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Capítulo 54: Memórias (4) 

“Nem todo sorriso é feliz, nem todo choro é triste 

Nem toda saudade é má, nem toda fé persiste 

Já faz um tempo que eu não oro 

Todo dia eu choro 

E o silêncio do lado bom não garante que ele não existe” 

O sol de final de tarde descia os céus. No alto do morro, a luz do dia sempre aparece primeiro e se põe por último.  

TOC TOC TOC 

— Quem é? — Uma voz feminina, vinda de dentro da casa, pergunta. A porta de ferro enferrujada não permitia ver quem estava do lado de fora. 

— Sou eu! — Um garoto responde. 

— Eu quem, menino? 

— Oxi, como assim ‘eu quem’? Sou eu! 

TSK 

A menina, de pavio curto, estala os lábios e abre a porta. 

— Sabe responder seu nome não? 

— Sabe reconhecer minha voz não? 

— Argh! Entra logo, Matheus! 

O garoto, rindo, entra correndo, desviando do tapa que veio na direção da sua cabeça. 

— Onde é que cê tava? — pergunta a menina. 

— Tava brincando na casa do Jaime. 

— Jaime? E quem são os pais desse Jaime aí? 

— Cê conhece, moça. Ele é filho do dono daquela padoca lá! — responde, sem olhar para trás.  

— Do final da rua? 

— Ela mesma. 

O garoto possui cabelo curto e olhos cor de mel. Sua pele negra, mesmo não sendo escura, ainda era um pouco mais tonalizada do que a de sua irmã. Os cabelos castanhos da menina brilhavam como ouro. Apesar de serem ondulados, no calor ela sempre os mantinha presos, assim como estavam no momento. 

— Falando nisso, o pai tá aonde? — Pergunta Matheus. 

— Ele tá trabalhando, vai ficar até mais tarde hoje — responde. 

— Mas hoje é sábado! — Resmunga. 

— Matheus, cê sabe como o pai é… tá chegando o final de ano e ele quer ganhar um extra. 

— Se ele trabalhasse com o Seu Geraldo não teria esses problemas… 

— Tá doido, moleque? O Geraldo é bandido! Quer acabar com teu pai preso? — A irmã se irrita com o comentário do menino. — Ocê não fala isso perto de pai não, que ele não vai gostar! 

Sentando-se na cadeira mais próxima, Matheus cruza os braços e fica emburrado.  

— Não adianta fazer cara de choro, vai pro teu quarto estudar a matéria que cê viu ontem, que eu vou fazer a janta. 

O garoto, ainda emburrado, e sem falar nada, se levanta e, arrastando o pé, vai na direção do seu quarto. 

— Ei, menino… o pai tá querendo comprar aquele tênis lá de aniversário pra você… mas cê não fala que eu te contei não! 

— Sério!? — Ouvindo a notícia, ele imediatamente se vira.  

— Mas cê trata de estudar em! — diz a menina, com a mão na cintura e gesticulando com o dedo. 

— Pode deixar, Nina!  

Acelerando o passo ele entra para o quarto. Na escuridão do cômodo, completamente fechado, Matheus puxa a corda que acende a lâmpada. Duas camas, uma mesinha junto a uma cadeira de plástico e um armário que era divido com sua irmã, foi tudo que a iluminação revelou.  

Mesmo com a luz acesa, o quarto ainda era muito escuro, então, o menino foi até a janela e a abriu, para aproveitar o pouco de sol que restava. A casa era humilde, mas a vista do tapete de construções que se estendiam até o mar era magnifica; linda o suficiente para ser admirada por um minuto antes dele se voltar aos livros. 

Sentando-se a mesa para revisar a matéria do dia anterior, não demorou mais do que duas horas para o garoto adormecer em cima de seus cadernos. Tarde da noite, seu pai chegou. Batendo na porta antes de entrar, Matheus acorda. 

— Dormiu de novo? — pergunta o homem, apontando para o próprio lábio. Um homem negro, bonito o suficiente que nem mesmo o tempo, estresse e o cansaço do dia a dia foram capazes de defasar sua aparência. Suas características deixavam claro que as crianças haviam puxado o pai. 

— Desculpa… — Percebendo que estava babando, ele rapidamente limpa a sua boca. 

— Não esquenta, filho — diz seu pai, adulando sua cabeça. — Estudar cansado não ajuda muito… 

— Entã… 

— Por isso você deveria estudar antes de ir brincar — complementa o homem, rindo. 

— Ah… 

— Vamos jantar, sua irmã está esperando. 

O garoto rapidamente levanta da cadeira e se junta ao seu pai e irmã na cozinha. Após ajudá-la a pôr a mesa, Matheus se senta. Marina, então, começa a apresentar a janta, retirando uma tampa de cada vez. 

— Para noite de hoje temos… tan tan tan tan… arroz, feijão em caldo e… bisteca de porco! 

