Não poderia haver descrição melhor para aquela sensação do que choque, e nada mais. Sentiu dor alguma, mais pareceu um empurrão, uma pressão rápida que logo desapareceu. Tudo isso em menos de um segundo, tudo isso antes de sentir o sangue começar a sair e a sensação do seu braço quase desaparecer.
Pareceu que o tempo tinha parado, mas foi apenas isso, uma sensação. Não levou mais do que um segundo para a realidade bater em sua cabeça como um martelo:
Ela tinha tomado um tiro no ombro.
Se não fosse por Quincas ter reagindo rápido o suficiente para empurrar ela, o tiro teria lhe acertado no pescoço. Émile foi empurrada com o impacto do disparo, caiu no chão no mesmo momento, quieta.
— Merda! — Quincas gritou, pegou a sua pistola e atirou em direção do clarão de disparo, mas pareceu não haver nada. Tomou cobertura na Carreta; Arya num tronco de árvore caído e Émile estava lá, caída no chão. — Arya! Consegue ver alguém?!
— Não, mas…!
Não houve um segundo disparo do atirador, Quincas percebeu aquilo. Nenhum atirador iria levar tanto tempo para finalizar Émile, algo estava o impedindo. Aproveitou a oportunidade e puxou Émile até a Carreta, tirando ela de perigo.
— Calma, Émile. Está doendo? — Quincas colocou ela sentada ao chão, encostada na Carreta. Ela estava em choque, olhando ao nada e com a mão no ombro, bloqueando o sangramento. Levou um tempo para responder.
— Não estou sentindo dor.
— Ok, você ainda tá com bastante adrenalina, a dor vem depois. — Quincas colocou a mão sobre o ombro de Émile e aplicou pressão. Com a outra, mirou com a pistola para a mata, tentando achar o atirador.
— Arya! Preciso que corra para cá!
Arya olhou ao redor, tomou coragem e correu. Na metade do caminho, um disparo e um erro, acertando não Arya e sim próximo ao seu pé. Com o trio reunido, a mulher começou a aplicar pressão no ombro de Émile, enquanto Quincas se concentrou no tiroteio.
“É certeza agora, esse atirador está com algum problema. Pelas chamas do disparo, está a uns vinte ou trinta metros, escondido na mata… Errar um tiro desses? Impossível.”, pensou Quincas.
Estava certo, Ramona não estava em bons lençóis. Ainda que a ferida estivesse fechada, tinha perdido sangue demais e sua pressão estava instável. Segurar sua própria slinger já estava difícil; mirar e atirar, quase impossível e o coice da arma? Sempre a derrubava.
Lutar não era uma decisão sábia.
Após dar mais um disparo contra Quincas e errar, levantou-se e começou a correr pelo mato, antes que fosse alvejada por tiros. Ajoelhou-se em outro arbusto, a visão ficou preta por um momento. A mensagem que seu corpo queria dizer era clara: “não dá para continuar, chega. Engula o orgulho e fuja”.
Mirou a slinger e procurou o trio, nada. Não tinha contornado o suficiente para a Carreta não oferecer mais cobertura, e seu feitiço pouco daria dano num objeto imóvel. A situação simplesmente não era benéfica. Esperou uma abertura, esperou que qualquer um dos três saísse de trás daquela Carreta e tentasse atirar, mas nada.
Na marca dos dez minutos, já não dava para manter-se assim. Levantou e começou a andar em direção oposta. Orgulhosa disso? Era certo que não.
Vinte minutos de pleno silêncio foi o suficiente para Quincas confirmar: o atirador tinha saído. Olhou para as duas mulheres e deu um sorriso besta.
— Estamos seguros. Como está o sangramento?
— Rasguei a roupa dela para fazer um curativo improvisado, vai conseguir aguentar o sangramento — falou Arya. Émile estava acordada, com os olhos abertos e um silêncio. Quincas estranhou.
— Tudo bem, Émile? Já está sentindo dor?
— Por favor… não fala comigo… se eu falar… eu vou… — Os olhos começaram a lacrimejar, e ela não aguentou: começou a chorar incessantemente.
— Calma! Eu sei que dói! O primeiro tiro é geralmente o pior…
— Eu sei! Eu sei! É que… Acertou o meu braço dominante! E se eu nunca mais conseguir mexer?!
— Não pegou no osso — informou Arya — e passou direto. Dê tempo ao tempo, e a ferida vai fechar.
— Pois é! Uma vez levei um tiro perto do… Na real, isso fica para depois. Temos coisas mais importantes a fazer. Vamos dar um tempo para a Émile descansar e produzir sangue, depois pegamos o Axel e damos um fora daqui.
— Beleza. Vai lá ver como ele está, vou garantir que o curativo não abra.
Quincas confirmou com a cabeça e entrou no carro, Émile ficou ali, sentada ao chão com Arya mexendo no machucado.
— Está apertado? O curativo?
— É… acho que eu não conseguiria mexer o braço nem se eu estivesse curada.
— Ótimo, é o objetivo. Temos que tomar mais cuidado! Se tem um atirador maluco por aí, podemos morrer a qualquer momento…
Émile engoliu a seco com aquele pensamento. Estava prestes a responder quando Quincas saiu correndo da Carreta e foi até elas.
— O Axel não está aqui!
— Hã?! — as duas ficam boquiabertas, Arya foi a primeira a levantar, Émile apenas tentou.
— Como assim ele não está?
— Sumiu! Desapareceu! Os óculos e a slinger também, o que me leva a crer que ele acordou e… bom, saiu!
— Ele não iria fugir.
