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Baalat voltou voando, e pousou de volta na estrada, feito uma águia. Seus olhos azuis, como um lago profundo, estavam cheios de raiva. Ela apagou, com os dedos, uma fagulha que ardia em alguns fios de seus cabelos.

Angélica a encarou, chocada.

— O que poderia ter poder suficiente para te repelir desse jeito?

— Não sei. Mas vamos descobrir.

Baalat bateu as asas e ganhou altura. E mirou o horizonte, em todas as direções. Sentiu os cheiros noturnos, o ar que resfriava a sua pele, e as sutis vibrações na natureza causadas pela grande variação energética provocada pelo feitiço. Quanto maior o feitiço, maior seria o rastro deixado. Feitiços pequenos e localizados, quase não deixavam rastros, mas os grandes, especialmente aqueles lançados à distância, deixavam um rastro quase intangível, porém forte o suficiente para alguém poderoso identificar.

Baalat era poderosa. E seus sentidos foram apurados no decorrer de milhares de anos. Ela percebeu como as moléculas vibravam de uma forma estranha, não natural.Viu como o ar tinha se afastado, como se abrisse caminho, num tipo de corredor invisível que se estendia para longe. Era por ali que Abigor tinha sido arrastado. Foi daquela direção que o feitiço veio.

— Por ali! — gritou ela, e desapareceu, voando, seguindo aquele rastro. E Angélica, sem pensar duas vezes, a seguiu.

Clara ficou um tempo olhando enquanto elas desapareciam em direção às estrelas. Sentiu falta de suas asas, de ter o vento batendo nos cabelos enquanto cortava o ar noturno feito uma bala. Sem as asas, era um demônio mutilado, afinal.

 — Clara! O Renato não tá bem! — gritou Jéssica.

A súcubo correu até eles. O garoto estava semi-consciente, com os olhos meio abertos e meio fechados. Estava tonto. Era como se estivesse bêbado. Ele via o mundo girando, enevoado. Tudo estava embaçado.

A ferida no ombro ardia e queimava, e uma gosma preta saía por entre as marcas de dentes em sua carne.

— Arg! Isso… queima! — Ele se moveu, como se convulsionasse, e com um movimento de seu braço, várias pedras se moveram sozinhas, como por mágica, deixando um tipo de rastro no chão.

— Ele vai ficar bem? — disse Mical, colocando a cabeça de Renato em seu colo.

Clara balançou a cabeça, em negação. Significando que ela não sabia.

E um relâmpago rasgou os céus. E Renato apagou, inconsciente. Uma chuva forte começou a cair de repente.

— Renato está, inconscientemente, alterando a natureza. Está mexendo com a Criação… — Clara parecia um tanto atônita.

— Acha que ele vai ficar bem? — perguntou Jéssica.

— Humanos, quando são mordidos por lobisomens, geralmente morrem por causa da infecção. A maioria morre em questão de minutos.

— Mas tem uma minoria que… — Jéssica parou de falar e olhou para a lua. A chuva forte mantinha seus cabelos colados ao pescoço e costas.

— Uma minoria sobrevive. E suas almas são mudadas para sempre por causa da Maldição do Licantropo. — A voz de Clara tinha um pesar, um sentimento de tristeza profundo.

— Então é isso? — gritou Mical, indignada, enquanto acariciava a testa de Renato. — Ou ele morre, ou se transforma em um daqueles monstros?!

Clara balançou a cabeça novamente.

— Essa é a primeira vez na história que existe um Condutor de Arimã. Nunca houve um antes. Então, não sabemos como o corpo dele vai reagir à mordida. Literalmente, qualquer coisa pode acontecer. É impossível prever o que… não sei. Duvido que a presença de Arimã no corpo dele vai simplesmente deixar que uma mácula, como a licantropia, o afete.

— Ele tá queimando em febre — disse Mical, tocando o rosto de Renato.

E Clara moveu seu braço rapidamente, e segurou algo no ar. Era uma pedra de gelo do tamanho de um ovo que atingiria Mical.

— Granizo.

Várias pedras de gelo começaram a cair. Amassavam a lataria do carro e se partiam contra o asfalto.

— Precisamos entrar no carro! — gritou Jéssica, já segurando Renato para levar pra dentro junto de Mical.

Mas nessa hora, os olhos de Renato se abriram e a chuva parou. As nuvens foram dispersas, num formato circular, e o céu limpo e estrelado pôde ser visto.

— Parou… — disse Mical, assombrada.

O garoto se levantou. 

E nessa hora, os joelhos de Clara tremeram. Suas pernas perderam a força. E um peso gigantesco se abateu sobre seus ombros. E Clara caiu de joelhos no chão.

Os lábios de Renato se curvaram num sorriso malicioso.

— Então é assim que os demônios reagem quando ficam diante do mal verdadeiro? Interessante.

— Bobagem! — Clara se ergueu, limpando a terra dos joelhos.

O garoto olhou um tempo para os próprios braços, como se estivesse procurando alguma coisa. Parecia intrigado. Passou um tempo olhando seus ombros e peito, e barriga. E então olhou em volta, para o chão, para o horizonte, para o céu, e sorriu.