CLAP CLAP CLAP 

Os dois bateram palmas pela apresentação da menina. 

— Eu também comprei um tomate e separei as folhas de alface que ainda estavam boas, sirvam-se! 

— Obrigado, filha. 

— Obrigado, Nina… agora, vamos comer! 

— Pera aí, garoto… não tá esquecendo de nada? 

— Ah, foi mal, pai!  

Os três juntaram deram as mãos em volta da mesa, e o homem mais velho puxou a palavra. 

— Senhor, abençoe essa comida, essa família e permita que o justo prevaleça e o bom permaneça. Abençoe meus filhos com sucesso e saúde. Sei que nem todos têm as oportunidades que nós tempos, então, se não puder os dois, que seja a saúde, o sucesso, nós corremos atrás. Amém, Senhor. 

— Amém. 

                                                                                                     

BAM BAM BAM 

— Matheus, acorda! Acorda!  

O garoto finalmente abriu os olhos. Duas mãos geladas seguravam seu rosto, tentando acordá-lo. Desesperado, ele se levanta. Marina o puxa e o esconde embaixo da cama. 

— O que tá acontecendo!? — confuso, o menino pergunta. 

— Escuta, me escuta — ela sussurra. — Não grita, Matheus, não importa o que você ouvir, não sai daqui de baixo! Não sai! Me promete? 

— O que você tá falando? Não! 

BAM BAM BAM 

A porta treme com as pancadas. Ela aperta seus ombros, ele nunca havia visto a irmã daquele jeito. 

— Matheus, me promete, por favor… 

Mesmo sem entender a situação, ele confirma com a cabeça e entra debaixo da cama. Marina levanta-se e poucos segundos depois a porta é arrombada. 

Ela grita. 

Um homem entra no quarto. Tudo que Matheus consegue ver é uma bota, um coturno pesado. 

— Vem cá, meu bem, vou te fazer mal não… 

SLAP 

Escondido, o garoto ouve um tapa. 

— Aí, sua vagabunda! 

BAM 

Marina cai no chão, seu olhar se encontra com o de seu irmão. Seus olhos estão tremendo, sua boca sangrando, as lagrimas lutam para sair, mas, vendo que ele está olhando, ela luta para mantê-las dentro de si. 

Matheus, pelo contrário, não consegue segurá-las, mas, obedecendo sua irmã, ele coloca as duas mãos na boca, tapando qualquer som de sair. 

— Solta minha filha, seu filho da puta! 

BAM 

Vindo de fora do quarto, ele ouve um soco, seguido da voz de outras duas pessoas. 

— Cala a boca, verme — diz um outro homem. 

— Esse aí pode ficar com você, só seja rápido — permite uma mulher. 

— Pode mesmo, senhora? 

— Claro, ninguém se importa com esse tipo de gente mesmo. 

— Certo… 

Após alguns segundos, Matheus ouve um grito. 

— Que… que merda é você? AAAAAAH 

Foi a primeira vez que ele ouviu seu pai gritar. Não houve barulhos de tiros, apenas o som de um objeto pesado caindo no chão. 

— Credo… você poderia ter feito menos bagunça. Se vai comer a cabeça dele, só engula o corpo inteiro logo. 

— Desculpa, senhora… 

— Enfim… você, traga a menina aqui, ela é minha. 

O homem que havia socado o rosto de Marina, a puxa do chão e a leva para fora do quarto. Ela permanece calada. 

— Hm…? Eu gosto dos seus olhos… 

O olhar da menina não tremia mais. Suas retinas da cor de âmbar, estavam afiadas e encaravam a mulher. 

— Só acabe logo com isso. 

— Hahaha! Que atrevimento… — diz a mulher, se aproximando do ouvido da menina. — Você acha que se agir assim, conseguira salvar aquele garoto embaixo da cama? — sussurra. 

Ao fim das palavras, Marina travou. Seus olhos marejaram e uma lagrima escorreu pela sua face. 

— Bem melhor! 

— MA… 

Antes que pudesse gritar, seu pescoço foi agarrado pela mão da mulher, que a levantou no ar. As veias de todo seu corpo saltaram e pulsaram, bombeando o seu sangue para concentrá-lo em um só lugar. Suas bochechas rosadas se acinzentaram e seus olhos brilhantes se tornaram opacos. Quando foi solta, seu corpo delicado mal fez barulho ao atingir o chão. 

A face da mulher, no entanto, se tornou mais jovial. 

“Aaaaa… é tão bom! — proclamou. — A Hemomancia é custosa, mas é tão satisfatória! Se não fosse esse mundo penado e ausente e mana, não teria que me sujeitar a alimentar-me dessas sobras! 

— Madame… e o outro? 

— Ah… traga o para mim. 

— Sim, senhora. 