Quincas apontou ao mato, em direção aonde os disparos tinham sido feitos. — Um atirador estava mais ou menos ali. Pelo som, certamente um rifle de precisão, tenho certeza. Se escolheu um rifle de precisão, a mira é boa. Mas se a mira é boa, não iria ter errado e muito menos demorado tanto para acertar. Entende o que quero dizer?
— Estava dizendo… o sniper estava ferido? E que o Axel que machucou?
— Bingo! — Quincas sorriu. — Deve ter sido ele, ou melhor, aposto que foi ele! Isso é ótimo! Se ele tá por aí, a gente consegue dar o fora daqui!
— Preciso de um hospital… — Émile comentou baixinho — minha visão tá meio turva…
Os dois se abaixaram para ver Émile. Ela estava estável, mas tinha perdido sangue e a pressão estava caindo. Quincas teve uma ideia. Entrou na Carreta e pegou algumas latas de comida.
— Lata de comida? Pera, sardinha?
— Pele de peixe é boa para cicatrizar ferida! E ela precisa comer um pouco. Comida salgada vai ajudar na pressão.
Abriu as latas de comida, e enquanto dava milho e ervilhas na boca de Émile, Arya colocava a pele de sardinha no buraco de entrada e saída da bala. Ao final, ela parecia um pouco melhor.
— Tá… O que a gente faz?
— Boa pergunta… Temos que encontrar o Nil, também. Pelo que vocês falaram no caminho, ele desapareceu depois que foi perseguido pelo alíope, né?
— Isso mesmo.
— E a Baret ficou na vila. — Quincas olhou para o nada, tentando traçar um plano em sua mente. — Não podemos nos separar mais, mas o povo pode ter ido para qualquer direção…
— Vamos investigar o local — falou Arya — Talvez o Axel tenha deixado alguma evidência de onde foi, alguma pegada ou coisa assim.
— É, boa ideia.
Arya e Quincas começaram a olhar aos arredores enquanto Émile ficava sentada, se recuperando. Não levou muito tempo para acharem algo: terra lambuzada de sangue.
— Não é o sangue da Émile — Quincas agachou-se para analisar. — E tem duas cores com tons levemente diferentes… Deve ser o sangue de duas pessoas. Os dois se misturam nesse ponto, e depois seguem em direções opostas até… sumir, os dois.
— Como se a pessoa tivesse parado de sangrar repentinamente.
— É, ou… como se tivessem caído num portal.
— Os dois? Mas os rastros vão em direção opostas — apontou Arya.
— É. O Axel foi ferido e usou o portal pra fugir, e o seu oponente, sozinho aqui… usou algum método para fechar a ferida na marra. Um Kit MED, algum feitiço de cura ou talvez até cauterização.
— Cauterização? Não vejo nenhum sinal de fogueira.
— Tem outros métodos, pode ser com isqueiro e faca ou até usar pólvora e o cano de uma arma. Dói demais, mas fecha uma ferida na hora.
— Deve ser por isso que o atirador não acertou. Perdeu sangue e não se recuperou ainda, mesmo com a ferida fechada.
— Isso! — Quincas sorriu, sentia estar cada vez mais próximo de chegar a uma conclusão. — E se o Axel usou um portal pra fugir, quer dizer que teria que usar outro pra voltar…! Já sei! Ele deve estar na vila abandonada!
— Na vila? Pera, a que ficamos a noite?
— Isso mesmo! Pensa, se ele foi pra, sei lá… Romaniva dar um jeito nas feridas, ele teria que voltar. Não iria nos abandonar, com certeza. Pelo que entendi do feitiço dele, quando é um portal pra bem longe, tem que ser num local que ele memorizou… logo, nessa região, esse local é o mesmo de antes: a vila!
— Então temos que ir pra lá!
— Certamente! Émile, consegue andar?
— Acho que sim… Se não formos correndo, eu consigo.
— Beleza, vamos!
Quando estavam prestes a ir em direção à vila, deram de cara com uma pessoa familiar: Nil, com toda sua glória. Estava intacto, suado e com um sorriso no rosto.
— Tenho que dizer, não achei que iria ver vocês tão cedo, mas carajo, estou feliz que achei!
— Digo o mesmo, Nil! — Quincas se aproximou. — Tinham me dito que você tinha sido perseguido por um bicho.
— Um alíope. Me disse que eles só caçavam de noite!
— Sim, mas esse é diferente! O povo daqui chama de El Ciego, acho que o nome já diz.
— Saquei… — Nil se encostou num troco de árvore e sentou no chão, respirou um pouco e disse: — É, fui perseguido. Nunca corri tanto na vida. Mas cheguei na vila que passamos a noite e aí tive sorte: um monte de sucateiros. Ai bem, acho que o alíope preferiu aquele rango a mim!
— Pera… — Arya se intrometeu. — Na vila? Levou o alíope pra vila?
— É, ué. A ideia era…
— É que pelo que concluímos, o Axel deve estar na vila!
Nil deu uma risada alta e levantou-se do chão. Deu alguns passos em direção a Carreta e, de costas para Quincas e Arya, falou:
— O Axel ta dormindo como pedra na Carreta! Não tem como ele estar na vila! — Antes que recebesse resposta, passou por Émile e entrou na Carreta. Dez segundos depois, saiu dela correndo. — Eita lasqueira, ele não tá aqui mesmo!
— Eu falei! — Arya respondeu — e agora?! Nil entrou na Carreta novamente e, alguns segundos depois, saiu dela com sua slinger em mãos. Estralou o pescoço e disse: — agora a gente vai pra vila dar um fim nesse alíope.