— Renato… — Mical tentou se aproximar, mas Clara a segurou.

— Então é assim que a Criação de Deus se parece por dentro.

— Renato! — Jéssica tentou se aproximar.

— Jéssica! Não se aproxime dele! — disse Clara.

A garota lançou para a súcubo um olhar confuso. Normalmente, ela não obedeceria. Mas mesmo ela sabia que tinha algo de errado. Aquele vazio que sentiram em Renato, quando o conheceram, estava gigantesco. Era como estar diante de uma Escuridão infinita.

— O quê…? O que está acontecendo?

Renato se abaixou e tocou o asfalto da estrada. E pegou, entre os dedos, algumas pedrinhas e um pouco de terra.

— Terra — seus lábios se moveram —, imperfeita.

Ele se levantou, e uma única gotinha de chuva caiu sobre seu nariz.

—  Água. Imperfeita. — Seus olhos eram neutros. Não havia qualquer emoção. Talvez, um pouquinho de desprezo. Tão pouco que era quase imperceptível.

Inspirou, enchendo os pulmões.

— Ar. Imperfeito.

— Renato, o que está fazendo? Você está bem? — perguntou Jéssica.

As pernas do garoto apenas se moveram até o buraco no chão, onde Abigor tinha desaparecido. Ele se abaixou e observou como a terra e as pedras estavam cheias de cinzas e fuligem. Pegou uma daquelas pedras. Ainda estava quente. E então, com um pensamento, a fez brilhar em chamas. Era como se Renato segurasse um pequeno meteoro nas mãos.

— Então assim é o fogo dele — Renato balançou a cabeça. Parecia decepcionado. — É imperfeito.

Jogou a pedra pra longe, sem qualquer interesse. E olhou para o alto. Primeiro, para a lua.

— Luz. Imperfeita.

Depois olhou o imenso escuro do céu noturno, e balançou a cabeça. Parecia triste.

— A Escuridão não é ruim. Mas, ainda assim, é tão imperfeita. Toda a criação de Mazda é mal feita. Não tem perfeição nenhuma.

— O Renato… se foi? — perguntou Clara.

— Ah, não. Ele ainda tá aqui. Acho que… ele puxou muito de mim para lidar com a mordida do lobisomem, e aí… bom.. parte da minha consciência também veio. — Ele sorriu. — Acho que não vai durar muito, então preciso aproveitar.

— E como pretende aproveitar?

— Pobre demônio. Gostaria de ter suas asas de volta? Eu posso devolvê-las, sabia? Melhor: posso reconstruí-las. Fazê-las melhor do que eram antes.

Clara permaneceu em silêncio.

A boca de Renato voltou a se mover.

— Tudo o que peço em troca é… que mate essas duas garotas.

— Renato… o que está… ?

— Cale a boca, Mical! Ainda não percebeu que não é o Renato ali?!

— É claro que ela percebeu — disse Jéssica. — Mas Mical é assim. Ela mantém as esperanças mesmo que tudo ao redor esteja ruim.

— Por que quer eu as mate? — perguntou Clara.

— A pergunta é: por que você não iria querer matá-las? São um estorvo, não são? Eu só quero te dar uma chance. — Os olhos dele pareciam até ter alguma temperança, ou piedade,  — Vocês, demônios, me dão um pouco de pena, sabia? Foram criados por Deus assim, como uma sombra de mim. Uma imitação barata. Só porque o Criador sentia minha falta e queria uma lembrancinha que o lembrasse de mim, mas que ele pudesse controlar. Tão imperfeitos quanto todo o resto da criação. Achei que podia te ajudar, súcubo.

— Não preciso da sua pena. Nós não fomos criados por Deus assim! Não sabe o que diz! Nós nos tornamos assim porque desobedecemos a Deus! Somos o oposto de tudo o que ele deseja! Somos livres! Sua pena é a última coisa que precisamos! A última coisa que eu preciso!

Um riso contido saiu da boca de Renato.

— Livres? Não existe ninguém que Deus tenha criado que seja livre. O Deus deste mundo não criou ninguém para ser livre. Todos vocês seguem o roteiro dele. Todos vocês nascem, respiram, sonham, pecam, obedecem e desobedecem, e morrem, e vão para o Céu ou para o Inferno, ou simplesmente desaparecem, conforme Ele planejou. Demônios, anjos, humanos, pássaros, vermes, bactérias. Todos, sem exceção. Se vocês o desobedeceram, como você disse que fizeram, foi porque Ele quis que desobedecessem. Se os humanos comeram um fruto que não deviam, é porque Deus os fez para comerem. Seus destinos já estavam escritos desde antes do primeiro átomo ser criado. Mas eu sou diferente. Eu posso mudar tudo. Só eu. Se quer ser livre, pequeno demônio, faça o que eu ordeno e ganhe alguma misericórdia de mim.

— Blasfêmia! Lúcifer tentou os humanos para que pecassem! Não ouse tentar tirar de Lúcifer essa vitória!

