pares de chifres, um par se projetando para baixo e para frente, enquanto o outro para cima e para trás.

O animal parecia sereno em seu descanso quando de repente levantou sua cabeça, talvez por ter sentido a aproximação de seus caçadores, mas Cleiton e Greeta foram perfeitos em se ocultar, sem barulhos, pelo menos pra mim. Então como? Como o cervo conseguiu descobri-los?

— Maldito — disse Ângela, me surpreendendo.

— O que? O que ele fez? — Não tirei meus olhos da cena à minha frente para perguntar.

— Está usando detecção de mana.

— O que é isso?

— Uma técnica que só magos experientes e algumas bestas podem usar. Agora fique quieta, quero assistir isso.

Segui sua ordem, continuei apenas a observar. Quanto mais Greeta e Cleiton se aproximavam, mais alerta o cervo parecia ficar, até que ele se levantou, e nessa hora Cleiton e Greeta surgiram ao mesmo tempo, como se tivessem combinado.

Nesse momento, meu coração acelerou. O cervo, parecia sem saída. De um lado Greeta, do outro Cleiton, e atrás uma grande árvore. Mas não havia motivo pra pânico, a verdade é que havia muito espaço ainda para fugir, então ele começou a correr. Tive esperanças nesse momento.

O que tanto eu quanto ele não esperávamos era que o chão abaixo dele fosse pura lama, o que o fez escorregar e cair de lado.

— O que aconteceu?

— Você é cega por acaso? Cleiton usou magia de terra. Preste atenção na cena toda.

Ao olhar pra Cleiton, de fato vi por um instante um círculo mágico marrom a sua frente, logo antes de sumir no ar.

Voltei minha atenção pro cervo, que tentava se levantar, mas já era tarde demais pra ele, pois Greeta avançou com velocidade e se jogou em cima do animal, prendendo a cabeça nos seus braços fortes enquanto o pobre coitado se debatia.

— Greeta! Solta ele! — gritei, mas não havia mais motivos.

Greeta torceu o pescoço do cervo, e ele ficou imóvel.

***

— Sério, devia experimentar Amy. Isso aqui tá muito bom — disse Greeta antes de voltar a mastigar.

Não respondi, apenas continuei de costas pra ela, com a cara fechada.

— Greeta, não é convencendo ela a comer que vai fazê-la te perdoar — disse Cleiton, um argumento o qual concordei, mesmo sem demonstrar.

— Perdoar pelo que? Eu só arranjei comida pra gente.

— Só arranjou comida? Você matou um animal indefeso! — explodi, quebrando meu voto de silêncio. — Você… você… droga! Ele estava vivo, dormindo tranquilo, e então vocês mataram, trataram, temperaram, assaram e estão comendo ele! Ele só tava dormindo!

— É a lei da sobrevivência! O mais forte e esperto sobrevive.

— Não que você seja esperta, com esse cérebro de lagarto de esgoto — sussurrou Ângela.

— Hum? Falou alguma coisa sua merdinha?

— Não mude de assunto, Greeta! Ele… ele estava vivo, caramba! Você não estava em uma situação de vida ou morte, a lei da sobrevivência não se aplica!

— Olha… Não use lógica contra mim! Eu queria comer e comi, e quer saber? Estava tudo uma delícia. — Sorriu maliciosamente.

Eu fervi de raiva e frustração, então soltei um gemido que expressava bem o que estava sentindo.

— Escuta, Amyrrh — dizia Cleiton —, é a lei da natureza, nós comemos carne pois ela nos fortalece, não dá pra evitar, e matamos porque temos que matar, um dia vai entender.

— Eu nunca vou entender, porque nunca vou matar ninguém. Não há ninguém no mundo que mereça perder a vida.

— Você pode até tentar seguir esse caminho, mas ninguém mais vai seguir, até os animais matam animais pela sobrevivência, e a realidade é que somos todos animais. Afinal, você já não sabia disso? — Ergueu a sobrancelha.

Considerei o que ele falou. Nas imagens das fontes eu via as pessoas comerem carne o tempo todo, mas nunca me passou pela cabeça o quão cruel era o ato.

— Sabia… mas vocês podiam tentar ser diferentes, como nós do Reino dos Anjos, nós só comemos frutas e vivemos bem, ninguém nunca morre lá.