Num instante, o homem voltou ao quarto e levantou a cama que cobria Matheus. O olhar do garoto, diferente da sua irmã, gritava o medo que estava entalado em sua garganta. Agarrado pela cabeça, o menino foi arrastado para fora e atirado para a frente da mulher. 

— Veja só… o que temos aqui? Você é patético, hahahaha! 

Olhando para o lado, ele vê o corpo da sua irmã e o que restou de seu pai.  

— AAAAAH! — Em meio a lagrimas e soluços ele grita. 

— Que barulheira! — reclama a mulher. — Você aí que não se alimentou ainda, pode ficar com esse aqui, só mate ele logo; já está me deixando estressada… 

— Obrigado, senhora…  

O homem se aproximou de Matheus, só aí o garoto percebeu, que a pessoa que estava respondendo não tinha boca, sua voz vinha de outro lugar. Levantando a camisa, uma gigantesca garganta se abriu. 

— Agora… seja obediente e fique quietinho…  

Matheus, tremendo de medo e imóvel, não conseguiria se mover nem mesmo se quisesse. 

BANG 

Mas antes mesmo que pudesse tocá-lo, uma bala passou pela cabeça do monstro. 

— Um tiro na cabeça resolve qualquer problema… 

Os outros dois rapidamente viraram-se para a porta da casa. 

Um homem de pele escura, entrava a passos lentos. Seus olhos verdes brilhavam na noite. Seus cabelos estavam amarrados em dreadlocks que passavam os ombros. Um brilho branco saia do cano da pistola que ele portava em suas mãos. O corpo, que caia de joelhos no chão, não sangrava, mas queimava de dentro para fora, exalando um cheiro pútrido mais forte do que qualquer lixão. 

— A barreira foi invadida? Como? 

— Eu a sobrepus com a minha própria… não gosto de ser notado por gente comum… — respondeu o homem. — Agora… vou dizer isso só uma vez… 

BANG 

— Nem se incomode em agachar. 

Seu segundo tiro atravessou o peito do monstro que havia matado o pai das crianças. O projetil cortava o ar num zunido, deixando um rastro branco por onde passava. O brilho fosforoso que a bala emitia, digeria seu corpo, como uma praga. 

— Caçador… não… essa arma… Gabriel! 

— Ah… estou famoso assim? 

— Famoso? Você é uma desgraça! Um traidor!  

No momento em que ela gritou, Gabriel levantou sua arma e atirou mais uma vez. 

— Traidor? Hahaha! — debochou. — Eu sou a cura… e você… a doença. 

A mulher estendeu o braço, deixando-o ser atingido. Assim que o membro começou a ser digerido pela bala, ela o cortou. O sangue, que jorrava da ferida, rapidamente solidificou-se, tornando-se um braço  

— Hemomancia? Já enfrentei coisa pior… 

BANG BANG BANG BANG BANG 

Os projeteis cortavam o ar, atingindo o corpo da mulher, que resistia a decomposição. 

— Um dia! Um dia você vai pagar, traidor! — Gritou a Hemomante. — Nesse dia, eu te encontrarei no inferno! 

— Eu já estou no inferno. 

BANG 

Acertando a cabeça, os gritos pararam. O homem se virou para sair, mas antes que fosse embora, percebeu o garoto encarando suas costas. Olhando ao seu redor, assimilou rapidamente a situação. 

— Me desculpe, garoto — disse. — Se eu tivesse sido mais rápido, teria salvado sua família. Me desculpe. 

Matheus, ainda em estado de choque, não respondeu. 

— Escuta, os limpadores vão chegar em breve… você esquecerá disso tudo em breve… tem alguém com quem você possa fi… 

“O que eu estou dizendo… é obvio que não.” Pensou. 

— Sinto muito, garoto. — Novamente, ele se virou para ir embora. 

— Es… espera! 

— Hm? 

— Se você realmente se importa… me leve com você! 

— Te levar comigo? Não posso faz… 

— Faço qualquer coisa! — Gritou. — Posso ficar calado o tempo todo se quiser, vou obedecer a tudo que você disser, por favor! 

— O que você espera ganhar com isso?  

— Se me deixar, vou só morrer em um canto qualquer! — respondeu. — Posso ser mais do que isso! Eu preciso ser mais do que isso! 

“‘Precisa’ né… entendi. Até uma criança como você sabe que os dois morreram tentando te proteger.” Pensou. “Não parece justo que eles tenham morrido ‘só’ por isso, não é?”. 

De sua cintura, o homem puxou um punhal e o atirou aos pês do garoto. 

— Vai precisar de uma forma de proteger se quiser vir comigo. 

Matheus pegou o punhal do chão. Seu cabo tinha o formato de uma cruz egípcia.  

— É melhor sairmos daqui logo, não vão te deixar vir comigo se te virem aqui. — disse o homem, se aproximando e estendendo a mão. — Meu nome é Gabriel. 

O garoto apertou sua mão.  

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Olá, eu sou Dealer!

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