— Acha mesmo que os humanos comeriam aquele fruto se Deus não quisesse que eles comessem? Acha mesmo que Lúcifer iniciaria o pecado se o próprio Criador não tivesse planejado dessa forma? Vocês são bonecos presos a cordas. Todos! Essa é a maior imperfeição de vocês. Mas eu posso trazer um pouco de caos e imprevisibilidade a tudo isso. E a liberdade verdadeira pode finalmente surgir. Saia do roteiro que ele escreveu pra você. Só eu possuo a liberdade para dá-la. Só eu, que nasci do mesmo Caos que Ele. Então, digo mais uma vez: saia da engrenagem que Ele te pôs e mate as duas garotas. — Renato pareceu até meio triste, com os ombros caídos.  — Mas você não consegue, não é? Não consegue porque Deus não te fez para matá-las. 

Clara sorriu. Aqueles olhos sombrios não a assustariam. Ela não se intimidaria diante da Escuridão, sendo ela mesma uma criatura demoníaca. Ela sabia que aquelas palavras eram mentirosas. Arimã era assim. Ela conhecia as histórias. Ele mentia e manipulava a todos para conseguir o que tanto almejava. Sua influência maligna moveu homens, demônios e anjos durante toda a história em busca de ambições, só para no fim terminar em nada. Tudo o que ele queria era o nada. 

Até porque, nem ele entendia a Escuridão verdadeira. Mesmo tendo nascido do caos. Mesmo sendo como o próprio vazio. Era impossível entender a Escuridão por completo sem antes ter visto a glória da Luz. Isso que ele chamava de imperfeição era o que tornava um demônio algo superior a ele. Todos já tinham visto a luz e mesmo assim optaram pela Escuridão. Ele nunca teve essa chance. Nunca fez essa escolha.

— Não preciso da sua misericórdia.

— É uma pena. Então eu mesmo as matarei.

E na palma de sua mão, uma chama surgiu. Era como fogo, mas totalmente escuro, sem brilho e não emitia calor. E ele a atirou em direção a Jéssica e Mical. Uma onda de energia destrutiva fluiu em direção a elas, junto de um estrondo ensurdecedor.

Clara pulou na frente das duas e posicionou sua Espada do Pecado na frente. A espada bloqueou a onda de energia por um momento, mas a força do impacto era forte demais para Clara segurar, então ela foi atingida, e a onda de energia explodiu.

Jéssica e Mical foram arremessadas para longe. Mas Clara permaneceu no mesmo lugar, gritando de dor. Então ela apenas caiu no chão, com fumaça fumegante saindo de seu corpo. Respirava pesadamente. Aquilo ardia mais do que o Fogo Eterno.

As mãos de Renato a pegaram e a ergueram. Ele o olhou de forma fria e sem expressões.

— Não entendo porque as defende. Elas são um risco. Renato nunca irá desabrochar em seu ódio se elas estiverem por perto, contaminando ele com esperança.

Novamente aquele fogo totalmente negro surgiu em sua mão.

— Pare de possuir o Renato! — gritou Mical, assim que chegou bem perto.

Ela estava se aproximando, correndo, com a bazuca em mãos, e assim que chegou perto o suficiente, bateu com aquele cilindro metálico na cabeça dele.

Foi um golpe certeiro. Renato soltou Clara, que caiu no chão, e ele pareceu um tanto atordoado.

Olhou para a garotinha, em choque, sem acreditar que aquela coisa pequena pudesse tê-lo atingido. E a dor na cabeça foi quase insuportável. Ter um corpo humano tinha suas desvantagens, afinal.

Foi quando Jéssica pulou nas costas dele e se prendeu, passando as pernas em torno do corpo dele, e pôs as duas mãos sobre a cabeça de Renato.

Crux sacra sit mihi lux; Non draco sit mihi dux; Vade retro satana…

 Ao ouvir as palavras de exorcismo, Clara sentiu um incômodo forte e seu corpo todo se arrepiou. E ela gemeu de agonia. E a cabeça latejou de dor.

Mas as mãos de Renato seguraram as pernas de Jéssica e conseguiram separá-las, e ao desprendê-la de si, ele a segurou pela nuca e a jogou no chão. E, logo em seguida, preparou mais um ataque com aquele fogo negro. Dessa vez, perto assim, atingiria bem no rosto. Seria morte certa.

E ele atirou. E a energia disparada foi gigantesca. Se ergueu como uma pilastra de fogo sem calor, subindo em direção às estrelas.

O braço esquerdo de Renato segurava o braço direito, e direcionou o ataque para o alto, ao invés de em direção à Jéssica, que estava caída no chão.

O braço direito ainda tentou voltar à posição anterior e terminar o ataque, mas o braço esquerdo não deixou e continuou segurando-o.

Até que um sorriso resignado brotou no rosto de Renato.

— Senhoritas, foi um prazer vê-las. Parece que o dono desse corpo voltou e tá meio irritado. Voltaremos a nos ver em breve.

Logo em seguida, suas pernas bambearam e Renato caiu no chão.

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Olá, eu sou Max Sthainy!

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