Notei Ângela me lançar um olhar curioso, mas ignorei por completo quando Cleiton voltou a falar.

— Anjos são diferentes, vocês não precisam dos mesmos nutrientes que nós, e nunca ficam doentes também, nunca envelhecem, não tem nossas necessidades, nem roupa usam. É uma vida boa.

— Pode até ser, mas o que essas coisas tem haver com matar ou não matar?

— Um dia você vai entender.

— Já disse que não vou. Não vou, não vou, não vou! Eu me recuso. — Balançava a cabeça de olhos fechados.

— Está bem, sua escolha.

Depois disso, me virei e esperei emburrada os três terminarem a brutalidade que estavam cometendo.

Ao terminarem, disseram que não havia mais perigo nessa parte da floresta, então Cleiton resolveu dormir, Ângela seguiu seu exemplo, e Greeta até tentou ficar acordada, mas caiu no sono, encostada numa árvore.

O silêncio tomou conta. Encarei por um tempo os restos do cervo, Greeta fez questão de deixá-lo quase sem nenhuma carne.

“Como pode um animal ser morto por uma pessoa assim, com tanta crueldade?” Não tinha resposta para o porque eles eram assim.

Olhando para o céu chuvoso pelos espaços entre as folhas das árvores, me veio uma reflexão: os inferiores eram muito diferentes dos anjos, disso eu tinha certeza.

De repente, um clarão seguido de um estrondo forte fizeram com que eu me arrastasse para trás com respirações pesadas, sem perceber para onde estava indo.

— Ai! Sai de cima de mim, anjo tolo! — Me empurrou pro lado.

Eu caí e me enrolei em minhas asas, com a cabeça entre os joelhos.

— Ei, você está bem?

Outro estrondo muito alto fez com que eu me encolhesse ainda mais.

— Isso é medo de raios? Caramba, quantos anos você tem?

Medo de raios, sim. O tempo todo, desde que acordei na caverna, tive medo dos raios distantes. Os barulhos de trovões me incomodavam, por me lembrar dos sons “daquela” nuvem.

Porém, até então, não havia presenciado um, na verdade dois, tão altos e tão próximos de mim. Não sabia exatamente o que estava acontecendo, se era reação ao frio ou ao medo, mas meu corpo tremia como nunca antes.

Um toque suave em minha cabeça fez com que o tremor diminuísse. Nada mais aconteceu, o toque só permaneceu lá, e tudo voltou a ficar silencioso, sobrando apenas o som da chuva.

Após um tempo em silêncio, os tremores tinham passado, e eu finalmente me abri para ver de quem era o toque.

— Eu também tinha medo de raios quando era criança, mas um dia descobri que eles não se importavam comigo — disse Ângela ao notar que eu estava a olhando. — Por que se importariam? Eu era apenas uma garotinha assustada em terra.

Era uma surpresa ver que era a humana a tocar minha cabeça. Foi um gesto pequeno, mas me ajudou um pouco.

— É isso que sou agora? Uma garotinha assustada em terra? — Continuei deitada ao seu lado, a olhar pra ela.

Ela me olhou por alguns segundos, com olhos que pareciam expressar pena, e então seu olhar mudou e ela tirou a mão de minha cabeça.

— Você é uma criminosa e vai pagar por seu crime.

— Entendo… — Levantei-me e coloquei o capuz em minha cabeça. — Posso te fazer uma pergunta?

— O que?

— Por que me odeia? Só por que eu causei a tempestade? Ainda não entendi que mal eu fiz pra você.

— Não fez mal só pra mim, mas pra todos. Embora, pra mim, o problema foi que essa maldita tempestade enfraqueceu minha magia.

— E por que isso importa? Só por que não conseguiu derrotar Greeta?

— Não tem nada haver com essa mulher lagarto idiota. Eu preciso ser forte. Preciso ser capaz de construir fama para… — Ela falava como se tivesse uma chama a queimar dentro dela, mas então, sua expressão se entristeceu. — Esquece. Isso não lhe diz respeito.

— Mas eu quero saber.

— Invés disso, conte-me você, como é lá no seu reino? — Cruzou as pernas.

— Você está mudando de…

— Você parece tão alienada a tudo — interrompeu-me —, mas ao mesmo tempo sabe de algumas coisas. Como isso funciona?

