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Capítulo 71: Aster

Algumas vezes finjo que morri, para que eu deseje voltar a vida, para que eu possa nadar, ver as montanhas e me apaixonar novamente. Para que eu possa me arrepender, chorar e às vezes, apenas andar por aí. Então, prometo a mim mesmo que jamais esquecerei novamente o motivo de eu ainda estar vivo.  

Motivos ~ ?  

Acordar, me banhar, comer, exercitar, treinar, estudar, comer, me banhar, dormir.  

Acordar, me banhar, comer, exercitar, treinar, estudar, comer, me banhar, dormir.  

Acordar, me banhar, comer, exercitar, treinar, estudar, comer, me banhar, dormir.  

Acordar, me banhar, comer, exercitar, treinar…  

HUF HUF HUF  

Ofegante, Fynn mais uma vez terminava o seu treino diário. Depois de um longo dia ele tomava um banho morno e deitava-se, respirando fundo ele repetia consigo mesmo:  

— Nunca esquecer.  

Ele nunca dizia o motivo disso, sua rotina poderia mudar, assim como acabará de mudar depois do incidente de Mnemósine, ele estava mais focado do que nunca, mais disciplinado do que nunca, mas sua personalidade não mudava. Naquela noite, foi diferente. Após chegar em casa, comemorou junto ao restante do grupo a chegada de um novo integrante e o novo desafio que estava por vir.   

— O que você está fazendo?   

Um homem entrou no quarto, e deitou-se na cama ao lado. Uma pessoa quase sempre calada dividia o cômodo com alguém que quase sempre estava falando. Hans era quase exatamente o seu oposto, não só de aparência, mas também de personalidade; Ele já havia ouvido centenas de vezes a mesma frase.  

— Meu ritual de sempre…  

— Eu sei o que é, mas por que você faz isso? — perguntou, olhando para o teto. Fynn se virou em sua cama e o encarou.  

— Por que a curiosidade repentina? Sempre fiz o mesmo — respondeu.  

— Hm… só esqueça que perguntei então.  

— Não, não… posso responder se quiser — prosseguiu. — É só que… você nunca perguntou antes.  

— Eu sou do tipo de pessoa que prefere esperar que a outra fale por si só.  

— Então, por que agora?  

Hans pensou por alguns segundos antes de responder.  

— Não sei, só estava tentando puxar assunto.  

Fynn mais uma vez se surpreendeu com a atitude de seu companheiro, sentando-se na cama.  

— Você?  

— Como eu disse, esqueça que perguntei…  

— Sobre o que você quer falar, então?   

Hans não respondeu.  

— Se estava tentando puxar assunto, então quer falar sobre alguma coisa… — insistiu.  

— Você não entenderia… — resmungou.  

— Pode tentar…  

— Eu… sinto que não evolui em nada nos últimos anos, não sei… talvez eu só esteja um pouco depressivo — confessou. — Nunca me preocupei com isso já que sempre preferi lidar com as coisas quando elas vinham, mas acho que, com tanto acontecendo, não estou conseguindo pensar direito… com todos tão animados para novos desafios e para melhorar como grupo… parece que estou ficando para trás.  

— Interessante, é a primeira vez que ouço você falando algo assim.  

— Não é como se você falasse muito sobre si mesmo também — respondeu, virando-se para o lado contrário.  

— Quer saber mais sobre mim? — brincou.  

— Você está um pouco diferente desde que voltou de Mnemósine.  

— E você é provavelmente o único que diria isso, não achei que notasse tanto as outras pessoas — comentou despretensiosamente.  

— Quando você fica muito tempo calado assim como eu, acaba observando bem mais do que as outras pessoas.  

Ambos ficaram em silêncio por alguns minutos. As noites em Arcádia eram calmas, pouco se ouvia dentro do quarto escuro além do ranger da madeira velha e do cantar dos grilos que vagavam pela escuridão. Ambos haviam sido os últimos a se deitarem após lavar a louça. Matheus e Li haviam sido duramente derrotados numa competição de beber contra Glória, já Selene havia ido dormir um pouco mais cedo que todos, provavelmente pelo cansaço do dia.  

— Hans, se você encontrasse uma caixa com todas as coisas que perdeu, qual seria a primeira que procuraria?   

— De onde veio essa pergunta? — indagou.  

— Só responde logo…  

— Eu… não sei.  

— Que resposta sem graça… eu procuraria a mim mesmo.  

— Qual o sentido disso?  

— Sabia que eu costumava ter uma noiva?   

Até mesmo Hans ficou espantado virando-se na direção do homem e o encarando.  

— O que, eu pareço muito novo? — riu. — Tenho 24… mas foi há alguns anos, eu tinha 16 na época que propus.  

— Onde ela está? Essa noiva de quem fala.  

— O que quer dizer — respondeu, silenciosamente. — Ela está morta.  

Seu colega de quarto continuou calado após ouvi-lo, foi Fynn quem voltou a quebrar o silêncio.   

— Não vai perguntar nada sobre?  

— Está tudo bem para você falar sobre? Digo, você me parece bem tranquilo falando…  

— De fato, parece ser dessa forma para quem vê de fora…  

— E não é?  

— Talvez… sabe, eu costumava ser uma pessoa que buscava a perfeição em tudo que fazia, era sufocante, destrutivo, agoniante… dizia para mim mesmo “Eu não sei o que vai sair de mim, mas tem que ser perfeito. Tem que ser inalcançável em todas as maneiras.” — confessou Fynn. — Provavelmente para compensar pelo fato de que era eu quem estava fazendo.  

O homem sorria enquanto falava.  

— Mas tudo mudou quando eu a conheci. Eu tinha 13 anos, ela tinha 14. Um dia ela me disse: “Agora que você não tem que ser perfeito, você pode ser bom”.  

— Ela parecia saber do que estava falando — concordou.  

— E sabia! Ela adorava quando eu sorria, sempre disse que se eu continuasse sorrindo o mundo iria ser mais feliz… seu nome era Lilian Aster  

Em dado momento, Hans parou de ser irônico e passou a escutar atentamente o que Fynn tinha a dizer.  

— Ela era inteligente, carinhosa, prestativa, altruísta, adorável, interessante! Muito interessante, ouvir ela falar sobre qualquer coisa era o maior prazer do meu dia, eu vivia para aquele momento… então, eu comecei a sorrir mais, rir mais, a ser mais feliz… mas… acho que não era para ser  

— O que aconteceu?   

— Ela tinha a saúde frágil, era um pouco doente desde que tinha nascido, sua condição piorou e piorou e piorou… eu queria morrer… — Suas últimas palavras saíram de sua garganta com dificuldade, mas logo o sorriso voltou em seu rosto.  

— Sabe, o dia em que eu soube que queria casar com ela?   

— Hm…  

— Foi numa chuva de meteoros! O céu estava lindo, o mais lindo que já esteve… mas eu simplesmente não conseguia tirar os olhos dela… ela era muito mais bonita que as estrelas.  

— Não soa como você.  

— Não soa… — lamentou. — Sim… sim, eu concordo.  

— Fynn…  

— Eu queria gritar, espernear para todo o mundo, queria chorar, mas continuei sorrindo, porque é a forma que penso que ela gostaria de me ver.  

— Você não precisa, sabe disso, certo?  

— Mas eu quero… eu quero, então, quando digo que procuraria a mim mesmo, quero dizer que sinto falta de quem era com ela.  

Hans suspirou entristecido pelo que ouviu.  

— Por que você nunca falou sobre isso antes?  

— Como você disse… não combina comigo — respondeu. — Acho que…eu sou a pessoa que fala, que dá risada e que se emociona… mas você é meu melhor amigo.  

— Bem… — Encarando-o durante algum tempo, pensando sobre tudo que o outro havia lhe falado, o homem finalmente o disse, virando-se para o teto. — Quando se cansar de falar, de dar risada e de sorrir… pode se sentar ao meu lado, eu também sou fluente na linguagem do silêncio.  

Ambos voltaram a ficar calados durante algum tempo.  

— Hans?  

— Hm?  

— Obrigado.  

                                                                                                      

STEP STEP STEP  

Passos pesados ecoavam repetidamente na escuridão. Apenas uma luz brilhava na mão do homem que descia lentamente pela longa escada espiral de pedra. Sem corrimão, o lugar era um perigo por si só, qualquer deslize significaria uma longa queda de dezenas de metros até o chão solido, mas a pessoa que descia degrau a degrau não era ninguém que se machucaria pela queda, seus passos lentos possuíam outro intuito; ecoar até o mais baixo andar do subsolo.  

STEP STEP STEP  

Seus cabelos longos e escuros balançavam a cada passo, suas pupilas vermelhas refletiam a luz que emanava de sua mão, revelando uma face jovem, porém com um olhar extremamente maduro e uma expressão estoica.  

STEP STEP STEP  

Finalmente chegando ao solo, poças se formavam no chão pelas goteiras que caiam lá de cima, pequenos animais e insetos corriam da luz nas mãos do homem. Após mais alguns passos, ele chegou até uma cela, onde dois soldados estavam de pé e prontidão.   

— Alguma novidade hoje? — perguntou o homem.  

— Não, senhor, o jovem mestre não se moveu e nem conversou.  

— Bem, eu o moldei dessa maneira… abram a cela, deixe-me vê-lo — ordenou.  

— Sim, senhor. — responderam, puxando as chaves e abrindo a porta.  

O homem entrou na escuridão e a iluminou. Amarrado, vendado e preso com correntes na parede, o outro homem nem sequer movia um dedo. Apesar de seu corpo estar repleto de machucados, os insetos, ratos e aranhas que o cercavam não o tocavam, como se entendessem que havia um predador maior do que eles naquele ambiente.  

— Não vai cumprimentar o seu pai?   

— Como o senhor está, meu lorde?   

— Haha, pelo menos a sua formalidade está em dia, Xu — riu. — Vamos ter uma conversa, acredito que sua pequena punição já foi o suficiente.  

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Olá, eu sou Dealer!

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