Eu realmente queria saber mais sobre Ângela, mas não parecia que ela iria me dar alguma brecha, então me rendi.

— Anjos nascem sabendo de tudo o que precisam, por isso temos conhecimentos de algumas coisas mas não de outras.

— Por isso ficou impressionada quando Cleiton fez aquela fogueira? Tipo, você sabe o que é fogo, sabe o que é magia, mas não sabe o que é magia elemental?

— É isso. Mas por que está interessada?

— Não é nada. É só que achei estranho, já que você não parece estar aproveitando as coisas.

— O que você quer dizer?

— Quero dizer que, quando em um lugar totalmente novo, a reação natural das pessoas é explorar e perguntar sobre o que não entende. Da para perceber que você não conhece quase nada, mas não demonstra. No seu lugar, eu aproveitaria tudo, cada momento, até porque, você não tem tanto tempo restando. — Me lançou um olhar significativo.

Não soube responder, era estranho a forma como ela afirmava que eu não tinha tempo. Um silêncio se seguiu entre nós.

Era preocupação? Talvez simpatia? O que ela queria me dizendo essas coisas? Fosse o que fosse, me fez pensar. De fato eu não estava aproveitando ao máximo tudo o que estava acontecendo.

Sempre quis sair do Reino dos Anjos, ser uma exploradora, e essa era minha chance. Mas por onde deveria começar? Era tudo tão novo.

Absorta em pensamentos, respirei fundo. O ar preencheu meus pulmões com velocidade, era muito mais fácil respirar nessa floresta do que nas cidades das nuvens. O ar era mais leve, mesmo com o vento da tempestade.

Senti esse vento ameaçar abrir meu manto. Senti o manto, o couro úmido contra minha pele. Respirei fundo novamente, o peso em minhas costas ficou mais evidente e senti algo… diferente em minhas asas. Algo que correu delas até a sola de meus pés, como uma conexão.

Mexi os dedos dos pés, contraindo eles, cavando na terra. Terra fria e molhada, era possível sentir seu cheiro junto a conexão entre ela e as asas mesmo com a distância entre meu rosto e o chão, um cheiro bom. De repente, senti um toque em meu ombro e a conexão se foi.

— Acorda, Amy. — Greeta me sacudia com força.

— Assim você vai quebrar ela — disse Cleiton de onde estava, já de pé com a mochila nas costas.

— Mas ela não tá acordando. O que você fez, nobrezinha de merda?

— Não fiz nada, sua lagartixa estúpida. Ela só parou do nada, eu nem percebi.

Segurei a mão que me balançava como uma boneca, Greeta imediatamente parou.

— Estou acordada. Eu não dormi. Só estava… sentindo. — Cavei o chão com os dedos dos pés, mas não foi a mesma coisa.

Vi os olhares dos três fixos em mim, curiosidade e preocupação estampados em seus rostos.

“Quanto tempo eu… apaguei?”

— Está mesmo bem? — perguntou Greeta, me ajudando a levantar. — Você tava congelada.

— Sim, estou bem. Só é estranho, sentir a terra. Não havia terra nas nuvens, sabe?

— Ah… — Piscou. — Tenho certeza que não. — Finalizou com um sorriso.

— Bom, se pode andar, então vamos. Não falta muito pra sairmos da floresta. Quero chegar na vila de Antrus ainda hoje — disse Cleiton.

— Claro. Vamos para… vila de Antrus?

— Sim, uma vila humana. Sabe o que é uma vila?

— É onde ficam casas, eu acho. Mas nunca vi uma vila de Antrus.

— Bom, é porque não é um tipo de vila, mas sim uma vila específica. Quer saber por que tem esse nome?

— Ah, de novo essa história? — reclamou Ângela.

— Você não deveria estar calada? — Levantou uma sobrancelha. — E então Amyrrh?

— Claro, eu adoraria ouvir.

— Maravilha, então, vamos andando.

Começamos a nos mover enquanto Cleiton contava a história. Greeta não deixou minha mão em nenhum momento, interrompendo a história as vezes para apontar coisas que sabia sobre a vila. Assim seguimos até sairmos da floresta.

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Olá, eu sou o TolrielMyr!

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